A 24 de fevereiro, 2.º aniversário da invasão russa, Volodymyr Zelensky, presidente
ucraniano, homenageou os soldados que tombaram na guerra, em cerimónia solene
com a presença da presidente da Comissão Europeia e dos primeiros-ministros da
Bélgica, da Itália e do Canadá.
A cerimónia decorreu no aeroporto de Gostomel, a poucos quilómetros da
cidade de Bucha, local com grande simbolismo, por ter sido palco de uma
terrível batalha nos primeiros dias da invasão russa iniciada a 24 de fevereiro
de 2022. Na altura, as tropas do Kremlin estavam nos arredores de Kiev e, tal
como em Bucha, os soldados ucranianos foram alvo de um massacre que incluiu muitos
atos russos considerados crimes de guerra.
“Venceremos”, bradou Zelensky, frisando que os Ucranianos estão a lutar por
isso há 730 dias.
Na cerimónia, a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen,
elogiou a resistência da Ucrânia durante a guerra, e garantiu o apoio da União
Europeia (UE), “enquanto for necessário”.
O presidente Zelensky “salvou o seu país e deu uma hipótese à resistência
ucraniana. Na semana passada, abateu sete caças, levou [os Russos] de volta ao
Mar Negro e retomou o comércio. Isso parecia impossível há dois anos”, disse
Von der Leyen, acrescentando: “Lembremo-nos de como [os Ucranianos] chegaram
tão longe. Confio que a Ucrânia continuará a surpreender-nos a todos. Enquanto
for necessário, fornecer-lhe-emos apoio financeiro, munições e continuaremos a
treinar soldados e a investir na indústria de defesa europeia.”
A primeira-ministra italiana, Georgia Meloni – com a intenção de assinar um
acordo bilateral de segurança com Zelensky –, garantiu acreditar “que a Ucrânia
também está a lutar pela liberdade e interesse nacional” dos Estados europeus.
“A Ucrânia faz parte da nossa nova casa” e “nós faremos a nossa parte na
sua defesa”, afirmou Meloni, que, enquanto presidente do G7 (grupo dos sete
países mais industrializados), organizou uma videoconferência com os sete
líderes dos países para a efeméride, com resultados positivos. “Este local é o
símbolo do fracasso de Moscovo e do orgulho da Ucrânia, os planos de Putin
foram interrompidos aqui. Lembra-nos que há algo mais forte do que mísseis e
guerra: amor pela terra e liberdade”, acrescentou Meloni.
Por seu turno, o primeiro-ministro canadiano, Justin Trudeau considerou: “As
tropas russas tentaram tomar rapidamente o aeroporto [de Gostomel] e, com ele,
a capital ucraniana.” “E hoje estamos aqui, porque falharam, como falharam em
muitas outras coisas”, vincou, elogiando a coragem ucraniana e reafirmando o
apoio do seu país à Ucrânia.
***
Os Ucranianos habituaram-se ao som das sirenes. O peso da
guerra é a presença constante em todas as esferas de uma sociedade que já sabe coabitar
com o perigo. As mãos já não tremem e o quotidiano passou a depender de
pequenos gestos de uma vida normal. O uso de drones dão a muitos elementos do
povo a sensação de que o perigo é mais longínquo e as pessoas doentes ou
debilitadas hesitam entre permanecerem em casa ou ir para os abrigos. Todavia,
as sirenes continuam a soar, ainda que os canais de monitorização das redes
sociais nem sempre revelem qualquer perigo, até àquele momento do alarme.
Muitos dos avisos são fornecidos à população via Telegram, rede social criada pelos
Russos. E, embora os Ucranianos, com a invasão russa do seu país, tenham
recusado o consumo de produtos provenientes do agressor, não prescindem da
aplicação Telegram, uma das mais
populares redes sociais no país e que funciona como ferramenta que ajuda os Ucranianos
a manterem-se seguros. Ao longo destes dois anos de guerra, formaram-se vários
canais de monitorização, que divulgam informação quase instantânea sobre as
razões para os alertas de ataque aéreo em cada região. Os voluntários que os
sustentam seguem milhentas contas nas redes sociais, escutam frequências de
rádio e recebem comunicações diretas de fontes operacionais no terreno. É,
pois, um serviço público de 24 horas com atualizações quase imediatas sobre
bombardeiros que tenham levantado voo, sobre mísseis lançados, sobre drones acionados
e os percursos que levam, sobre explosões (onde ocorrem), sobre a atividade dos
sistemas de defesa aérea e sobre vários outros detalhes que permitem aos Ucranianos
tomarem decisões conscientes do que fazer a cada momento.
Há noites em que até nos abrigos as paredes estremecem e as
explosões ecoam de tal modo que os mísseis parecem cair todos ali à volta. O
espaço dos abrigos é grande e alberga centenas de pessoas, mas não é confortável.
Os abrigos são frios, húmidos, sem casas de banho, sem lugares para se sentarem,
e ecoam tanto que o choro de qualquer criança se torna potencialmente muito intenso.
Porém, são suficientemente profundos para as pessoas se sentirem seguras.
Os dois anos de guerra em larga escala são palco de
constantes ataques aéreos, de notícias quase diárias de feridos e de mortos, o
que alterou a perceção do Mundo para os Ucranianos. No início, diziam às pessoas
que a vida de antes acabara. Porém, elas não compreendiam e não acreditavam. Agora,
percebem ao que se referia quem as avisava. Têm uma vida que “corre num tempo
mutilado”, dizem alguns. As lembranças do tempo de paz, de convívio alegre entre
as pessoas e com a Natureza criam nostalgia e as pessoas estão convictas de que
o tempo anterior não voltará. Ainda que a guerra acabe, nada será como dantes. O
peso constante da guerra, peso que decide tudo nas vidas das pessoas, parece
ter vindo para ficar. Até a noção do tempo mudou, os dias baralham-se com as semanas
e os meses parecem anos.
As pessoas vivem com a consciência de perigo
constante, a longo prazo, e agarram-se a todas as possibilidades de ter uma
vida relativamente normal. A sociedade ucraniana transformou-se. Nos primeiros
meses depois de 24 de fevereiro de 2022, sentia-se uma forma de estar inquieta
e reativa.
O medo das pessoas de todas as idades era palpável.
A guerra era desconhecida para a maior parte. Embora o país combatesse os Russos
no Donbass, desde 2014, poucas pessoas sabiam o que era acordar ao som de
explosões. Havia a esperança de que tudo acabaria depressa. Nas filas para os
centros de recrutamento, rejeitavam muitos homens que se queriam alistar no
exército, porque o número de voluntários era superior ao das armas. As
fronteiras com a Polónia e com a Roménia transbordavam de mulheres, de crianças
e de idosos que, sem saber o que os esperava dentro do país, arriscavam o
desconhecido Mundo estrangeiro. Fecharam as escolas, os museus, os teatros, os restaurantes
e até a maior parte das farmácias. Os bancos limitaram o dinheiro que se podia
levantar. O mundo ucraniano parou. Em Kiev, as ruas ficaram vazias.
Muitos optaram por ir para o oeste do país, junto da
fronteira com a União Europeia (UE) e com os países da Organização do Tratado
do Atlântico Norte (NATO); outros esperavam nos arredores da capital, por
acreditarem que o fumo não correspondia ao fogo. Porém, semanas mais tarde,
soube-se que as forças russas mataram centenas de civis nas pequenas cidades, a
norte da capital. Histórias de torturas e violações chocaram o Ocidente e os Ucranianos,
sobretudo os que viviam e repetiam a propaganda soviética e acreditavam que Russos
e Ucranianos são “povos irmãos”.
O ódio de muitos Ucranianos para com os Russos não é ódio
contra um país qualquer, mas ódio por um familiar morto, torturado ou violado,
bem como por património destruído.
Mariupol, cidade com 540 mil habitantes e com forte indústria,
foi um dos pontos mais negros da guerra. O cerco à cidade durou três meses. Os
relatos dos que escaparam dão conta de longos e intensos combates, de cadáveres
de civis amontoados nas ruas, da constante presença de explosões que tornou o
silêncio ameaçador, de destruição sem fim à vista e de uma vida à beira do
colapso, sem água, sem comida, sem eletricidade e com temperaturas negativas. Esperam
que Mariupol volte para as mãos dos Ucranianos cerca de 4,9 milhões de
deslocados internos e 6,7 milhões de refugiados que estão no estrangeiro.
É muito difícil imaginar os números dos soldados mortos nos
últimos dois anos, nos dois lados da linha da frente. Nenhum dos países anuncia
as baixas entre os próprios efetivos, mas as estimativas divulgadas por
oficiais norte-americanos, no verão de 2023, davam conta de 120 mil mortos,
entre os soldados russos, e de 70 mil, entre os ucranianos. No entanto, são
dados que servem apenas de ponto de partida, pois a realidade é ainda mais
dura. A julgar pelos cemitérios ucranianos, onde as campas se multiplicam a uma
velocidade incrível, o peso de soldados mortos, se o número fosse conhecido,
poderia esmagar a população.
Vitaly Portnikov, politólogo ucraniano, espera que o tempo venha
a acabar sempre com “a renovação do direito internacional, com a construção de
uma nova ordem mundial e com a Ucrânia de volta às fronteiras de 1991. A questão
é quando e como se processará isso, quando e como estará a Ucrânia nessa
altura. As suas previsões são claras: a Ucrânia vai recuperar todo o território
que está sob ocupação russa. Resta saber o que significa isso.
O politólogo admite como real a possibilidade de a Ucrânia
voltar para a esfera de influência russa. “A guerra acaba, os agentes de
influência russos voltam para a Ucrânia e os atores antirrussos são
politicamente marginalizados”, teoriza. A única opção de isso não acontecer,
segundo o politólogo, é a Ucrânia entrar para a NATO, “o mais rapidamente
possível, a começar pelo território que está sob controlo de Kiev e, depois,
espalhar-se para o resto do país”.
Nisto, coincide com a proposta de Anders Fogh Rasmussen,
antigo secretário-geral da NATO, que defende a aceitação da Ucrânia como membro
de pleno direito, na próxima cimeira, no verão de 2024, mas sem os territórios ocupados
por Moscovo. Zelensky disse que não vê forma de tal acontecer, mas Portnikov
garante que há um grupo de pessoas “a trabalhar para isso” e acredita que a
política de isolacionismo da Rússia vai quebrar o país, mais tarde ou mais
cedo.
O politólogo sustenta que a Rússia é parte da civilização
ocidental e que é autoritária e anacrónica, pois lê Alexandre Dumas e
interpreta ‘Os Três Mosqueteiros’, mas não lê Confúcio, nem poetas da Coreia do
Norte ou da Índia. Deseja que a guerra acabe e diz que 2024 pode ser um ano de
negociações, não como a Ucrânia nem como Vladimir Putin querem. Não acredita na
escalada do conflito, pois Moscovo não terá capacidade para isso, agora. Pode,
contudo, a frente continuar a congelar, acabando o ano como acabou 2023,
admite. Não compreende a narrativa de desnazificação de Putin, para justificar
a invasão à Ucrânia, “porque todos os sinais de fascismo que nós vemos são do
lado russo: intolerância perante o outro, verbalização de ideias antissemitas,
xenofobia, intolerância perante as minorias sexuais e aprovação de leis
concordantes com isso”.
***
Entretanto, enquanto a guerra corre bem, às vezes à Rússia e às vezes à
Ucrânia, o vice-presidente executivo da Comissão Europeia, Valdis Dombrovskis,
apela à entrega da parte dos Estados-membros de munições à Ucrânia e a
investimentos nacionais em capacidades de defesa na UE.
Nas declarações à chegada ao segundo e último dia da reunião dos ministros
das Finanças da UE, na cidade belga de Gante, no quadro da presidência rotativa
do Conselho assumida pela Bélgica, Dombrovskis disse ser “evidente que a UE
terá de prestar muito mais atenção às suas capacidades de defesa e às capacidades
da sua indústria de defesa”. “Precisamos de trabalhar em conjunto para a desenvolver
e, obviamente, isto também significa mais despesas ao nível dos
Estados-membros, porque sabemos que muitos dos Estados-membros da UE ainda não
estão a cumprir o objetivo da NATO para as despesas de defesa de 2% do PIB”,
vincou.
Questionado sobre a emissão de dívida conjunta na UE para a Defesa,
referiu: “Sobre os instrumentos exatos, é evidente que temos de fazer mais, tanto
ao nível nacional como da UE.”
A economia ucraniana procura recuperar, apesar da guerra, que é suportada,
em grande parte, pela ajuda militar e financeira internacional. Já no âmbito
militar, é de referir que, a 1 de fevereiro, os líderes da UE acordaram num
apoio financeiro de 50 mil milhões de euros à Ucrânia; nas últimas semanas, a
Ucrânia assinou acordos bilaterais de segurança com o Reino Unido, com a França
e com a Alemanha e está a negociar pactos similares com outros países; e vários
governos europeus insistem na necessidade de coordenar melhor o fornecimento de
equipamento à Ucrânia.
Perante a situação de impasse, a Rússia continua a mobilizar homens; a
Ucrânia, entre o cansaço e um novo vigor, tem apoio renovado e aumentado da
Europa, do Canadá e da Casa Branca.
2024.02.24 – Louro de Carvalho
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