Faleceu
a rainha Isabel II, a incontornável chefe de Estado do Reino Unido e de 14
países da Commonwealth,
os que, embora independentes, não escolhem internamente um Presidente da
República nem aclamam um rei próprio, constituindo exceção não totalmente
republicana no quadro dos 53 países que formam aquela comunidade de nações.
Com exceção de Moçambique, que se dizia relacionado com a Metrópole portuguesa, e de Ruanda, que era colónia dos Impérios Alemão e Belga, todos integravam o Império Britânico. E, agora, não formando uma comunidade política stricto sensu – mas uma organização voluntária intergovernamental pela qual aqueles países com diversas origens e práticas sociais, políticas e económicas são considerados como iguais em status –, cooperam num quadro de valores e objetivos comuns, conforme descrito na Declaração de Singapura (de 22 de janeiro de 1971), incluindo a promoção da democracia, dos direitos humanos, da boa governança, do Estado de Direito, da liberdade individual, do igualitarismo, do livre comércio, do multilateralismo e da paz.
É evidente que os líderes dos diversos Estados soberanos e a
suas diplomacias cumprem o seu dever diplomático ao apresentarem condolências
pela morte da rainha, dada a sua estatura de chefe de Estado. Compreende-se que
as famílias reais sintonizem com o que se passa com a monarquia do Reino Unido.
Percebe-se que os cidadãos de todo o mundo admirem Isabel II pela sua postura
como soberana, pela sua atitude como estadista, fautora de unidade na Commonwealth, pelo relevante poder
formal e simbólico que deteve ao longo de 70 anos de reinado, pela forma como
encarou e acolheu as mudanças a nível nacional, europeu e mundial, pelo modo
tolerante como olhou os dissabores familiares e do Estado e pelas suas
qualidades pessoais, de que se destaca o aprumo e a forma como participou na II
Guerra Mundial (como motorista e mecânica). Na verdade, o dia 8 de setembro de
2022 ficará para a História do Reino Unido e Mundo como o dia do óbito de
Isabel II, aos 96 anos, após 70 anos no trono, tendo sido a rainha britânica com maior
longevidade e também com o mais longo reinado.
Já não se compreende que em povos republicanos – cujos
cidadãos se escandalizam com a opulenta e seletiva “dinastização” do Estado
soberano cuja elite de nascimento e de titularidade nobiliárquica, dá, por
esmerada preparação fora do comum dos mortais, o topo do poder ao “herdeiro” de
um trono, com direito a coroação e a coroa, a cetro, a pajens, a corte… – as
populações, ricas ou famintas, venham para a rua ou para as praças adular e
venerar a realeza, viva ou morta, como se houvesse esperança no mundo de fadas
e encantamentos que o memorial e o imaginário popular, alimentado tradicionalmente
pelos contistas e agora por uma comunicação social amiga da criação e empolamento
de factos. Só um romantismo nefelibata e deslocado explicará tal postura na
opinião pública.
São encantadoras a complexidade e a minudência que balizam o
protocolo dos funerais (para cerimonial condigno e honroso não era precisa
tanta pompa e circunstância), mas transportam-nos para um mundo irreal que
distrai os decisores da construção da verdadeira democracia política,
económica, social, cultural e desportiva, inspirada nos valores e objetivos que
a Commonwealth diz promover, mas
que nem sempre leva à prática. A falta vontade e de esforço, bem como de sentido
da realidade, levam os decisores políticos e económicos a assobiar para o pado,
ignorando os pobres e os demais arredados da sorte, quase os culpando da sua
situação.
Enfim,
somos republicanos, mas criticamos, por vezes destrutivamente, os nossos
deputados, o Presidente da República, os governantes e os operadores de justiça
e, ao mesmo tempo, endeusamos reis, rainhas, príncipes e princesas, bem como
toda a cadeia nobiliárquica.
Dizemos
que a República não prepara os cidadãos para a chefia do Estado e qualquer
cidadão ou cidadã pode chegar ao topo do poder, ao passo que as monarquias se
esmeram na educação e na preparação dos seus príncipes, por vezes com êxito
limitado. No entanto, também as monarquias são palco de escândalos familiares,
políticos, económicos e financeiros. Diz-se que as monarquias podem apresentar
reis com doença mental e com graves desequilíbrios, o que também acontece em
repúblicas. Veja-se o que se passou com o norte-americano Donald Trump e o que
se tem passado com o brasileiro Jair Bolsonaro. Não obstante, uma república que
seja verdadeiramente democrática tem, se quiser e não der azo a tentações
ditatoriais, poderosos instrumentos de moderação na escolha e manutenção de
todos os seus representantes: o voto secreto, a crítica na comunicação social,
as redes sociais, a participação na discussão pública dos textos a ela
sujeitos.
O
monarca britânico tem um poder formal e simbólico – importante para gerar e testemunhar
a unidade do Estado e a ideia de identidade e de pertença. Contudo, nenhuma lei
ou decreto existe sem a sua assinatura, mas não a pode recusar, pois não tem o
direito de veto político; comanda as forças armadas, mas o seu comandante
efetivo é o primeiro-ministro; nomeia e exonera o primeiro-ministro, mas não
pode negar a escolha feita no seio do partido que ganhou as eleições, nem o
pode condicionar na governação; inaugura as sessões legislativas do Parlamento,
mas não tem a magistratura de influência; pode dissolver o Parlamento e marca eleições,
mas sobre proposta do primeiro-ministro.
É
verdade que a morte da rainha implica mudanças, designadamente no hino
nacional, nos selos, nas moedas e nas notas – o que não acontece nos regimes
republicanos. Porém, a grande mudança, devido ao rosto do novo Rei
Carlos III, começará a surgir nas moedas e nas notas no Reino Unido e em outros
países do mundo, bem como nos selos e nos passaportes; e o hino nacional britânico
vai passar a ser encabeçado como “God Save The King”, em vez de ““God Save The
Queen”.
A efígie de Carlos III também aparecerá em várias outras moedas usadas no
Canadá, Austrália, Nova Zelândia e nalguns países das Caraíbas. O mesmo acontecerá nas ilhas do
Canal de Jersey, Guernsey, na ilha de Man, bem como em Gibraltar, Santa Helena
e nas Malvinas (Falkland, para os ingleses), ilhas e territórios controlados
pela Coroa Britânica.
Em 1936, durante o reinado do Rei Eduardo VIII, que durou 326 dias, as
moedas foram cunhadas, mas o monarca abdicou antes de entrarem em circulação.
***
E, rainha
morta, rei posto, é de nos questionarmos sobre o futuro do Reino Unido.
As palavras da nova primeira-ministra proferidas após a sua eleição como líder
do Partido Conservador não auguram raios de grande esperança. Apostar em
excesso no comércio livre, privilegiar o trabalho com países que não os
europeus e dizer-se preparada para uma guerra nuclear auguram pouco de bom. Cederá
às pressões do Rei Carlos III para a tomada de medidas não científicas? Terão
razão as mulheres na crítica que lhe fazem de que a inclusão de rostos
femininos no elenco governativo em nada muda a situação da mulher britânica? E
Carlos III, o príncipe de passado controverso, diz continuar na linha de
princípios e atuação da falecida rainha. Como, se fez (Continuará a fazer?)
questão de pressionar a inclusão de medicinas alternativas, como a homeopatia,
no sistema nacional de saúde britânico? Como seguirá os princípios da rainha, se
mantiver o orgulho de ser inimigo do Iluminismo e continuar a defender que é
tempo de ir abandonando os seus princípios? (vd Público, de 10/09/2022, págs. 4-9)
Veremos se o novo soberano, sustentando que o regime de castas na Índia contribui
para a unidade nacional, não será fautor ou, pelo menos, observador de cisões
na Commonwealth, com a ligação à Coroa Britânica presa por um fio
em alguns deles, vendo nela resquícios do veterocolonialismo. Veremos se a
égide do novo soberano à governação dará tranquilidade aos súbditos e os tornará
mais cidadãos, se inspirará o diálogo frutuoso com a União Europeia (UE) e se o
diálogo com as outras potências será de igual para igual.
Aliás,
nunca percebi como se tolera o colonialismo britânico e outros, atacando-se,
por vezes ferozmente, o colonialismo português e o espanhol. Também não entendo
em que foi tão diferente e boa a colonização portuguesa em comparação com
outras. Colonialismo é sempre colonialismo, não valendo dourar a pílula. E a miscigenação
dos colonizadores portugueses tem a sua razão de ser. Talvez a necessidade de
sobreviver longe do torrão natal, com uma população cada vez mais rarefeita, e
a intenção de melhor garantir o domínio nos territórios ocupados… Não é por
acaso que o Estatuto do Indigenato, estabelecido em 1954, pelo Decreto-Lei
n.º 39.666, de 20 de maio de 1954, considerava
os indígenas como pessoas de segunda, não preparadas para acederem à nacionalidade
portuguesa. Ainda bem que foi abolido sete anos depois, pelo Decreto-Lei n.º 43893, de 6 de setembro.
Porém,
os povos ultrapassam os mandatos presidenciais, as vidas dos monarcas. Por isso,
o Reino Unido continuará.
2022.09.10 – Louro de Carvalho
Sem comentários:
Enviar um comentário