No dia em
que se assinalaram os 200 anos da aprovação da primeira Constituição portuguesa, a
Assembleia da República reuniu em Sessão Solene, em que intervieram o
Presidente da República, o Presidente da Assembleia da República, os
Representantes dos Grupos Parlamentares e os Deputados Únicos Representantes de
Partido. Após a Sessão, foi inaugurada a exposição “A Primeira Constituição de
Portugal – 1822”, na Sala dos Passos Perdidos.
Por sua vez,
a Universidade de Coimbra organizou, nos dias 22 e 23 de setembro, o Congresso
Internacional “A
Revolução de 1820 e a Constituição de 1822: 200 Anos do Liberalismo e do
Constitucionalismo em Portugal”.
Para
se fazer ideia da premência histórica e da diversidade temática, vejam-se os
títulos das comunicações nas sessões plenárias, constantes do respetivo programa:
“Le Constitutionnalisme à la Française: Permanence et Continuité de la
Révolution à la 5ème République” (O Constitucionalismo à Francesa: Permanência
e Continuidade da Revolução na V República); “La Constitución Española de 1812:
Entre Liberalismo y Tradición” (A Constituição Espanhola de 1812: Entre
Liberalismo e Tradição); “O Estertor de um “vulcão que já não lança chamas”. Um
Ex-Estudante de Coimbra nas Cortes Gerais de 1821 e o Fim da Inquisição em
Portugal”; “Representação Política e Opinião Pública: A Norma Constitucional e
a Campanha para a Reeleição dos Deputados às Cortes de 1822”; “O Poder Judicial
e o Liberalismo Oitocentista”; “À procura das Revoluções Perdidas”; Modelos de
Constitucionalismo e Modelos de Estado no Século XIX; “O Brasil como Questão
Política e Organizativa nas Cortes Constitucionais de 1821-1822”; “O
Constitucionalismo de D. Pedro no Brasil e em Portugal”; “O Liberalismo e a
Independência do Brasil”; “A Ordem Constitucional entre a Garantia de Direitos
e a Afirmação de Deveres”; e “The Destiny of Liberal Constitutionalism in
German History” (O Destino do Constitucionalismo Liberal na História Alemã).
Na
verdade, a revolução antiabsolutista ou
liberal estabeleceu, no primeiro manifesto de 24 de agosto de 1820, no Porto, os
seguintes objetivos: “As
Cortes e por elas a Constituição!”
As Cortes constituintes foram eleitas em dezembro de 1820 e começaram os
seus trabalhos em 26 de janeiro do ano seguinte (1821). Depois, a 23 de
setembro de 1823, foi aprovada a Constituição Portuguesa de 1822, o mais antigo texto constitucional português, que assinala a
tentativa de pôr fim ao absolutismo régio e inaugurar, em Portugal, a
monarquia constitucional, democrática pelo facto de dividir os poderes segundo
o sistema de contrapesos, de provocar o escrutínio do exercício dos poderes e
de legitimar a formação do órgão ou órgãos do poder executivo pelo sufrágio eleitoral.
Apesar de vigente só durante dois efémeros períodos – entre 1822 e 1823; e entre
1836 e 1838 –, a Constituição de 1822 (influenciada pelas constituições de Inglaterra – não escrita,
sobretudo a experiência da Revolução de 1688 –, dos Estados Unidos da América e
de França) foi um marco fundamental para a
história da democracia portuguesa.
Os trabalhos das Cortes Gerais Extraordinárias e
Constituintes da Nação Portuguesa (1821-1822), eleitas pela Nação, foram a
primeira experiência parlamentar em Portugal, na sequência da revolução
de 1820. As Cortes Constituintes, cuja missão principal era elaborar a
Constituição, iniciaram as sessões a 26 de janeiro de 1821, como foi
apontado acima, e, aprovado que foi o texto constitucional, a 23 de setembro de 1822, deram os trabalhos
por encerrados após o juramento solene da Constituição pelo rei D.
João VI de Portugal em outubro de 1822, juramento que foi recusado pela
rainha Carlota Joaquina e por figuras contrarrevolucionárias de
grande nomeada, como o Cardeal Patriarca de Lisboa, Carlos da Cunha
e Menezes.
Era efetivamente revolucionário, ao tempo, estabelecer-se que
“a liberdade
consiste em não serem obrigados a fazer o que a lei não manda, nem a deixar de
fazer o que ela não proíbe” (artigo 2.º); que “as Cortes nomearão um Tribunal
Especial, para proteger a liberdade da Imprensa, e coibir os delitos
resultantes do seu abuso” (artigo 8.º); que “a lei é igual para todos” (artigo
9.º); que “nenhuma lei, e muito menos a penal, será estabelecida sem absoluta
necessidade” (artigo 10.º); que “todos os Portugueses podem ser admitidos aos
cargos públicos, sem outra distinção que não seja a dos seus talentos e das
suas virtudes” (artigo 12.º); e, sobretudo, que “a autoridade do Rei provém da
Nação, e é indivisível e inalienável” (artigo 121.º) (Na conceção antiga, o
poder vinha diretamente de Deus para o Rei e, com exceção dos regimes
absolutistas, era repartível por senhores que o Rei compensava pelos seus serviços
na conquista ou no incremento do território).
Definida
como bastante progressista para, a nossa Constituição liberal inspirou-se,
numa ampla parte, no modelo da Constituição Espanhola de Cádis, de 1812,
e no das constituições francesas de 1791 e de 1795 (além da americana e da
inglesa, não escrita), sendo deveras marcante pelo espírito liberal e pela
ab-rogação de inúmeros velhos privilégios feudais, típicos do absolutismo.
Organizada
em seis títulos e 240 artigos, tinha como princípios fundamentais: a
consagração dos direitos e deveres individuais de todos os cidadãos
(com primazia aos direitos humanos, nomeadamente, a liberdade, a igualdade
perante a lei, a segurança, e a propriedade); a consagração da Nação,
enquanto união de todos os Portugueses, como base da soberania, a ser
exercida pelos seus representantes legalmente eleitos, isto é, pelas Cortes,
nas quais residia a soberania de
iure et de facto, visto que os seus membros tinham a legitimidade do voto
dos cidadãos; a definição do território da Nação, que formava o Reino
Unido de Portugal, Brasil e Algarves, abrangendo o Reino de Portugal (Continente
e Ilhas Adjacentes), o Reino do Brasil e os territórios
ultramarinos na África e na Ásia; o não reconhecimento de
qualquer prerrogativa ao clero e à nobreza; a independência dos três
poderes políticos separados (como preconizava Montesquieu) – o legislativo, o executivo
e o judicial –, contrariando os princípios básicos do absolutismo, em que o
poder estava todo concentrado no rei; a existência de Cortes eleitas pela
Nação, responsáveis pela atividade legislativa do país; a supremacia do poder
legislativo das Cortes sobre os demais poderes; a emanação da autoridade régia
a partir da Nação; a existência, como forma de governo, da monarquia
Constitucional com os poderes do Rei reduzidos; a União Real com o
Reino do Brasil; a ausência de liberdade religiosa: a Religião Católica era
a única religião da Nação Portuguesa (ver artigo 126.º), a ponto de o texto constitucional usar, no
frontispício, a expressão católica “Em
Nome da Santíssima e Indivisível Trindade”.
Por
outro lado, a motivação dos Constituintes é clara: estavam convictos de que “as
desgraças públicas, que tanto a têm oprimido e ainda oprimem, tiveram a sua
origem no desprezo dos direitos do cidadão, e no esquecimento das leis
fundamentais da Monarquia”; e consideraram que, só “pelo restabelecimento
destas leis, ampliadas e reformadas, pode conseguir-se a prosperidade da mesma
Nação, e precaver-se que ela não torne a cair no abismo, de que a salvou a heroica
virtude de seus filhos”. Por isso, decretaram a Constituição Política, “a fim de assegurar os direitos
de cada um, e o bem geral de todos os Portugueses” (verbo texto preambular).
Nos
termos da Constituição, o poder legislativo passou
para as Cortes, assembleia unicameral que elaborava as leis e cujos deputados eram
eleitos de dois em dois anos pela Nação. E este poder tem preponderância sobre
o executivo – caraterística dos regimes demoliberais progressistas, por
oposição às Cartas Constitucionais, de cariz aristocrático, outorgadas pelo rei.
Tivemos a Carta Constitucional outorgada por D. Pedro IV, que juntava o poder
moderador, a cargo do soberano.
O
Rei era o detentor do poder executivo,
competindo-lhe a chefia do Governo, a execução das leis e a nomeação e
demissão dos funcionários do Estado. Contudo, o Rei tinha veto suspensivo sobre
as Cortes, podendo suspender a promulgação das leis de que discordava, mas
sendo obrigado a promulgá-las, desde que as Cortes as confirmassem. Não lhe era
reconhecido o poder de suspender ou de dissolver as Cortes. Em ocasiões
especiais, era aconselhado pelo Conselho de Estado, cujos membros eram
eleitos pelas Cortes, e coadjuvado pelos secretários de Estado,
diretamente responsáveis pelos atos do Governo. Apesar de tudo, a pessoa do rei
era inviolável.
O poder judicial pertencia,
exclusivamente, aos juízes, que o exerciam nos Tribunais.
Quanto ao colégio eleitoral, segundo o artigo 34.º da
Constituição, podiam votar, para eleger os representantes da Nação (deputados),
os varões maiores de 25 anos que soubessem ler e escrever. Eram excluídos de
votar as mulheres, os analfabetos, os frades e
os criados de servir, entre outros.
Com a
aprovação desta Constituição tem início monarquia constitucional, mas o
processo da sua consolidação viria a ser difícil e demorado. A temeridade das
suas disposições impulsionou uma reação exacerbada das fações conservadoras,
que logo viriam a pôr fim à sua vigência. Com efeito, a Constituição de 1822
esteve vigente em apenas dois efémeros períodos: entre 23 de setembro de 1822,
altura em que foi aprovada, e 3 de junho de 1823, quando D. João VI a
suspendeu devido à Vilafrancada (insurreição
liderada pelo Infante D. Miguel, em Vila Franca de Xira, a 27 de maio de 1823),
com a promessa, não cumprida, de a substituir por outra; e entre 10 de setembro
de 1836, quando ocorreu a Revolução de Setembro, e 20 de março de 1838, momento
em que foi aprovada a Constituição de 1838. De facto, segundo alguns analistas,
foram dois dos períodos mais fecundos em produção legislativa destinada a
acabar com o Portugal Velho a que se referiram, entre
outros, os historiadores Alexandre Herculano e Oliveira Martins.
E, como diz Guilherme
d’ Oliveira Martins (presidente da Comissão das Comemorações), apesar dos seus
defeitos (voto censitário e exclusão de muitos cidadãos), a Constituição de
1822 é um farol de cariz republicano, sem anular ou desprestigiar a figura do
rei. Muitas das suas disposições são irreversíveis e os portugueses passaram,
em definitivo, de súbditos e a cidadãos.
2022.09.23 – Louro de Carvalho
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