Enquanto
capacidade de usar símbolos, transmitir mensagens, educar, ensinar e
evangelizar, a arte faz longa, rica e diversificada caminhada ao longo da
história do cristianismo, desde as suas raízes bíblicas, mesmo judaicas até à
contemporaneidade. Na reflexão teológica, na diversidade de culturas e na necessidade
que o crente tem de expressar a fé, a Arte Sacra (não só religiosa ou mesmo
cristã) tem servido as comunidades cristãs, ora com parcimónia, ora com
excessivo esplendor, desde os primórdios até aos nossos dias. E, provavelmente.
assim continuará.
A
imagem é usada pela religião desde muito cedo na história humana. No atinente
ao cristianismo, importa ver como era pouco vulgar o uso da arte em Israel. O
seu culto era primitivamente prestado em lugares, montes, fontes, poços, com a
construção de altares de sacrifício. No Génesis,
Deus apresenta-se como Deus Criador e, em Gn 2, 7-8, 22, Deus cria o homem do
pó da terra modelando-o como o oleiro. A sua obra criadora é fonte de
conhecimento, beleza e prazer estético. E ao homem dá a ordem de conhecer e
dominar a obra criada segundo o coração de Deus.
Com
a sedentarização surge o imperativo de construir a Arca da Aliança (como guarda
da Lei) e, mais tarde, a construção do templo e o seu embelezamento artístico. A
arte era condicionada no culto israelita, sendo proibido o uso da imagem
esculpida, conforme consta no Êxodo e
no Deuteronómio (Ex 20,4 e Dt 5,8). Tal
proibição tem a ver com o culto a divindades zoomórficas e outras que influenciavam
o povo. Moisés enfrenta o problema, quando o povo constrói um bezerro de ouro, desvio
que suscita a ira de Deus. Porém, a exclusão do uso de imagens aplica-se apenas
no respeitante à idolatria, e não ao embelezamento ou à arte em si.
Quando
Moisés é incumbido de construir a Arca, são convocados artesãos capazes de
executar o trabalho e Deus garante a destreza e capacidade deles. O culto é
feito somente a Deus, nenhuma imagem é digna Dele e de O representar. Contudo, hoje
é usada no culto não para O representar, mas como instrumento para chegar a Ele.
A Arca da Aliança, que é como um trono para Deus, não é motivo de adoração, mas
símbolo da Aliança de Deus com o seu povo.
A
Arca, inicialmente, fica guardada na tenda, onde os sacerdotes prestam o culto
a Deus. Mais tarde, com David e com Salomão, ou seja, com sedentarização da
população, surge a construção do grande templo de Jerusalém, onde a arca é colocada.
A arte figurativa era quase inexistente, os abundantes motivos esculturais eram
geométricos. As imagens que o templo continha eram só as dos querubins da Arca
da Aliança, de animais, de bois, de leões e de plantas, bem como nos objetos
cultuais e nas vestes sacerdotais e levíticas. O medo da idolatria, acerca do
qual os profetas preveniam, estava muito presente. Por outro lado a arte, está
presente, na poesia, nos cânticos, nos salmos, na música. Contudo, a
criatividade humana está limitada, porque o homem caiu, e o pecado condiciona a
criatividade humana e a sua capacidade de a apreciar. Porém, através da fé em
Jesus Cristo, o homem pode ser reparado, se buscar a verdade através dos olhos
da fé e da razão e se viver em coerência com essa verdade.
No
seu contexto primitivo, a arte cristã ou paleocristã, tem as suas primeiras
expressões no contexto judeo-cristão (entre a Palestina e a Síria). O uso das
imagens era escasso. Era constituído sobretudo de símbolos, de letras, de
representações de animais e de plantas. As comunidades, com o tempo e pelo
contacto com outras culturas como a helénica, absorvem o gosto pela figuração. E,
ao espalhar-se pelo Império romano, a arte cristã ganha um peculiar teor
figurativo. A imagem, enquanto figura que retrata cenas do evangelho, é
apreciada pela capacidade didática. Abandona o teor judaico que nega a arte figurativa.
E, embora subsistam elementos geométricos e zoomórficos, começa a fazer-se uso
da imagem humana enquanto elemento da arte cristã e servidora da Liturgia. A imagem
não é por si o alvo do culto, mas serve o culto a Deus.
A
imagem da Divindade, dos anjos e dos santos por si é sem valor, mas o seu uso
pelo culto direciona para Deus, conta histórias, educa, é símbolo, torna-se a bíblia de quem não sabe ler. É
manifestação de fé do artista e daqueles que participam no culto com fé.
As
primeiras imagens de Jesus Cristo eram sobretudo alegóricas, não pretendendo
fazer um retrato seu. Por exemplo, a imagem do Bom Pastor era muito usada na
antiguidade cristã. O pastor era o “Logos”. Aquele que tudo criou, o original
de tudo o que foi criado. Nas Catacumbas de Roma e noutros lugares como Alexandria,
Grécia e Nápoles, nestes cemitérios, onde se prestava culto aos mártires cristãos,
encontra-se um tipo de arte simbólica que encaminha e conduz os crentes,
através desses símbolos como o peixe (em grego ICHTHYS que significa – Jesus
Cristo Filho de Deus Salvador) a simbolizar Cristo, o Bom Pastor, o
impulsionador da nova pesca.
Esta
arte simples era funcional, pois viviam-se tempos de perseguição e a arte teve
o papel de símbolo pelo qual, sem se revelar que se é cristão, se podia
comunicar a mensagem cristã. Com o Imperador Constantino, a arte cristã ganha
novas dimensões, mormente na arquitetura, na escultura, nos mosaicos e nos afrescos.
O cristianismo passa de tolerada a religião oficial: a sua arte sai para a rua,
iniciando uma nova época na arte cristã com a construção e embelezamento das igrejas
numa intenção cultual e pedagógica.
Da
necessidade do homem crente de contemplar o Sagrado surge o ícone. Foi no
Oriente que esta arte se desenvolveu e atingiu patamar ímpar. O ícone surge com
a imagem do Ressuscitado (o Pantocrator,
Senhor do Universo), cuja marca torna quase como que presente a Divindade para
o crente. É tal a força e importância que adquire esta arte que levará o
Oriente à crise iconoclasta, defendendo que os ícones devem ser destruídos, pois
temia-se que a imagem em si fosse o motivo do culto, e não Aquele que
representava. Contudo, esta crise é ultrapassada e a teologia dos ícones
amadurece: o ícone e a forma como é feito tornam-se bem mais do que mera
construção artística, o fruto do reconhecimento de Cristo na vida dos homens,
bem como de Maria, sua mãe. E, no II Concílio de Niceia, que restaura a ordem
na Igreja, os Padres quiseram conservar intactas todas as tradições da Igreja,
escritas ou não escritas, como é o caso dos ícones. Legitimou-se desta forma a
veneração destas santas imagens como representações de Cristo, da Virgem, dos anjos
e dos santos, que passam a ser forma de oração, de veneração e de didática.
A
arte cristã no Ocidente assimilou e respirava muito do espírito oriental e da
cultura artística helenística que prosperava. Assim, a dada altura ocorre uma
mudança na representação de Cristo: o Cristo sofredor – o Crucificado –
substitui o Ressuscitado. É o tempo do românico, em que a liturgia celeste que se
tornava presente na terra de cede lugar à historicidade e à narração da paixão.
É a fase do templo-fortaleza. Esta mudança surge devido à mudança de paradigma.
Do platonismo e da sua representação do mundo, passamos ao aristotelismo, que
visa a representação do real da forma, pois o objeto é feito de matéria e forma
e, pela abstração, atingimos o seu fundamento transcendental. Contudo no Crucificado
está o que vem a seguir à sua morte, a ressurreição na sua potência. Assim a Cruz
aponta para o ato supremo e amoroso de Cristo. Sublinha-se a humanidade de
Cristo, visto que é pela encarnação que Deus Se revela ao homem, pois quem vê o
Filho vê o Pai, cujo plano é elevar o homem às alturas do Céu.
Neste
contexto, acaba por irromper o estilo gótico, elevando-se na altura das catedrais
e fulgindo na luminosidade dos vitrais. O seu espírito é o de elevar, de fazer
transcender o homem caído, que agora se quer erguer com o Cristo da cruz. Este novo
estilo rompe com o anterior, pois as cadeias da morte foram quebradas e a
esperança está na cruz, como a árvore da vida e o novo trono de Deus. E ganha
importância a arte da iluminura, que visa embelezar os livros e ilustrar o
conhecimento cristão ou teológico e os livros litúrgicos, bem com obras
filosóficas e outras.
O
Renascimento, como nova etapa na arte, aponta para a beleza e para a perfeição
da execução técnica, mas vai perdendo a capacidade de fazer a ponte com o
transcendente. O espetáculo da beleza, já não apontando o que está para lá de
si, torna-se autossuficiente. A arte renascentista bebe do classicismo e do paganismo
dos Gregos e dos Romanos. Assim, a Arte Sacra deixa-se contagiar por esta nova
vaga artística e perde parte da capacidade de elevar o homem para Deus,
elevando o homem para si mesmo. Os mitos misturam-se com a história cristã e a
beleza é a medida desta arte, fazendo sentir mais o humano do que o divino. Isto
ocorre por força da mudança de paradigma: o modelo gótico, ainda remanescente
da arte bizantina, é contagiado pelo modelo grego pagão e clássico. Com a queda
do Império Bizantino, a Itália é contagiada por uma vaga de filosofia grega,
trazida pelos refugiados. Desse choque nasce o Renascimento. E a arte, centrada
agora no homem como seu modelo, é a alvorada do humanismo. A beleza ora
apontada é a das formas, das proporções, da cor, ou seja, do que se vê com os
olhos.
A
arte barroca, no atingente à Arte Sacra, bebe do espírito da Reforma da Igreja
(a chamada Contrarreforma). Salienta o lado didático da arte, a capacidade de passar
aos que a contemplam a mensagem de fé, evangelizadora, pelo que leva o homem
olhar o seu íntimo e visa o envolvimento com a Liturgia, terrena e celeste. O
homem, olhando o altar, deixa-se tocar pelo transcendente.
No
século XIX, após o período barroco, entra-se na decadência das artes plásticas
e na mundanidade, onde muito do que se colocou nas igrejas quase não pode ser
chamado Arte Sacra. Será arte religiosa, mas, com as devidas exceções,
falta-lhe genialidade artística. De certo modo, aproveitando a expressão alemã,
pode-se chamar de “Kitsch”. Por isso, o movimento litúrgico intervém nesta área
para revitalizar a arte do sagrado, incentivando os artistas. Despoja as
igrejas do que é medíocre e busca novo sentido para uma arte digna da liturgia
e adequada ao homem contemporâneo. O vazio criado e a pobreza artística de
muitas igrejas deste período são ainda hoje sentidos. É vazio que reflete o
vazio do homem contemporâneo. A ciência contemporânea marcada pelo positivismo
restringe a visão do mundo ao que pode ser provado e quantificado. E, tornando
o mundo opaco, a visão do transcendente fica restrita e a Divindade torna-se impercetível
ao olhar, a arte serve-se a si mesma, e não encaminha, não faz a ponte para
Deus.
Neste
estado da arte, São João Paulo II e Bento XVI, dirigindo-se aos artistas, dizem
que a arte deve ser feita pela visão dos artistas, mas os artistas de Arte Sacra
devem buscar a beleza na sua essência superior, através da fé, de modo que a
arte seja servidora do fim a que se propõem encaminhar, o de fazer a ponte
entre a liturgia terrestre e a celeste, conduzindo quem olha a arte litúrgica a
uma experiencia religiosa que não seja só um olhar sobre a obra, mas também um
olhar para o fim que a imagem se propõe evocar: Deus. Assim, a Arte Sacra deve ser fecunda e didática; deve ser
motor e ajuda da evangelização; deve ser a Bíblia de todos.
2022.09.21 – Louro de Carvalho
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