A ser verdade, é de lembrar que “em bom pano cai
a nódoa”, como reza o provérbio, ou “nem sempre as pessoas são o que delas se pensa.
Recordo-me de um cónego da Sé de Lamego, muito conhecido ao tempo, a quem
alguém dizia que “Vossa Reverendíssima é um santo, por isso, já tem o céu
garantido para quando morrer”. Porém, ele retorquia: “Isso é o que dizeis
agora, mas, quando todos nos encontrarmos no fim do mundo, ides apontar: ‘Olha
o malandro’!”
O jornal
holandês De Groene Amsterdammer
publicou, a 28 de setembro, testemunhos de alegadas vítimas de abusos sexuais,
quando eram menores, sobre crimes que terão sido cometidos, durante vários anos,
por D. Carlos Filipe Ximenes Belo, ex-administrador apostólico
de Díli e Nobel da Paz, em parceria com José Manuel Ramos-Horta
Na edição
online, o jornal revela ter ouvido
várias vítimas e vinte pessoas com conhecimento do caso, inclusive “individualidades,
membros do Governo, políticos, funcionários de organizações da sociedade civil
e elementos da Igreja”. Pelos vistos, mais de metade das pessoas ouvidas
conhecem pessoalmente uma vítima dos abusos e outros têm conhecimento do caso. Porém,
a jornalista Tjirske Lingsma refere que outras vítimas recusaram contar a sua
história nos media.
O jornal holandês em causa refere que os alegados abusos terão começado
ainda antes de Ximenes Belo ser nomeado bispo, quando era superior nos
Salesianos de Dom Bosco, em Díli, na década de 1980, em cujo colégio de Fatumaca era professor e diretor. Porém, os
timorenses ouvidos dizem que os abusos são da década de 1990. Uma das vítimas, hoje
com 42 anos (em 2002, tinha 22), alega que, ainda menor, foi alvo de abuso sexual
na casa de Ximenes Belo, a troco de dinheiro.
Algumas
primeiras denúncias dos alegados abusos foram dadas a conhecer a jornalistas no
início deste século. Formalmente, porém, não há detalhes públicos sobre se as
denúncias chegaram a ser formalizadas quer junto das autoridades policiais quer
junto do Vaticano.
As primeiras
investigações ao alegado abuso remontam a 2002, quando um timorense denunciou
que o irmão era vítima de abuso. E, em novembro desse ano, Ximenes Belo
anunciou a resignação do cargo, que exercia desde 1983, alegando problemas de
saúde e a necessidade de um longo período de recuperação. “Estou a sofrer de
fadiga mental e física, o que requer um longo período de recuperação” – dizia em
comunicado, informando ter solicitado à Santa Sé a renúncia.
O antigo
prelado, hoje com 74 anos, informou, entretanto, que o seu pedido, formulado ao
abrigo do cânone 401 § 2 do Código de
Direito Canónico, fora aceite pelo Papa São João Paulo II.
Na verdade, o
Vaticano confirmou, a 26 de novembro de 2002, através da Sala de Imprensa da
Santa Sé, e a 27, através do L’Osservatore
Romano, que “o Santo Padre aceitou a renúncia ao cargo de Administrador
Apostólico ‘Sede vacante et ad nutum Sanctae Sedis’ de Díli (Timor-Leste),
apresentada por Sua Excelência Dom Carlos Filipe Ximenes Belo, bispo titular de
Lorium, em conformidade com o cânone 401 § 2 do Código de Direito Canónico”. Ao mesmo tempo nomeou
Dom Basílio do Nascimento administrador apostólico de Díli.
A saída de
Ximenes Belo de Timor-Leste causou grande surpresa na sociedade timorense,
porque, até então, o bispo nunca havia dado a entender essa vontade. Mas, em
entrevista à agência de notícias católica UCA
News (Union of Catholic Asian News), em 2004, explicava que saíra do cargo em Díli para
ser sacerdote assistente em Moçambique, estando então a residir em Portugal.
Com a saúde restabelecida, em meados de 2004, D.
Ximenes Belo aceitou a ordem da Santa Sé para fazer trabalho
missionário na Arquidiocese de Maputo, como membro da congregação
dos salesianos (congregação de que era originário) em Moçambique,
entre 2004 e 2005. Depois regressou a Portugal, aos Salesianos na cidade do
Porto, onde reside atualmente.
Ainda assim, os contornos da saída de Ximenes Belo de Timor-Leste, em
novembro de 2002, nunca foram totalmente clarificados pelo Vaticano, com o
assunto a tornar-se tabu no país.
Fontes da
Igreja em Timor-Leste, segundo a Lusa,
explicaram que “nenhuma vítima” denunciou alegados abusos, de forma presencial
tanto na Nunciatura como na Igreja timorense, não havendo informações de
qualquer denúncia junto das autoridades civis. Contudo, apontam a realização de
uma investigação, cujos contornos não são conhecidos.
Em 2020, em
declarações à Lusa, um elemento superior
da Igreja Católica em Díli, a coberto do anonimato, escusou-se a revelar se
houve demissão formal de Ximenes Belo por João Paulo II. Porém, falou de instruções
para “ter um perfil baixo, não viajar, não mostrar insígnias episcopais, ter
uma atitude modesta”.
Parte do silêncio sobre o Nobel da Paz dever-se-á ao facto da postura do
Vaticano relativamente a abusos sexuais na Igreja ter mudado com os dois
últimos papas (Bento XVI e
Francisco), com a adoção de uma
política de “tolerância zero”, que vale em todos os casos, e também em
Timor. Houve, de facto, uma consciencialização
progressiva da Igreja e da sociedade sobre a gravidade do assunto e sobre a
atitude a assumir perante ele: a Igreja deve expulsar (Não crê na recuperação das
pessoas?!) e corrigir ao máximo possível este crime dentro da Igreja, sobretudo
no clero.
Nestes
crimes, independente do teor da legislação criminal dos países, para a Igreja “não
há prescrição” e, mesmo anos depois de investigados, recebem a sanção jurídica
e penal da Santa Sé.
O caso está
com os órgãos competentes da Santa Sé, disse à Lusa Marco Sprizzi,
representante do Vaticano em Timor-Leste, sem confirmar se o prelado foi investigado.
“Estão a examinar este artigo e o seu
conduto e de outros que estão a ser publicados neste momento. E, a partir
disto, qualquer resposta virá diretamente da Santa Sé.” O assunto está com
o Vaticano e com a Santa Sé, não tendo já competência direta a Igreja local nem
a Nunciatura.
Marco
Sprizzi disse à Lusa que o jornal
holandês foi “correto” e colocou várias perguntas à Nunciatura em Díli que
foram “transmitidas aos competentes Dicastérios da Santa Sé”. Todavia, recusou-se a confirmar se foram impostas restrições
ao bispo, como o impedimento de visitas a Timor-Leste, confirmando só que “não
foi laicizado” (retirado das funções eclesiásticas). E, questionado
sobre a saída de D. Ximenes Belo em novembro de 2002 – o que, na altura, causou
bastante surpresa – Sprizzi recordou que a “renúncia voluntária de Ximenes Belo
se baseou numa razão de saúde” e que a resposta oficial “não pode mudar, tendo
sido dada com base no direito canónico”. Porém, se algo tiver de ser
acrescentado, sê-lo-á pelos órgãos competentes.
Por seu
turno, a 29 de setembro,
em comunicado, Matteo Bruni, porta-voz do Vaticano, diz que o gabinete que lida
com casos de abuso sexual recebeu alegações “sobre o comportamento do bispo” em
2019 e que, no prazo de um ano, tinha imposto sanções. Tais sanções incluem limites aos movimentos do bispo e ao
exercício do seu ministério, bem como a proibição de manter contactos
voluntários com menores ou com Timor-Leste.
O mesmo comunicado
esclarece que estas medidas foram “modificadas e reforçadas” em novembro de
2021 e que, em ambas as ocasiões, o bispo aceitou formalmente o castigo.
Olav
Njølstad, diretor do Instituto Nobel da Noruega veio
a terreiro dizer que está “fora do âmbito de competências do Comité” retirar o
Nobel da Paz a Ximenes Belo, escusando-se a comentar o caso. “O Comité muito raramente
comenta o que um laureado com o Prémio da Paz pode fazer ou dizer nos anos após
receber o prémio ou sobre o que um laureado pode ter feito no passado sem relação
com o seu esforço premiado.” E, porque os estatutos excluem esta
opção, está fora
do âmbito de competências do Comité “retirar um prémio uma vez atribuído”.
José
Ramos-Horta, Presidente da República de Timor-Leste, que foi galardoado com o
Nobel da Paz, em 1996, ao mesmo tempo que Ximenes Belo, não comentou as
suspeitas dos alegados abusos sexuais do ex-administrador apostólico de Díli, aguardando
por mais informações da Santa Sé.
Viu as
declarações da Santa Sé, através da Nunciatura, à Lusa, e disse, para já, esperar pelos próximos passos, pelos
próximos desenvolvimentos, por parte da entidade legitima, com credibilidade,
que, “depois nos pode orientar sobre como gerir esta situação”.
***
Insisto: condenar e punir o crime é urgente, mas não é lícito jogar ao
lixo a pessoa, nem mesmo avaliá-la por uma vertente da sua personalidade, por
mais premente que seja. Em tudo deve apostar-se na justa medida, assente na
razoabilidade e na proporção. Concordo que o bispo seja impedido de exercer a
missão episcopal, mas não proibido de adequada e talvez discreta missão
sacerdotal. É preciso continuar a olhar o bispo como pessoa. Se queremos seres
sem pecado, sem erro… E pensar retirar-lhe o Nobel seria medida desajustada e
inadequada à punição pelo crime de abuso sexual de menor (pode nem ter sido
pedofilia).
Não deixa de ser verdade o que fez pela paz. Em
fevereiro de 1989, escreveu ao presidente de Portugal, Mário Soares
(com quem chegou a reunir), ao Papa São João Paulo II e
ao secretário-geral das Nações Unidas, Javier Pérez de Cuellar, reclamando
o referendo sobre a égide da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre o futuro
de Timor-Leste e a ajuda ao povo timorense que estava “a
morrer como povo e como nação”. E, quando a carta dirigida à ONU se
tornou pública em abril, tornou-se persona
non grata para as autoridades indonésias. Esta situação veio a piorar ainda
mais quando deu abrigo na sua casa a jovens que tinham escapado ao massacre
de Santa Cruz, em 1991, e denunciou os números das vítimas mortais.
Enfim, modus in rebus!
2022.09.29 – Louro de
Carvalho
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