Francisco beatificou, a 4 de setembro, o
Papa João Paulo I (Albino Luciani, seu nome secular), sendo a beatificação, na
Igreja Católica, a penúltima etapa do reconhecimento como santo. E o gesto foi sublinhado
pela multidão presente no Vaticano, num domingo de chuva.
Na Missa que decorreu na Praça de São
Pedro, Francisco proclamou, em latim, a fórmula de beatificação, afirmando
responder ao pedido “da Diocese de Belluno-Feltri, de muitos outros irmãos no
episcopado e de muitos fiéis”. E a fórmula permite que “o venerável servo de
Deus, João Paulo I, Papa, possa ser de ora em diante chamado beato”, com festa
litúrgica a 26 de agosto, dia da sua eleição pontifícia, em 1978.
Foi, neste momento, revelada a imagem de Albino Luciani, na
fachada da Basílica do Vaticano, representando uma foto numa peça em tapeçaria
da autoria de Yan Zhang, artista chinês nascido na
província de Sichuan (República Popular da China), em 1963, que tem renome
internacional e dois quadros que integram a coleção do Museu do Vaticano.
Novidade relacionada com o seu espólio é o relicário apresentado ao Papa na
celebração. Ao invés do habitual nas beatificações, em que se escolhe algum
fragmento de osso ou tecido ligado ao corpo do beato, a relíquia de João Paulo
I é um manuscrito do Arquivo Privado Albino Luciani: um pedaço de papel, com
notas a caneta e lápis, escritas por Luciani em 1956, com um esquema para
reflexões sobre fé, esperança e caridade, esquema que também utilizou como Papa
nas três catequeses do pontificado (proferidas nas quartas-feiras de 13, 20 e
27 de setembro). Segundo o diário italiano Avvenire, o
relicário é foi concebido e criado pelo escultor Franco Murer. Numa base
de pedra oriunda de Canale d’Agordo, terra natal de Albino Luciani, assenta um
mostruário feito com a madeira de uma faia derrubada por uma tempestade em
2018, ostentando a folha com os apontamentos do Papa sobre as três virtudes
teologais. A obra ficará exposta na Catedral de Belluno, onde
Albino Luciani foi prelado de 1943 a 1958 e onde, em 23 de novembro de 2003,
foi solenemente aberta a causa de beatificação.
Iniciada a celebração, o cardeal Benianimo
Stella, postulador da causa de canonização, apresentou o pedido de beatificação
e elencou traços biográficos do novo beato, lembrando uma vida marcada pela
“humildade”, pela atenção aos problemas sociais, pela evangelização e pelo seu
“exemplar” pontificado de 33 dias – 26 de agosto a 28 de setembro. E, após a
proclamação do novo beato, o bispo da Diocese de Belluno-Feltri (Itália), D.
Renato Marangoni, agradeceu ao Papa.
***
Albino Luciani nasceu a 17 de outubro de 1912, em Canale d’Agordo,
Diocese de Belluno, no Véneto, região do Nordeste de Itália,
de uma família de condição humilde, cujo pai, migrante sazonal na
Alemanha ao longo de muitos anos, seguia ideias socialistas. A I Guerra
Mundial trouxe extremas dificuldades ao lar do futuro Papa. Anos mais tarde, a
mãe, católica fervorosa, logrou que o pai aceitasse a ida de Albino para o
seminário. Já padre, dedicou largos anos à formação dos seminaristas, à
catequese e à participação regular na imprensa e na literacia cinematográfica
(através de um cinefórum). Ordenado bispo pelo Papa São João XXIII, aos 46
anos, escolhe como lema episcopal só a palavra Humilitas (humildade). Na
atividade pastoral, continuou a dar especial atenção à formação de leigos e de
catequistas e à ação social junto dos mais desfavorecidos. Foi um dos bispos
que participaram no Concílio Vaticano II (1962-1965), em cuja aplicação se
comprometeu enquanto patriarca de Veneza, a partir de 1970.
Era patriarca de Veneza quando foi eleito Papa, assumindo o nome
de João Paulo I (foi o primeiro a adotar nome duplo, em homenagem a seus dois
antecessores, João XXIII e Paulo VI, já canonizados); recusou a coroação
formal; e não quis ser carregado na cadeira gestatória, ficando conhecido como
o “Papa do Sorriso”. Como Papa, distinguiu-se pela simplicidade, pelo
sorriso e por gestos que foram bem recebidos pela opinião pública. E foi o
primeiro a recusar ser coroado e transportado na cadeira gestatória
(transportada por homens), como ocorria até então. Mas a intenção de mexer em profundidade nas
finanças do Vaticano e no Instituto das Obras Religiosas (IOR, o banco da Santa
Sé) terá desencadeado preocupações e resistências associadas a teorias
conspiracionistas que pretendem explicar a morte súbita do Papa.
Os trâmites processuais para o
reconhecimento do milagre obedeceram às normas de 1983. O tribunal eclesiástico
para o inquérito diocesano começou as atividades a 22 de novembro de 2003 e
concluiu os trabalhos três anos depois. Nas 203 sessões do processo, foram
ouvidas 167 testemunhas. A cura reconhecida como milagre, que abriu caminho à
beatificação, aconteceu na Argentina, em Buenos Aires, há cerca de 10 anos. Em
causa está inexplicável cura científica de uma criança argentina, Candela Soza,
gravemente afetada por uma epilepsia refratária maligna.
O processo de beatificação chegou ao
Vaticano a 3 de janeiro de 2007, quando, na Congregação para a Causa dos
Santos, foi aberto o envelope oficial com os documentos relativos à
investigação diocesana sobre a heroicidade da vida e das virtudes, bem como
sobre a fama de santidade. E o decreto que reconheceu as “virtudes heroicas” do
novo beato foi aprovado em novembro de 2017.
Conhecido pela simplicidade e capacidade de acolhimento, muitos testemunham
o estilo de João Paulo I como humilde e próximo de toda a gente. Vários
testemunhos relatam o seu estilo simples e discreto, sempre preocupado em não
dar excessivo trabalho aos colaboradores, incluindo as religiosas que cuidavam
do serviço doméstico no apartamento pontifício.
A irmã Margherita Martin contou, no dia 2, aos jornalistas que, um dia, ao
vê-la passar a ferro uma sua camisa, João Paulo I lhe disse para não perder
tanto tempo com ele: bastava passar os punhos, porque ninguém vê a camisa que o
Papa traz por baixo da batina.
Em conferência de imprensa no Vaticano, Stefania Falasca, vice-postuladora
do processo de beatificação, frisou que Albino Luciani morreu com fama de santo
e que os 33 dias do pontificado “são a ponta de um grande icebergue escondido
de magistério e importantes ensinamentos”.
Lina Petri, sua sobrinha, disse, naquele encontro com a imprensa, que sempre
soubera que o tio era pobre; no patriarcado de Veneza, além dos móveis
históricos, nada havia de sumptuoso ou de particular valor; e, no mês do
pontificado, permanecera sereno e sábio o comportamento do tio.
A inexplicável cura científica de Candela Soza, gravemente afetada por uma
epilepsia refratária maligna, há cerca de dez anos, foi o milagre reconhecido
para desencadear esta beatificação.
Após visita à filha internada na unidade de terapia intensiva pediátrica de
Buenos Aires, Roxana, preocupada com a condição de saúde de Candela, pediu ao
padre Juan José Dabusti, que acompanhasse ao hospital e conferisse a unção dos
doentes à criança. Dias depois, a situação agravou-se porque a menina apanhara
uma infeção hospitalar seguida de pneumonia e choque séptico. E, porque o
hospital avisou a mãe de que a criança não sobreviveria àquela noite, Roxana pediu
ao padre que fosse lá e rezasse mais uma vez.
E o padre, como referiu na predita conferência de imprensa, propôs à mãe que
rezasse a João Paulo I para interceder pela vida e cura de Candela. O sacerdote
esclareceu que Roxana não sabia quase nada sobre o Papa Luciani, mas que, para
ele, sempre foi grande referência de santidade e, como estavam na Unidade de Cuidados
Intensivos (UCI), a explicação do sacerdote foi “apenas pedir a sua intercessão
para salvar a vida de Candela”. Então, acompanhados de duas enfermeiras
presentes, colocaram as mãos no corpo de Candela e o sacerdote fez oração
espontânea. Não se lembra das palavras que disse, mas recorda que pediu ao
Senhor, por intercessão de João Paulo I, a cura de Candela. E revelou este
facto decisivo: “No dia seguinte, Roxana veio à paróquia e disse-me que a
filha, não só tinha superado aquela noite, mas que havia sinais claros de
melhoras.”
Hoje, com 20 anos e totalmente curada, Candela Soza participou na
conferência de imprensa, via Zoom, a partir de Buenos Aires, ao lado da mãe,
manifestando profunda gratidão por esta cura.
***
Sob
chuva intensa e poucos fiéis na praça de São Pedro, o Papa frisou que o novo
Beato, o “Papa do sorriso”, transmitiu a bondade de Deus, vivendo “na alegria do
Evangelho, sem cedências e amando até ao extremo”. E encarnou a pobreza do
discípulo, que não é só desapego dos bens materiais, mas sobretudo capacidade
de vencer a tentação de se pôr a mim mesmo no centro e buscar a glória própria.
“É bela uma Igreja com um rosto alegre, sereno e sorridente, que nunca fecha as
portas, que não exacerba os corações, que não se lamenta nem guarda
ressentimentos, que não é bravia nem impaciente, não se apresenta com modos
rudes, nem padece de saudades do passado”, afirmou o Papa, acrescentando: “Rezemos
a este nosso pai e irmão e peçamos-lhe que nos obtenha ‘o sorriso da alma’.” Um
pastor manso e humilde “se considerava a si mesmo como o pó sobre o qual Deus
Se dignara escrever”. E, advertindo para certas “razões mundanas”, opostas ao
modelo de vida do novo beato João Paulo I, Francisco explicitou: “Por trás de
uma fachada religiosa perfeita pode-se esconder a mera satisfação das próprias
necessidades, a busca do prestígio pessoal, o desejo de aceder a um cargo, de
ter as coisas sob controlo, o desejo de ocupar espaço e obter privilégios, a
aspiração de receber reconhecimentos, e muito mais. Para tudo isto, pode-se
chegar a instrumentalizar Deus.”
E, lembrando a humildade
de João Paulo I, o Papa esclareceu que seguir Jesus “não significa entrar na
corte, nem participar num cortejo triunfal, nem mesmo garantir-se um seguro de
vida”, mas “tomar a própria cruz e olhar mais para Ele do que para nós
próprios”.
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Há 44 anos, morreu um Papa que durou no cargo só 33 dias, mas tão
intensos e promissores, pelo testemunho de simplicidade e de alegria, que
muitos católicos o consideraram um santo e começaram a pedir a sua
beatificação. A sua beatificação pela Igreja a 4 de setembro, em Roma, não
obsta a que os motivos da morte deste Papa continuem a fazer correr tinta.
João Paulo I, que foi fotografado a 19 de setembro de 1978, a nove
dias da sua morte, ficou conhecido pelo Papa do sorriso e é essa faceta que Yan Zhang
retratou num trabalho exposto na frontaria da Basílica de São Pedro, durante a
cerimónia de beatificação. Conta a jornalista Stefania Falasca, vice-presidente
da Fundação João Paulo I e vice-presidente da causa da beatificação, que desafiado
a pintar a imagem do Papa, o pintor olhou atentamente a foto que lhe foi
apresentada e de imediato respondeu: “Sim!”.
Foram várias as diligências e iniciativas de bispos da diocese de
Belluno, originária de Albino Luciani, no sentido de se desencadear a causa da
beatificação. Mas artigo recente de La Civiltà
Cattolica, sustenta que não
foi grande o interesse, na Congregação (hoje Dicastério) para a Causas dos
Santos. A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) formalizou a mesma
proposta em 1990, mas o processo não arrancou, até que, em 2003, a Congregação
anuiu a que o processo arrancasse em Belluno. Nas quase duas centenas de
testemunhos recolhidos, incluiu-se o de Bento XVI, Papa emérito, que, não
podendo fazê-lo enquanto papa no ativo, por ser juiz do processo, passou a
poder fazê-lo depois da resignação. Entretanto,
foram numerosos os pedidos das mais diversas proveniências para a abertura da
causa da beatificação. E, em 2017, o Papa reconheceu as “virtudes heroicas” de
Luciani, depois da cura considerada “cientificamente inexplicável” de uma
menina de Buenos Aires que sofria de encefalopatia aguda, como já foi
explicitado.
Quando após a beatificação se verifica um
outro milagre devidamente reconhecido, então o beato (que tem culto diocesano
ou na comunidade religiosa de que é originário) é proclamado “santo” (com culto
na Igreja universal). É a canonização, pela qual a Igreja confirma que um fiel
católico é digno de culto público universal e de ser dado aos outros fiéis como
intercessor e modelo de santidade. É o que se aguarda a partir de agora, no
encalço dos 83 pontífices declarados santos (Francisco canonizou três: João
XXIII, João Paulo II e Paulo VI) e dos 10 beatificados – até hoje,
2022.09.04 – Louro de
Carvalho
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