Deu brado no país (agora provisoriamente
autossilenciado) o movimento de médicos por aumento das remunerações e por
melhoria de condições de trabalho, a ponto de as administrações não lograrem organizar
escalas para assegurar urgências hospitalares em todas as especialidades. E
houve afirmações públicas chocantes como a de alguém que disse que, se alguém
morrer, os médicos não têm responsabilidade sobre o se passa fora do seu horário
de serviço.
É óbvio que as forças políticas, lançadas de
surpresa no dinamismo de umas eleições antecipadas, alimentam a campanha eleitoral
com a narrativa que lhes convém sobre o Serviço Nacional de Saúde (SNS),
estando a dar os primeiros passos a sua direção executiva, cujas medidas ainda
não têm visibilidade suficiente para se avaliar a validade da sua criação.
Basicamente, a situação do SNS é vista na via
da regeneração pelo partido que suporta o atual governo (com problemas, mas a
caminho da solução), enquanto a coligação partidária que diz ganhar as próximas
eleições aponta a situação como caótica e promete revolucionar a saúde pública
em 60 dias (saúde pública não é a mesma coisa que SNS), sem falar em aumentos
salariais. Os outros partidos dizem mal do sistema e apresentam medidas (genéricas)
de solução, que passam ou pelo reforço do SNS ou por maior abertura ao setor
privado e ao setor solidário.
***
No entanto, as coisas não devem ser vistas apenas
a preto e branco.
Nunca os hospitais do SNS responderam
a tantos cidadãos portugueses. Os números da Administração Central do Sistema
de Saúde (ACSS) relativos a 2023 mostram recordes na atividade assistencial hospitalar.
Esse ano marcou, segundo a ACSS, “uma franca recuperação, assegurando a maior
prestação de cuidados de saúde de sempre: hoje o serviço público de saúde
assegura mais consultas, atende mais episódios de urgência e realiza mais
cirurgias”.
Em
2023, foram realizadas 13.271.893 consultas de especialidade nos hospitais
públicos, mais 501.146 (3,9%) face ao mesmo período de 2022 (em que foram realizadas
12.770.747). Do total de atendimentos, 3.783.948 foram primeiras consultas, um
acréscimo de 129.298 (3,5%) às 3.654.650, de 2022. E a ACSS aponta o facto de a
maior atividade assistencial no SNS ter sido acompanhada de maior procura, mercê
do aumento das necessidades em saúde.
Também na área cirúrgica, foram intervencionados mais doentes.
A produção aumentou 8,1%, totalizando 715.068 intervenções programadas (em
2022, foram 661.416). Ou seja, foram feitas mais 53.652 cirurgias. Porém, mantém-se
a espera. No final de 2023, estavam na lista 264.982 utentes, mas, ao longo do
ano, “as novas entradas chegaram a ir além dos 800 mil utentes”. Para a ACSS, o
agravamento “evidencia a melhoria do acesso a cuidados cirúrgicos programados”.
As
equipas também fizeram um esforço maior para recuperar os atrasos. “No âmbito
do SIGIC [sistema integrado de gestão de inscritos para cirurgia
– programa para recuperar listas de espera], foram operados 713.658 doentes,
mais 6,4% do que em 2022. Destes, 69,7% encontravam-se dentro do Tempo Máximo
de Resposta Garantido (TMRG), tendo-se registado uma melhoria face ao período
homólogo, o que aponta para um maior cumprimento dos tempos”, segundo o que afirmam
os responsáveis. Em 2023, os doentes esperaram, em média, 3,1 meses pela
cirurgia.
O tempo é crucial, sobretudo para os doentes oncológicos, e
nestas intervenções cirúrgicas, foram contabilizados 68.121 utentes, mais 6,2%
face a 2022. Segundo a ACSS, “no final de 2023, estavam inscritos para cirurgia
9215 utentes, confirmando o aumento das necessidades em saúde e a consequente
procura de resposta no SNS”. Ou seja, em cirurgia oncológica, eram mais os
doentes à espera de uma operação, com uma demora média de acesso de 37,1 dias.
Regra
geral, na cirurgia, “registou-se um aumento do acesso e da atividade
assistencial, acompanhado por uma preocupação por responder a critérios de
prioridade e antiguidade”.
Nas urgências, a procura é muito elevada e há demora entre a
triagem e a chegada ao médico, e 2023 não fugiu à regra. Contudo, o ano
terminou ligeiramente abaixo do anterior. Os 6.232.261 episódios SOS totais, em
2022, diminuíram para 6.194.203 (menos 38.058). As explicações serão positivas
ou negativas. Em termos positivos, terá surtido efeito o apelo à população para
contactar a linha SNS24, antes de procurar a urgência; em termos negativos (perfilhados
pela maior parte), foram menos doentes agudos aos hospitais por estarem abertos
menos serviços.
A vertente hospitalar é apenas uma das faces da moeda. Com
efeito, se há melhorias no lado hospitalar, os cuidados primários (a face mais
negra da moeda) continuam sem garantia de cura para um dos problemas crónicos
do SNS: o acesso a médico de família. O número de utentes sem clínico é dos
mais elevados de sempre e as unidades não estão a retomar a atividade anterior
à pandemia. Há muitos utentes que não conseguem entrar pela primeira porta do
SNS e, por isso, não transitam para uma lista de espera hospitalar.
Em 2023, o número de utentes sem médico de família bateu
recordes. No final de 2022, eram mais de 1,44 milhões. Foi o maior número de sempre
e piorou. Em maio de 2023, eram 1.750.000; e, no final do ano, um pouco menos,
1.724.859. No início de 2024, houve melhorias muito ligeiras, com 1.647.700
inscritos sem clínico assistente, mais de um milhão em Lisboa.
A assistência nos cuidados primários está, pois, muito aquém
das necessidades, continuando sem recuperar dos efeitos da pandemia. As
consultas médicas presenciais, em 2019, quase chegaram aos 21 milhões e, desde
então, não vão além dos 17 milhões. Em 2023, foi possível uma pequena
recuperação, de 17.271.186, em 2022, para 17.903.418. Porém, ainda é insuficiente.
Para
Xavier Barreto, líder dos administradores hospitalares, o SNS “continua a falhar
na porta de acesso”, pelo que o novo governo tem de encontrar “novas formas de
acompanhamento nos cuidados” e redefinir “os papéis dos vários grupos
profissionais”. “É essencial libertar os médicos para poderem fazer mais
primeiras consultas”, observa, deixando recado: “Os privados não têm capacidade
de resposta para um número tão elevado de utentes sem médico de família.”
Em suma, o SNS bate recorde de consultas e de cirurgias,
mas ainda há mais de 1,647 milhões de pessoas sem médico de família. Doentes esperaram, em média, 3,1
meses por cirurgia. Na oncologia a demora foi menor: 37,1 dias.
É
ainda de referir que 80% dos médicos de Medicina Geral e Familiar que trabalham
no SNS preferem continuar nos serviços do Estado a emigrar ou a passar para o
setor privado.
***
Um estudo levado a cabo,
entre junho e setembro de 2022, por um
grupo de investigadores, que junta três elementos da Nova School of Business
and Economics (Nova SBE) e um do Serviço de Medicina Intensiva do Centro
Hospitalar de Lisboa Ocidental (São Francisco Xavier), em Lisboa, conclui que os médicos, ao escolherem emprego, valorizam
mais a autonomia e as oportunidades de formação do que, propriamente, a questão
remuneratória.
Através de inquérito a 697 médicos que trabalham nos setores público e
privado (alguns em ambos), ficou a saber-se quais são as preferências da classe
sobre vários aspetos relacionados com o trabalho. Os médicos foram questionados
sobre fatores como os rendimentos, a flexibilidade horária, a possibilidade de
discussão de casos clínicos, a frequência na renovação das instalações, a atualização
dos equipamentos, a oportunidades de formação e a autonomia na tomada de
decisões. Ganharam os fatores de liberdade e de acesso a desenvolvimento profissional.
Obviamente, a questão remuneratória também é valorizada, mas não em tão
grande proporção. “Estas conclusões oferecem informações valiosas para o
desenvolvimento de políticas destinadas a influenciar a afetação do tempo dos
médicos entre sectores”, refere o estudo “Heterogeneidade nas Preferências
Profissionais dos Médicos num Contexto de Dupla Prática – Evidências de uma DCE
– Discrete Choice Experiment”, da autoria de Joana Pestana, Eduardo Costa,
Filipa Fonseca, da Nova SBE, e de João Frutuoso, médico do Centro Hospitalar
de Lisboa Ocidental.
Os empregos que oferecem mais autonomia e oportunidades de formação são preferidos
pelos médicos e abdicar disso implica uma compensação nos salários. Para
trabalharem com menos autonomia, os clínicos exigiriam uma remuneração
adicional estimada em 28,62% do rendimento bruto mensal (526,92 euros) e, no
caso de emprego em que a formação é menos frequente, só o fariam em troca de
mais 22,75% do rendimento bruto mensal (418,85 euros). Isto significa que “estão
dispostos a trocar uma parte significativa do seu rendimento por outros benefícios
que consideram valiosos”, conclui o estudo.
João Frutuoso não antecipava que fosse tão marcada a preferência. “Quando
fizemos a última fase do estudo, em que entrou a equipa do Knowledge Center [da
Nova SBE], na altura de fazer as escolhas, percebeu-se que os médicos
valorizaram mais a liberdade e autonomia da sua profissão, as oportunidades de
adquirir conhecimento e desenvolvimento e, posteriormente, as ofertas
remuneratórias, o que, apesar de ter sido enfatizado em entrevistas que levaram
à criação da fase final, não estávamos à espera que fosse tão notório aquando
das escolhas”, revela o médico.
Por seu turno, Eduardo Costa, professor auxiliar convidado na Nova SBE,
assinala surpresa no “facto de a questão remuneratória não ter sido destacada
como o principal determinante da escolha dos médicos”. “Foi surpreendente”,
observa, embora ressalve que “a dimensão remuneratória continua a surgir nos
resultados como uma das mais relevantes, mas é interessante verificar que
existem outros fatores (não necessariamente monetários) que podem ter um papel
crucial na atração e retenção de médicos”.
Por fim, é de referir que o estudo revela ainda que a classificação das
caraterísticas do trabalho é semelhante entre os clínicos que trabalham
exclusivamente no setor público e os que exercem uma atividade dual (no SNS e
no privado).
***
Seja como for, no SNS, aliás como em tudo, não se pode estar à espera de milagres:
tem de haver vontade política (normativos, desburocratização, investimento, obrigação
de prestação de contas inspeção), capacidade organizativa, boa gestão de
recursos, intercomunicação, brio profissional, formação contínua, autonomia de
decisão e de ação, justa remuneração, racionalização de meios, trabalho em rede
e, sobretudo, sentido de humanidade. No SNS, joga-se a vida de pessoas, não os
números.
2024.02.21 – Louro de Carvalho
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