Os descendentes de católicos portugueses viveram pacificamente, no centro
de Myanmar, durante séculos, mas, desde o golpe de 1 de fevereiro de 2021, enfrentaram
a crueldade de um exército impregnado de nacionalismo budista.
Uma reportagem, de 25 de agosto de 2023, da edição em Inglês
da revista birmanesa Frontier Myanmar, refere que, um autocarro obrigado a parar num posto de
controlo militar, no município de Ye-U, na região de Sagaing, uma mulher de 31
anos sobressaía pela altura, pelos olhos azuis e pelas caraterísticas faciais
incomuns. E um soldado exclamou: “Vou levar este kalar ma [termo
depreciativo mais aplicado a muçulmanos e sul-asiáticos] para interrogatório
durante algum tempo. O resto pode seguir.”
Temendo o
que iria acontecer, os aldeões Chan Thar protestaram, o que gerou furiosa repreensão
da parte dos soldados, que apontaram ameaçadoramente as armas para os
passageiros. Estes gritaram com os soldados e imploraram, mas os soldados
disseram que, se não fossem, matariam todos os passageiros e queimariam o
autocarro. Os passageiros ficaram com muito medo e nada podiam fazer para
deterem os militares.
A mulher em
causa foi rudemente arrastada para fora de vista, pelos soldados e, quando o
autocarro se afastou com relutância, foram ouvidos dois tiros.
A aldeia de
Chan Thar é famosa por ter uma grande população de Bayingyi, ou seja, católicos
romanos de ascendência portuguesa que vivem em Myanmar, há séculos. Após
centenas de anos de casamentos mistos, muitos são, agora, fisicamente
indistinguíveis das populações vizinhas de Bamar, mas outros destacam-se. Isto
pode ser perigoso, em Mianmar, onde os militares pregam um tipo tóxico de
supremacia Bamar e de nacionalismo budista.
A 12 de
outubro de 2022, a mulher em causa foi à cidade de Ye-U comprar suprimentos
para a sua loja. Como de outras vezes, passou por postos de controlo
ocupados tanto por militares como por grupos armados, formados em oposição ao
golpe, amplamente conhecidos como Forças de Defesa Popular (PDF). Ela era
frequentemente chamada de lado, para interrogatório pelos militares, devido à
sua aparência incomum, e questionada sobre sua etnia e de onde era.
A mulher que
a acompanhava, de regresso à aldeia, contou à família o que havia
acontecido. E, naquela noite, o PDF local atacou o posto de controlo
militar, recuperando um corpo queimado de mulher com ferimentos de bala. Era
o corpo da mulher desaparecida.
A aldeia de
Chan Thar fica a cerca de 10 quilómetros a oeste da cidade de Ye-U e é um
dos aglomerados Bayingyi mais proeminentes do país. Antes do
golpe, tinha cerca de 530 famílias e uma população de dois mil habitantes, a
maioria dos quais católicos romanos. A sua presença é uma caraterística
incomum da Zona Seca do centro de Mianmar, o coração de Bamar.
Chegaram ao
que é hoje Nyanmar, pela primeira vez, no final do século XVI, comerciantes e
aventureiros portugueses, incluindo Filipe de Brito e Nicote, que governou
Síria, cidade portuária perto da atual Yangon, antes de ser derrotado e
empalado pelo rei da dinastia Taungoo, Anaukpetlun. O rei reuniu quatro mil
a cinco mil dos restantes colonos portugueses e mandou-os para o Norte, para a
capital real de Ava, na Zona Seca, onde o sucessor, o rei Thalun, lhes concedeu
terras no interior rural do que é, hoje, a região de Sagaing.
Quase um ano
após o assassinato da mulher em referência, a aldeia de Chan Thar foi quase
completamente destruída por repetidos ataques militares e por incêndios
criminosos. Como a maioria dos moradores, ela e a família tiveram de se
mudar e fugiram em abril de 2022.
Um residente
de Chan Thar, cuja casa foi incendiada em 2022, disse que a aldeia fora invadida
sete vezes, com sete civis mortos confirmados e mais cinco desaparecidos e
presumivelmente mortos. Isso aconteceu duas vezes, em 2021, três vezes, em 2022,
e duas vezes, em 2023. Supostamente foram alvo com frequência, porque se trata
de “uma aldeia cristã”.
Dois dos
civis assassinados teriam sido mortos durante uma operação de cerca de 130
soldados, em 10 de janeiro de 2022. Ambas as vítimas apresentavam ferimentos
que mostravam sinais de tortura grave, segundo um membro do Ye-U PDF, que disse
ter sido uma vítima encontrada com as mãos amarradas nas costas e a cabeça
afundada. Depois, as tropas escreveram mensagens grafitadas, prometendo matar
também todos os outros kalar da aldeia.
Tais
mensagens ameaçadoras foram tema comum nas entrevistas nas aldeias de Bayingyi.
E Frontier viu várias fotografias que mostram frases similares
rabiscadas nas paredes dos edifícios.
A sensação é
de que os militares odeiam aquela gente. Por todo o lado, escreviam frases como
“Sai do kalar.” E, em maio de 2023, os militares destruíram quase todos os
edifícios da aldeia.
Antes,
quando uma coluna militar partia, os aldeões voltavam a correr, para verem de
quem era a casa que havia sido incendiada e de quem eram as que ainda estavam
de pé, mas, agora, quase todas as casas pegaram fogo, pelo que não há
necessidade de verificar.
Os militares
nem sequer pouparam as igrejas, muitas das quais têm centenas de anos, o que deixou
os residentes com o coração partido, sobretudo quando destruíram a igreja da
Assunção de Maria, que foi construída em 1894.
Em maio de
2022, foram divulgados vídeos nas redes sociais que mostram os restos
carbonizados da aldeia de Chaung Yoe, no município de Taze, ao norte de
Ye-U. Entre as ruínas, estavam os destroços de uma igreja de 120 anos. “Desde
o ano passado [2022], não consigo regressar”, disse um residente, que se
abrigou numa aldeia próxima.
Ko Saw,
membro do grupo de resistência da Organização das Forças Especiais Khin-U,
disse que, além da perseguição religiosa, os militares têm como alvo igrejas,
para privar os civis de abrigo. Há décadas que os militares têm como alvo
populações civis que suspeitam apoiar os opositores armados, na tentativa de
isolar esses opositores do acesso a alimentos, fundos, informações e novos
recrutas. “Os militares sabem que os edifícios religiosos podem abrigar mais
pessoas. Por isso, geralmente, destroem-nos, bem como as escolas, aonde quer
que vão”, disse.
O católico
de mais alto escalão de Mianmar membro da comunidade Bayingyi, o arcebispo de
Yangon, cardeal Charles Maung Bo, que nasceu na aldeia de Mon Hla, no município
de Khin-U, noutra parte de Sagaing, gerou polémica, em 2021, por ter sido
fotografado a celebrar o Natal com o líder golpista, general Min Aung
Hlaing. Em curta mensagem, Bo apelou a “esforços extraordinários para
trazer a paz”, nomeadamente através do perdão, da reconciliação e do diálogo.
Todavia, o seu contacto com o chefe militar não protegeu Mon Hla da infernal
campanha de incêndio criminoso que envolveu Sagaing. Em novembro de 2022,
os militares atacaram a aldeia com helicópteros e com tropas terrestres, destruindo
centenas de casas e fazendo três civis mortos, incluindo uma criança de sete
anos.
Ko Saw disse
que um ataque anterior, em julho de 2022, matou um civil, enquanto outros cinco
foram sequestrados. Dois dos seus corpos foram recuperados posteriormente,
ao passo que os outros três nunca mais foram vistos e teme-se que estejam
mortos.
O cardeal
compartilhou um bolo de Natal com o líder do conselho militar. Um
residente de Mon Hla, que ficou desapontado, ao ver isto, ainda pensou que,
pelo menos, ajudaria a proteger a aldeia. No entanto, os militares atacaram a
aldeia e queimaram-na. Destruíram a igreja e a casa do cardeal, de quem nada
se pode esperar, pois não consegue nem proteger sua própria casa.
Ko Myo, um combatente
da resistência, dizendo que o tratamento brutal dado pelos militares aos
Bayingyi mostra o seu ódio pelas minorias religiosas, aduziu que, em 2022, os
militares também atacaram a aldeia de Nabet, um aglomerado de Bayingyi no
município de Myaung, em Sagaing, e deixaram um cadáver com uma advertência
escrita: “Todos vós deveis morrer assim.”
“As pessoas
das aldeias de Bayingyi têm maior probabilidade de serem mortas se encontrarem
soldados. Embora os militares estejam a matar todas as pessoas,
independentemente da raça, é óbvio que estão mais dispostos a usar a violência
contra os não-budistas”, disse ele.
O capitão
Paing Satt, um militar Tatmadaw (designação do exército de Nyanmar) estacionado
no Comando Noroeste, em Monywa, capital de Sagaing, disse não haver ordens para
discriminar o povo Bayingyi, mas os seus comentários revelaram profundos
preconceitos e incapacidade de diferenciar entre combatentes e civis. “Você
quer dizer as tribos portuguesas? Parecem-se com kalar e praticam o
cristianismo, não é? Muitos deles são rebeldes indisciplinados que
passaram por treino militar com o KIA [Kachin Independence Army: Exército da Independência de Kachin] para lutar contra o governo”, discorreu.
O KIA luta,
há décadas, pela independência do povo Kachin, em que há muitos
cristãos. Desde o golpe, aliou-se ao levante pró-democracia, treinando e
armando grupos do PDF. Através destes grupos, alargou o seu alcance do Estado
de Kachin para sul, até ao interior de Sagaing.
“Os militares
têm de eliminar os que não praticam pacificamente a sua religião”, disse Paing
Satt. “Se o Bayingyi se rebelar, o Bayingyi deve ser eliminado. Se o
kalar se rebelar, o kalar deverá ser eliminado.”
***
Entretanto, uma reportagem do diário francês Le Monde dava conta, a 5 de
fevereiro, da ação de um destacado monge budista (ashin, isto é, venerável),
que foi um dos líderes da “revolução de açafrão”, em 2007, em que, pela
primeira, vez os monges afrontaram o regime militar da altura, e que deixou o
seu exílio na Noruega, para ir dar apoio à resistência birmanesa.
Neste país,
cujos 50 milhões de habitantes são esmagadoramente (85%) budistas, uma
acentuada pobreza, sobretudo na Zona Seca, leva muitos a verem os mosteiros como
espaços de acolhimento, onde se pode ter uma vida com o básico assegurado.
Muitos pobres encaminham para lá os filhos. E é tradição do país que todos
passem alguns períodos da vida num mosteiro.
O monge budista,
nomeado apenas por H., viajou com o enviado especial de Le Monde e com um negociante muçulmano da
Malásia, por zonas controladas pela resistência; acendeu uma vela a Maria, em
terra cristã, e encontrou-se com uma religiosa franciscana que veio dar apoio.
Com efeito, o exercício do ecumenismo é uma preparação para a futura
coexistência dos diferentes em democracia. Para ele, tal como para o governo
clandestino e para a resistência, o objetivo da luta, uma vez derrotada a
junta, é estabelecer uma “democracia federal”, na qual os cidadãos não tenham
de se identificar pela religião e pela etnia a que pertencem, como agora
acontece, mas só como birmaneses. E, na mesma linha, os Rohingya, minoria
muçulmana no estado de Arakan, na fronteira com o Bangladesh, não podem ser
considerados apátridas no seu próprio país, o que terá de passar por revogar as
leis de nacionalidade em vigor.
O monge H. é o contraponto da deriva extremista e
ultranacionalista do budismo, que a atual junta militar tem instrumentalizado
para se legitimar.
A AILD –
Associação Internacional de Luso-Descendentes, com sede em Lisboa, anunciou o
lançamento de uma campanha de angariação de fundos para mitigar as perdas que
afetaram várias das aldeias bayingyis, com antepassados portugueses,
que foram inteiramente queimadas.
Considerando o momento que vivem essas comunidades como muito
difícil, a AILD frisa que os bens das pessoas foram destruídos e houve vários
assassinatos. “Aterrorizados pela ação da soldadesca e os tiros da artilharia,
os habitantes dessas aldeias fugiram e encontram-se, agora, refugiados nas
instalações da diocese, em Mandalay, a segunda cidade do país”, nota a
Associação. O site da AILD tem um link a partir do qual é possível fazer
um donativo.
A repressão militar, embora tenha uma especial incidência
religiosa, é muito mais abrangente. Todos os que são de pensamento, linha de ação,
etnia do atual poder militar sofrem perseguição, com risco de prisão, morte e destruição
de património. Esta postura não é política!
2024.02.06
– Louro de Carvalho
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