O
Banco Central Europeu (BCE) decidiu,
a 8 de setembro, a maior subida da taxa diretora de juros em 75 pontos base, em
vez dos 50 previstos, alegadamente para suster a inflação galopante. E,
reconhecendo o seu erro de previsão, admite que pode vir aí uma recessão. Na
verdade, o aperto da política monetária e as tensões geopolíticas e nos
mercados energético e alimentar deixam antever dificuldades a acrescer àquilo
com já se contava.
Nem o BCE, nem Christine Lagarde explicitaram que vinha aí “alguma dor para as famílias e
empresas” (disse-o Jerome Powell), mas as projeções macroeconómicas dos
economistas de Frankfurt tiveram efeito igual ao da franqueza do presidente do
banco central norte-americano no simpósio anual, em agosto, na
estância turística de Jackson Hole nos Estados Unidos (EUA).
As novas previsões do BCE
desdizem a esperança no abrandamento suave em 2023 na Zona Euro, acompanhado da desaceleração
acentuada da inflação, a aliviar a carteira das pessoas e junta-se-lhes
antecipação da subida das taxas diretoras nas três a quatro próximas reuniões,
uma escalada até final do primeiro trimestre de 2023, quando poderão ser
atingidos os níveis de taxas diretoras que o BCE julga capazes de inverter o
surto inflacionário.
O cenário-base previsto no BCE aponta para um crescimento económico
medíocre de 0,9% no próximo ano – um ritmo similar ao abrandamento de 2002
(acentuado em 2003), na sequência do afundamento da nascente economia dot-com nos países desenvolvidos. Por conseguinte,
o desemprego sobe até 7% em 2024, invertendo a trajetória de descida desde maio
de 2021 que levou ao mínimo histórico, desde a criação do euro, de 6,6% em
julho de 2022. A dinâmica do investimento desacelera de 3,1%, em 2022, para
1,6%, em 2023. O comércio externo cresce menos de metade do previsto para 2022.
Apesar de não haver sinais de espiral de aumento dos salários, os custos
unitários do trabalho sobem para as empresas de 2,8%, em 2022, para 4,1%, em
2023. E, ante a incerteza geopolítica da expansão russa e dos preços no mercado
energético na Europa, o BCE admite um cenário alternativo, em que o Produto
Interno Bruto (PIB) da Zona Euro pode cair 0,9% – quebra similar à de 2012, segundo
ano da crise das dívidas públicas das economias periféricas (onde se incluía
Portugal). Será o regresso da recessão que marcou a zona euro em 2009, de 2012
a 2013 e em 2020.
A maior sensibilidade da Zona Euro ao risco de recessão vem de uma
especificidade ultrapassa o estar na frente geopolítica da agressão russa. Como
adverte José Reis, professor na Faculdade de Economia da Universidade de
Coimbra, “aos choques conhecidos e à questão energética e de abastecimentos
soma-se a fragilidade produtiva a que a Europa se deixou chegar com a ilusão
das cadeias produtivas globais”. A isto acresce um risco geopolítico que
fragiliza a Zona Euro: “a periferização da Europa no contexto mundial”. O facto
de ter diminuído a sua capacidade de estruturação leva a que não se apresente
como “um espaço da economia mundial capaz de se organizar por si”. E alguns
economistas portugueses também se inclinam para o pessimismo, apontando como
difícil a Europa escapar a uma recessão, quiçá profunda e duradoura, em que a
política monetária do BCE poder pesar.
A subida do custo de vida e a queda do rendimento poderão arrefecer o consumo
privado e causar a recessão. As baixas reservas de gás natural poderão originar
um inverno mais rigoroso. A alta dos juros, na tentativa do BCE de desancorar
as expetativas de inflação, diminuirá o rendimento das famílias e penalizará a
procura, encaminhando gradualmente a economia para a recessão. A Itália pode
ter a sua situação política e orçamental deteriorada após as eleições
legislativas de 25 de setembro. As economias mais dependentes do turismo podem
resistir melhor. Seria o caso de Portugal, se não tivéssemos deficiente reserva
de água.
Segundo as projeções de Frankfurt, pelo menos até final de 2024, a inflação
vai manter-se acima de 2%. O surto vai durar mais de dois anos. A projeção
avançada a 8 de setembro é para uma inflação anual de 8,1% em 2022, 5,5% em
2023 e 2,3% em 2024. No entanto, alguns economistas admitem que o surto abrande
já em 2022, estando em aberto se o pico se registou em agosto (9,1%) ou não. O
preço do petróleo caiu de forma acentuada e a subida recorde das taxas de juro
pelo BCE contribuirá para o arrefecimento da procura e a apreciação do euro
evitará mais inflação importada. Mas o surto pode ser mais doloroso do que o
consenso de opiniões antecipa. No predito cenário alternativo, os economistas
do BCE projetam 8,4% em 2022, 6,9% em 2023 e 2,7% em 2024. Assim, o regresso à
estabilidade de preços fica mais distante.
A mexida nas duas taxas diretoras do BCE, a que estabelece o custo do
recurso do setor bancário a financiamento junto dos bancos centrais (a taxa
diretora principal que fixa o custo do dinheiro) e a da remuneração que o BCE
paga pelos depósitos dos bancos no sistema de bancos centrais tem influência
direta sobre as operações de mercado.
O encarecimento da taxa diretora principal do BCE repercute-se no custo de
financiamento geral à economia e a subida das taxas de remuneração dos
depósitos dos bancos torna mais atrativo o estacionamento da liquidez dos
bancos no BCE do que a sua aplicação no crédito à economia.
O reflexo destas decisões é a evolução da taxa Euribor no mercado. O choque
inicial para os devedores – nomeadamente para o crédito à habitação –
regista-se já em 2022: a taxa Euribor a três meses saltou de terreno negativo
(-0,57% no início do ano) para perto de 1% em setembro. Mas o choque prossegue
em 2023. A taxa média anual em 2023 projetada pelo BCE, no cenário-base, é de
2%, estabilizando em 2,1%, no ano seguinte. Assim, ao longo de 2023, a Euribor
a três meses duplicará em relação ao nível atual que já provoca “alguma dor”.
Por sua vez, os bancos podem não facilitar a expansão do crédito, pois o BCE
decidiu tornar mais atrativos os depósitos no seu sistema. Após oito anos com
taxas de remuneração negativas, o BCE decidiu, em julho, sair do terreno de
penalização dos depósitos dos bancos para remunerações positivas: 0,5% em julho
e 0,75% a partir de setembro. O objetivo da política monetária era incentivar o
setor bancário a reduzir o excesso de liquidez estacionado nos cofres do BCE e
a expandir o crédito à economia. Segundo estudo recente do BCE, a introdução do
sistema de dois escalões na aplicação da taxa negativa de -0,5% desde setembro
de 2019 mitigou o efeito penalizador. Em 2021, a taxa negativa média terá sido
de -0,38%.
A partir de julho passado, os bancos deixam de ser penalizados por liquidez
excessiva depositada junto do BCE. O incentivo de política monetária é, agora,
o inverso do anterior (de oito anos).
Não se sabe até onde irá a taxa de remuneração dos depósitos dos bancos. No
último inquérito do BCE junto dos analistas, a mediana das respostas apontava para
1,5% na reunião de março de 2023, perceção que pode já estar desajustada. E alguns
admitem que a desaceleração severa ou uma contração económica em 2023 pode obrigar
o BCE a fazer uma pausa no ciclo de subidas.
Outro reflexo do encarecimento do custo do dinheiro é a subida dos custos
de financiamento da dívida pública da Zona Euro nos mercados. Ainda a 14 de
setembro, o Tesouro português foi ao mercado colocar dívida a 10 anos e pagou
2,754%, muito acima da taxa de 1,694% que pagou em abril, aquando do lançamento
numa operação a vencer em julho de 2032.
Tomando como referência o mercado secundário da dívida, os juros (yields) da dívida pública dos países da Zona Euro a 10
anos subiram 40 pontos-base nos últimos quatro meses. Desde 8 de junho, na
véspera da reunião que decidiu descontinuar o antigo programa de compra de
ativos (de Mario Draghi em 2015), após as duas decisões, em julho e setembro,
de aumento da taxa diretora de zero para 1,25%, as yields médias da dívida a 10 anos subiram de 2,1%
para 2,5%. Contudo, o efeito altista nos juros das obrigações não foi idêntico
em todas as dívidas dos 19 membros do euro. A “fragmentação” é evidente sobretudo
nas economias periféricas.
Apesar de o BCE ter anunciado a flexibilização da gestão dos
reinvestimentos das amortizações da sua carteira obrigacionista, favorecendo a
estabilização da dívida dos mais frágeis, as projeções das yields são de continuação da subida, pelo menos,
até março de 2023, quando o conselho dos banqueiros centrais avaliar os
aumentos das taxas diretoras. Portugal poderá ter uma taxa de 4,3%, sendo o
periférico com o custo de financiamento mais baixo. Um fator que poderá agravar
esta subida será a descontinuação mais cedo do que o previsto do programa de
reinvestimento das amortizações na carteira do BCE e da flexibilização na sua gestão.
O objetivo é a redução do peso da carteira de títulos nos ativos do banco
central, o que se designa por aperto quantitativo
(QT, no acrónimo em inglês), por oposição ao alívio quantitativo (QE), que permitiu, através dos programas de
compras e dos reinvestimentos manter uma carteira de títulos num valor recorde.
Entretanto, os reinvestimentos no programa PEPP (pandemic
emergency purchase programme) continuarão,
pelo menos, até final de 2024 e os do programa mais antigo continuam sem data
limite. Uma parte dos bancos centrais do euro pressiona para a revisão desta
estratégia e para o emagrecimento da carteira de títulos do BCE, que soma mais
de 4,9 biliões de euros desde maio e que atingiu, em junho, o pico de 4963 mil
milhões, tendo descido para 4956 mil milhões a 2 de setembro (emagrecimento de
sete mil milhões).
O BCE deverá iniciar a discussão do tema na reunião de 5 de outubro, em
Chipre, que não visa a tomada de decisões de política monetária. Mário Centeno,
governador do Banco de Portugal, foi um dos que se levantaram contra esta pressão,
tendo declarado à Bloomberg que é prematuro discutir o QT. O BCE detém mais de
91 mil milhões de dívida obrigacionista portuguesa, sendo o nosso principal
credor, com mais de 30% do stock da
dívida pública, incluindo outros instrumentos de dívida não transacionável ou
em divisas estrangeiras e os empréstimos da troika e mais recentes da União
Europeia (UE) – do SURE (instrumento
de apoio temporário para mitigar os riscos de desemprego em emergência) e do
PRR (plano de recuperação e resiliência).
***
As medidas de apoio às famílias anunciadas pelo
Governo português são insuficientes, as de apoio às empresas são incipientes e
tímidas e as atinentes à poupança de energia, água e gás ficam-se pelas recomendações.
Os recursos alternativos de independência na produção e distribuição mal saíram
do papel. E a UE, que ditou, na crise de 2008, uma estratégia e a sua
contrária, desta vez, terá postura audaz, consensual e eficaz, como a Comissão
deixou antever? São precisas as contas certas para travar o défice e a dívida,
mas os cidadãos não podem definhar e morrer por falta de apoio. Não basta que não
nos tratem mal como na troika, mas urge que nos tratem condignamente.
2022.09.14 –
Louro de Carvalho
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