Contou o padre Sérgio Filipe Pinho Leal que, num dos diálogos que tivera
com o Papa em Roma, num dos encontros sobre o caminho sinodal em curso, a
determinado momento, se azou a conversa sobre a proveniência do “padre da
sinodalidade” (a sinodalidade era tema da tese do padre Leal). E o episódico
interlocutor de Francisco disse que era proveniente de uma diocese de Portugal
cujo bispo só a pastoreou durante pouco mais de três anos, pois morreu
precocemente.
Francisco atalhou de imediato: “És do Porto”. Lembrava-se de que um dos
primeiros bispos que nomeara era português e que falecera inesperadamente: D.
António Francisco dos Santos.
Por sua vez, o padre Leal atirou: “Se calhar, Deus já se terá arrependido
de o ter levado tão cedo, dada a falta que faz na Igreja” (cito de cor). Porém,
o Santo Padre retorquiu: “Sabe melhor Deus o que faz do que tu o que dizes.”
São, de facto, insondáveis os desígnios da Providência. Se a morte deste
santo prelado tivesse ocorrido em idade mais provecta, possivelmente, dada a
habituação e o foco nas tarefas pastorais, levaríamos mais tempo a
apercebermo-nos da sua real oferta de vida ao Pai através dos outros, no quadro
do lema episcopal que adotou: “In manus tuas” (Lc 23,46).
De 11 de setembro de 2017 a 11 de setembro de 2022 vão cinco anos, um
quinquénio, um “lustro”, como significativa marca do tempo e da ação
sacrificial. Na verdade, lustro (do Latim, lustrum, relacionado com o verbo lauare, lavar), era o quinquénio,
o sacrifício expiatório, o ritual de purificação realizado a cada cinco anos
pelos censores, bem como o tempo do censo e o período entre dois anos bissextos
(a contagem em Latim incluía o terminus a
quo e o terminus ad quem). O
verbo lustrare significa visitar,
percorrer, andar à volta de um lugar para o purificar, passar revista a. A
evolução semântica do vocábulo resulta do facto de a cerimónia da purificação
ser, a princípio, acompanhada de procissão em torno do lugar que se queria
purificar e, mais tarde, da revista feita às tropas. Em segunda aceção, lustrare (relacionado com lux) significa alumiar, brilhar,
iluminar, esclarecer. Lustro, nome
derivado, por conversão, do verbo lustrar,
passou a significar brilho ou polimento de um objeto
(= lustre); fama, resplendor, glória ou brilhantismo
(= lustre); clarão súbito e rápido proveniente de descarga elétrica entre
nuvens ou entre nuvem e a Terra (= alustre, alustro, relâmpago). E dar lustro
é fazer com que algo brilhe, geralmente friccionado (ex.: dar lustro aos sapatos = lustrar).
Razão tem,
portanto, Adão Sequeira, um dos mais insignes aselistas, quando escreve, no
blogue da ASEL (Associação dos Antigos Alunos dos Seminários da Diocese de
Lamego), que “a mistura do
tempo, do brilho e da luz dão memória”, que é mister “avivar, ter e manter”. Ao mesmo tempo, admite que, se o tempo faz
distância, quase sempre “faz caminho”.
Pode, em meu
entender, aplicar-se em pleno a Dom António Francisco – acerca de quem é usual
dizer “convivemos com um Santo” – o teor da perícopa da 1.ª Carta de Paulo a
Timóteo assumida como 2.ª leitura da missa (1Tm 1, 12-17) do XXIV domingo do
Tempo Comum no Ano C, que, neste ano, caiu no dia 11 de setembro (em 2017, era
uma segunda-feira):
“Dou graças Àquele que me deu força, Jesus Cristo, Nosso
Senhor, que me julgou digno de confiança
e me chamou ao seu serviço. (…) A graça de Nosso
Senhor superabundou em mim, com a fé e a
caridade que temos em Cristo Jesus. (….) Obtive misericórdia, para que, em mim primeiro, Jesus Cristo manifestasse
toda a sua magnanimidade, como exemplo para os que hão de crer n’Ele, para a
vida eterna.
“Ao Rei dos séculos, Deus imortal, invisível e único, honra e
glória pelos séculos dos séculos.”
Sem revelar
nada que não possa, apraz-me – e devo – dizer que D. António se era totalmente apanhado
por Jesus Cristo e sabia que lhe era dada a graça de estado para desempenhar
com proficiência os misteres inerentes à sua missão, mesmo quando sentia alguma
incapacidade. Não é por acaso que, tal como referia D. Américo Aguiar, que
adotou o mesmo lema episcopal, Dom António Francisco, mesmo em qualquer escolho
do caminho mais problemático, tentava ver e fazer ver algo de positivo, por
mínimo que fosse, ou seja, o prelado que hoje teria 74 anos de idade tentava
perscrutar os sinais dos tempos, enquanto marcas de Deus num mundo conturbado.
Tem plena
razão Adão Sequeira ao evocar “este caminho de cinco anos simbólicos”.
A sua
caminhada episcopal, que nunca despiu a marca sinodal, começou aquando da
nomeação para bispo titular de Meinedo e auxiliar de Braga com o lema “In manus
tuas”, horizonte de que nunca se afastou, mas é a coroa de toda uma vida
apostólica. E terminou, de forma solene, em Fátima, na Capela das Aparições, a
9 de setembro de 2017, com o ato de entrega e de consagração da diocese e do
povo do Porto ao “regaço acolhedor da Mãe”. Foi em plena peregrinação
diocesana, que já não se fazia havia muitos anos, que se celebrou, à distância,
a dedicação da Sé Catedral do Porto, cuja titular é Nossa Senhora da Assunção. Porém,
a sua última aparição e tributo pastoral ocorreram no dia 10, subsequente ao
dia da peregrinação e véspera do dia da sua morte, numa das paróquias de Vila
Nova de Gaia, com o bispo a pôr de lado os papéis onde escrevera o testo da sua
homilia para falar espontaneamente sobre o significado daquela ação litúrgica
dominical. E, por ter começado a parafrasear o segmento lucano “Desejei
ardentemente comer esta Páscoa convosco, antes de padecer, pois digo-vos que
não mais a comerei, até que ela se cumpra no reino de Deus”, o pároco, face à morte inesperada no dia seguinte,
considerou premonitórias tais palavras que, aliás, não constavam dos textos da
liturgia daquela dominga.
Não
obstante, é emblemática a referência aproximante entre duas datas separadas por
50 anos: a 13 de maio de 1967, D. António Francisco visitou a “Mãe” em Fátima
pela primeira vez (era a primeira visita do Papa a Fátima: São Paulo VI); e, a
9 de setembro de 2017, aí voltou. Se não “foi lá que terminou o caminho da sua
viagem”, foi-o também sob a égide da “Mãe” nas imediações da Cidade da Virgem e
perto do santuário mariano da Serra do Pilar.
No Altar de
Fátima e do mundo, “sem pai, sem mãe, sem irmãos, mas rodeado do seu numeroso
clero”, como escreve Sequeira, “tem a glória de ter e ver a diocese em
peregrinação memorável (quase 80.000 almas) a rezar em hinos e cânticos de
louvor”, uma “peregrinação dinâmica da fé, da união, da Bondade, da alegria, do
sorriso e da esperança”.
Agora,
cremos na Comunhão dos Santos, aliás como devíamos crer em vida do ilustre
prelado. Na verdade, os santos, no profundo sentido batismal são os seguidores
de Jesus (a designação de cristãos só
aparece a partir de Antioquia). E esta comunhão é entre vivos e entre vivos e
defuntos. Abrange as graças espirituais, as orações, os méritos e deméritos de
cada um (que beneficiam ou lesam os outros), mas deve levar à partilha dos bens
materiais, não só dos essenciais à sobrevivência, mas também dos que a
civilização considera relevantes. Do céu, em teletrabalho com a eficácia de
Deus, D. António intercede por nós e obtém graças para quem necessita.
Os amigos (E
porque não devotos?) criaram o dinamismo “Caminhando com D. António”, que vive
e cresce há cinco anos. Em cada dia encontram uma virtude a imitar, uma bondade
a viver, no “homem de memória agradecida (...) que soube esquecer-se de si para
ser próximo de todos”. E topam “um caminho
de reflexão” sobre o homem, o pastor, o irmão, bem como “uma análise
meditada sobre tudo o que foi dito em momentos desinibidos em que o
sentimento e a verdade vieram à tona da comunicação”. É programático o que
proclamou em Fátima a 9 de setembro de 2017: “O caminho pastoral não se encerra
em nenhum lugar e a nossa missão não termina aqui nem agora. Este é, apenas, o
início de uma nova etapa de caminho nos desafios por Deus semeados no íntimo da
vida de cada um de nós (...) que nos dizem que há por toda a diocese dinamismo
e vigor, iniciativa e propostas de uma fé professada, celebrada, viva,
testemunhada e anunciada com alegria (...) porque a alegria do Evangelho é a nossa missão”.
Adão
Sequeira sublinha, no quadro da “Comunhão dos Santos”, as graças “já através
dele obtidas e ainda caladas”, como: a mãe que diz “a minha filha foi Ele que a
salvou”; o que revela que a covid lhe passou ao lado e foi a Ele que rezou; o
padre que agora não reza nem pede a outro santo, senão a Ele (talvez seja
excessiva tal exclusividade); e a quase oração publicada por alguém ativo na
comunidade “que a ternura do seu olhar (...) ilumine os nossos passos” (De
acordo!).
E Adão
Sequeira observa que o tempo de D. António culminou numa verdadeira “Oferta de Vida” com momentos de premonição
que ilustra com umas frases do bispo na homilia de 19 de julho de 2014, na
festa de Pai Américo, fundador da Obra da Rua, levado para o Pai quando os seus
tanto dele esperavam: “Partiu cedo de mais,
(...) deixando órfãos os seus filhos espirituais. São desígnios insondáveis da
Providência. Pertence-nos implorar de Deus a sua beatificação e canonização
para que a sua graça e a sua bênção se afirmem mais claramente em nós e na sua
vida e missão encontremos o exemplo a seguir.” Por isso, considera que não é ousadia repetir (e eu subscrevo) o
que disse à Igreja como tal e aos leigos como irmãos, a 8 de dezembro de 2017,
em Aveiro, na apresentação do livro In
Manus Tuas, o padre
Francisco Melo: “.... Convivemos com um
santo. Rezo para que as dioceses de Lamego, Aveiro e Porto iniciem,
quanto antes, o processo para que tal possa ser confirmado pela Igreja
Universal.”
2022.09.11 – Louro de Carvalho
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