A liturgia do 25.º domingo do Tempo Comum no Ano C apresenta-nos, em 1.ª
leitura, um trecho da profecia de Amós (Am 8,4-7), o “profeta da justiça
social”, que profetizou no reino do Norte (Israel) em meados do século VIII
a.C., no reinado de Jeroboão II.
Era época de prosperidade económica e de tranquilidade política, após as
conquistas de Jeroboão II que ampliaram significativamente os limites do reino
e facilitaram a entrada de tributos dos povos vencidos. Assim, o comércio e a
indústria – mineira e têxtil – conheceram largo incremento e as construções
burguesas nas cidades atingiram inéditos luxo e magnificência.
Com essa situação de prosperidade e de bem-estar das classes favorecidas
contrastava a miséria das demais. Obviamente, os despojos da guerra das
conquistas e os escravos de guerra foram postos ao serviço dos mais ricos e
poderosos. Além disso, a distribuição dos bens produzidos durante as conquistas
e agora (cada vez mais rarefeitos) era feita por comerciantes sem escrúpulos
que, aproveitando o seu bem-estar económico, especulavam com os preços, num
ambiente de agricultara meio abandonada por a mão-de-obra ser desviada para os grandes
empreendimentos. Ora, com o aumento dos preços dos bens essenciais, as famílias
de menores recursos endividavam-se e eram espoliadas das suas terras em prol
dos grandes latifundiários. A classe dirigente, rica e poderosa, dominava os
tribunais e subornava os juízes, impedindo que se fizesse justiça aos mais
pobres e se defendesse os direitos dos menos poderosos.
Neste ambiente, surge o profeta Amós, natural de Técua (pequena aldeia do
deserto de Judá), que não era profeta profissional. Chamado por Deus, deixou a
sua terra e partiu para o reino vizinho a gritar à classe dirigente a sua
denúncia. A rudeza do discurso, aliada à integridade e afoiteza da fé, trazendo
algo do ambiente duro do deserto, contrastava com a indolência e o luxo da
sociedade israelita da época.
O oráculo proposto nesta dominga denuncia asperamente as atividades dos que
“espezinham o pobre” e querem “eliminar os humildes da terra”. Os denunciados pelo
profeta são comerciantes sem escrúpulos, dominados pelo espírito do lucro,
cujos olhos só veem o dinheiro, que idolatram e guardam ciosamente. Porque têm
dificuldade em desapegar-se do dinheiro, compram aos agricultores os produtos
da terra a preços irrisórios e, porque pretendem avidamente aumentar o seu já
obsceno pecúlio, revendem-nos aos pobres a preços exorbitantes, especulando com
as necessidades dos humildes. E, não contentes com isso, roubam os clientes
pobres, usando pesos, medidas e balanças falsas; aldrabam a qualidade dos
produtos, misturando as cascas com o trigo; e, nos dias de sábado e de lua nova
(dias sagrados, por isso de suspensão das atividades lucrativas), em vez de se
dedicarem ao louvor de Deus, estão ansiosos por recomeçarem os negócios de
especulação e de exploração do pobre, a fim de aumentarem escandalosamente os
seus lucros.
Nem reparam que tudo isso configura violação grosseira dos mandamentos da Aliança.
O Senhor não aceita ser cúmplice da injustiça e da exploração do pobre.
Qualquer crime cometido contra os pobres é crime contra Deus. Por isso, Amós
anuncia que Deus não deixa passar em claro este comportamento, antes intervirá
para acabar com a exploração e a injustiça. A fórmula solene de juramento “o
Senhor jura pelo orgulho de Jacob” significa a irrevogabilidade da decisão de
Deus.
O Evangelho (Lc 16,1-13) apresenta a parábola do administrador astuto, em
que Jesus oferece aos discípulos o exemplo do homem – esperto – que percebeu
como os bens do mundo são caducos e precários e que os usou para assegurar
valores mais duradouros e consistentes. Jesus adverte os discípulos para usarem
de esperteza, não de mentira e de roubo ou de indução dos outros à mentira e ao
roubo, mas das habilidades honestas de que forem capazes para fazerem amigos
com o vil dinheiro. A referência evangélica desta dominga configura mais um
passo do “caminho para Jerusalém”. Jesus, desta feita, não Se dirige aos
fariseus, mas aos discípulos de então e aos de todos os tempos. Através de uma história
de contornos de caso real, Jesus instrui acerca da forma como se situar face
aos bens do mundo. O teor do texto gravita em torno da sábia utilização dos
bens materiais, que devem servir para garantir outros bens, mais duradouros.
Em primeiro lugar, a parábola do administrador sagaz, acusado de gerir de
modo incompetente (até desonesto) os bens do amo, mostra-no-lo chamado a contas
e despedido. Ante esta imprevista situação existencial, o homem preocupa-se em
assegurar o futuro. Chama os devedores do patrão e faz-lhes redução considerável
das quantidades em dívida, crente de que os ora beneficiados, não esquecendo a
generosidade do agora benfeitor, lhe manifestarão, mais tarde, a sua expectável
gratidão acolhendo-o em sua casa. É caso para nos interrogarmos se estes
beneficiados não esquecerão futuramente o benefício, tal como dá para nos
questionarmos se é justificável o procedimento deste administrador, que
assegura o futuro, de modo fraudulento, à custa dos bens do seu amo. E é de estranhar
como o amo, prejudicado nos seus interesses, não tem uma palavra de reprovação
ao inteirar-se do prejuízo recebido e como pode Jesus dar como exemplo aos
discípulos as diligências de ocultação da verdade e de roubo da parte deste administrador.
Segundo as leis e costumes da Palestina ao tempo, o administrador de uma
propriedade agia em nome e em lugar do amo e, como não recebia remuneração,
ressarcia-se dos seus gastos a expensas dos devedores. Habitualmente, o
administrador apresentava ao amo um determinado número de bens de cada devedor,
mas longe do que o devedor tinha em dívida, ficando a diferença por conta da
“comissão” do administrador.
O certo é que o amo, tendo dado conta ou tendo sido informado da administração
incompetente e desonesta do seu administrador, lhe retirou a confiança e o
despediu. Assim, o que administrador perspicaz terá feito foi renunciar ao
lucro imediato que lhe era devido, assegurando a gratidão dos devedores:
renunciou ao lucro imediato para assegurar o futuro. E, se é chamado “desonesto”,
não o é por este gesto com os devedores, mas pelos atos anteriores, que levaram
o patrão a despedi-lo. É, pois, um exemplo de perspicácia e de sagacidade: sabe
que o dinheiro só tem um valor relativo, pelo que o troca por valores mais
significativos, como a amizade e a gratidão. Jesus conclui a história
convidando os discípulos a serem tão hábeis como este administrador, usando os
bens deste mundo, não como um fim, mas visando algo mais importante e mais
duradouro: os valores do Reino de Deus.
Num segundo momento, o evangelista apresenta uma série de sentenças de
Jesus sobre o uso do dinheiro, que advertem os discípulos para o bom uso dos
bens materiais: se souberem fazer uso deles, tendo em conta as exigências do Reino,
receberão o verdadeiro bem, quando se encontrarem em definitivo com o Ressuscitado.
O texto evangélico conclui com o aviso de Jesus sobre a deificação do dinheiro:
Deus e o dinheiro são mundos contraditórios, de impossível conjugação. Por
isso, os discípulos são instados a optar entre um mundo de egoísmo e de
exploração e um mundo de doação, de partilha, já que é impossível servir a dois
senhores: Deus e o dinheiro.
***
O texto de Amós tem paralelo no Novo Testamento, por exemplo na Carta de Tiago, o Amós do Novo Testamento, devido à sua preocupação com a justiça social. Os cristãos a quem Tiago se dirige enfrentavam um ambiente de crise, com problemas pessoais (enfraquecimento da fé e risco de apostasia) e outros maiores em suas assembleias, devido à religiosidade e hipocrisia de alguns, ao servilismo de outros e à acumulação excessiva e indevida de bens por parte de uns poucos. Neste contexto, alguns cristãos despendiam absoluta atenção aos ricos (Tg 1,9-11; 2,1-13), ficando aumentado o número de pobres, enquanto outros eram roubados pelos ricos (Tg 5,1-6). Tudo isto se devia a imaturidade e pouco esclarecimento na fé.
Assim, Tiago aconselhou os cristãos que
possuíam já maturidade espiritual para que auxiliassem o mais fraco na fé a
voltar a prática do verdadeiro evangelho de Cristo e tal irmão receberia de
Deus a devida recompensa.
É dura a invectiva de Tiago aos ricos: “E agora vós, os
ricos, começai a chorar e a gritar por causa das desgraças que estão para cair
sobre vós. Tendes as riquezas podres, as roupas roídas pela traça, o
ouro e a prata enferrujados. E a sua ferrugem testemunhará contra vós e como
fogo vos devorará a carne. Vós amontoastes tesouros para o fim dos tempos. Vede
o salário dos trabalhadores que fizeram a colheita nos vossos campos, retido
por vós, a clamar. Os protestos dos cortadores chegaram aos ouvidos do Senhor
dos exércitos. Vós tivestes na terra uma vida de conforto e luxo. Vós estais
a ficar gordos para o dia da matança. Vós condenastes e matastes o justo, e ele
não conseguiu defender-se.” (Tg 5,1-6) E, a garantir que Deus prefere os pobres, Tiago
questiona: “Não foi Deus quem escolheu os
que são pobres aos olhos do mundo, para torná-los ricos na fé e herdeiros do
Reino que ele prometeu àqueles que o amam? Porém, vós desprezastes o pobre! Ora, não são os ricos que vos oprimem e vos
arrastam perante os tribunais? Não são eles que difamam o nome sublime que foi invocado sobre vós?”
(Tg 2,5-7)
E, no Evangelho de Lucas, Jesus invetiva os ricos: “Ai de vós, os ricos,
porque já recebestes a vossa consolação! Ai de vós, os que estais saciados,
porque haveis de ter fome!” (Lc 6,24-25)
***
É
importante vigiar em tempo de crise, seja ela económica, social, cultural, política,
bélica ou religiosa. Importa que não nos deixemos arrastar para o servilismo e
para a adulação, como importa que saibamos encarar a vida, trabalhando pela
subsistência, pedindo ajuda quando dela necessitarmos, reivindicando a satisfação
dos direitos, cumprindo os deveres, honrando os compromissos, denunciando os abusos
de poder e de enriquecimento e criando ou incrementando as ondas de solidariedade
necessárias. A dignidade da pessoa humana o merece, o bem da comunidade o
exige, o reino de Deus o sublima.
2022.09.18 – Louro de Carvalho
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