O Deus que ama e abraça, com ternura paterna e materna,
todos os filhos e filhas, mormente os atingidos pelos acidentes da vida que os
magoaram e desfiguraram, não exclui ninguém, nem aceita que, em seu nome, se
criem sistemas de discriminação ou de marginalização dos irmãos.
Assim, a liturgia do 6.º domingo do Tempo Comum no Ano
B mostra-nos Jesus a passar, com os discípulos, nas ruas e nas estradas a ensinar,
a ouvir e a curar, ao invés dos sacerdotes e dos levitas, cujo mister era
exercido exclusivamente no Templo e segundo os rígidos artigos da Lei.
***
O Evangelho
(Mc 1,40-45) evidencia
como, em Jesus, Deus desce ao encontro das vítimas da rejeição e da exclusão, Se
compadece da sua miséria, lhes estende a mão com amor, as liberta dos sofrimentos
e as convida a integrar a comunidade do Reino, pois não pactua com a
discriminação e denuncia todos os mecanismos de exclusão como contrários ao seu
plano.
Jesus percorre as vilas e aldeias da Galileia, a proclamar
o Reino de Deus. Nestas andanças, depara com todo o tipo de homens e de
mulheres com vidas fragilizadas, muitos dos quais vivem esquecidos e marginalizados
pelas mais diversas razões. Para eles, é uma “Boa Notícia” o anúncio da
proximidade do Reino de Deus, com a esperança numa vida mais humana e mais
feliz.
Desta vez, Jesus cruza-se com um leproso, sem nome e
sem ligação geográfica, o protótipo de todos os marginalizados que Jesus
encontra ao percorrer os caminhos da Galileia. Também não interessa a indicação
do lugar onde se desenrola o episódio, mas apenas Jesus e aquele homem.
É conhecida a situação social e religiosa dos
leprosos. Para a Teologia oficial, o leproso era pecador, maldito e vítima de
um bem doloroso castigo de Deus. Pela sua condição, era obrigado a
autoexcluir-se da comunidade, ficando-lhe vedada a frequência da assembleia do
Povo de Deus. Tinha de viver isolado, de se apresentar andrajoso e de gritar o seu
título de “impuro”, para que dele ninguém se aproximasse. Não acedia ao Templo,
nem mesmo a Jerusalém, Cidade santa, para não conspurcar os lugares sagrados. Era
o protótipo do marginalizado, do excluído, do segregado. A sua condição
arredava-o da comunidade humana e do próprio Deus.
Não obstante, este homem, transgredindo a Lei e, obviamente, arriscando
o merecido castigo da parte dos sacerdotes e o linchamento pela multidão, toma
a iniciativa de vir ter com Jesus. Tinham-lhe chegado os ecos do anúncio do
Reino e sentira abrir-se uma janela de esperança.
O desejo de sair da situação de miséria e de
marginalidade em que está imerso fá-lo superar o medo de infringir a Lei; e
aproxima-se de Jesus, sem respeitar a distância que deve manter das pessoas sãs.
É o ato de quem não se conforma com viver à margem de Deus e da comunidade.
Diante de Jesus, o leproso, humilde, mas insistente “prostrou-se
de joelhos e suplicou-Lhe”. Na verdade, o encontro com Jesus é oportunidade de
libertação que não pode desperdiçar. Não exige nada, mas coloca-se nas mãos de
Jesus: “Se quiseres, podes purificar-me”. A expressão revela a absoluta confiança
no poder de Jesus. Está convicto de que Jesus pode ajudá-lo a sair da triste
situação. Não implora a cura, mas a purificação (“podes purificar-me”: o verbo
grego “katharízô” significa “purificar” ou “limpar”). Não lhe pesa a doença,
mas não suporta sentir-se sujo, pecador, em rutura com Deus. Quer que Jesus
remova o obstáculo que o priva da comunhão com Deus.
A reação de Jesus é inacreditável, para os padrões
judaicos. Não o afastou, não Se indignou, não Se afastou com repulsa, não o acusou
de infringir a Lei e de pôr em causa a saúde pública. Ao invés, “compadeceu-Se
até às entranhas”. O verbo “splankhnízomai” é aplicado, na literatura
neotestamentária, só a Deus e a Jesus. É empregue usado em contextos de ênfase da
ternura de Deus pelos homens, comparável à da mãe sente pelo seu filho querido.
Jesus, “comovido até às entranhas” ante o intolerável sofrimento daquele homem,
responde: “Quero: fica limpo.” Nesta sua explícita manifestação de vontade, revela
que Deus tem coração de mãe, que transborda de ternura, face à miséria e ao
sofrimento dos homens. O amor de Deus, tornado presente em Jesus, manifesta-se
num gesto concreto para com o leproso: Jesus estende a mão e toca-o. É um gesto
“humano” e de afeto, que manifesta a bondade e a solidariedade de Jesus para
com aquele homem desfigurado pela doença e abandonado por todos.
Jesus podia curá-lo, sem o tocar, falando ou mantendo
silêncio, mas o uso da palavra e o gesto de estender a mão têm profundo
significado teológico. A palavra é a força criadora (Deus disse e as coisas
foram feitas) e recriadora; e estender a mão é o gesto que acompanha, na História
do Êxodo, as ações libertadoras de Deus em favor do seu Povo. O amor de Deus
manifesta-se como gesto libertador, que salva o homem leproso da escravidão em
que a doença o lançara. Por outro lado, ao tocar o leproso, Jesus está,
consciente e deliberadamente, a infringir a Lei, denunciando-a, por gerar
marginalização e exclusão. Jesus, com a autoridade que Lhe vem de Deus, mostra
que a marginalização imposta pela Lei não exprime a vontade de Deus. Tocar o
leproso mostra, com toda a frontalidade, que a distinção entre puro e impuro,
consagrada pela Lei, não vem de Deus e não transmite a lógica de Deus, pois Deus
não discrimina ninguém; o que Ele quer é reunir todos os filhos e filhas numa
grande família, a comunidade do Reino.
A resposta verbal de Jesus ao leproso não acrescenta nada.
Apenas confirma, por palavras, que, do ponto de vista de Deus, o leproso não é
marginal, pecador condenado, homem indigno, mas filho amado a quem Deus oferece
a salvação e a Vida em plenitude.
Consumada a purificação, Jesus ordena ao leproso que
não diga nada a ninguém. Esta ordem, que aparece, várias vezes, no Evangelho de
Marcos, é dado histórico resultante do facto de Jesus não querer alimentar
equívocos, sendo aceite pelas razões erradas.
De acordo com Mt 11,5, a cura dos leprosos era obra do
Messias; assim, o gesto de Jesus define-O como o Messias que Israel esperava.
No entanto, na Palestina em plena febre messiânica, Jesus evita o título, que
tem algo de ambíguo, por estar ligado à perspetiva nacionalista e ao sonho de
luta política contra o ocupante. Jesus não alimenta essa falsa esperança
messiânica, pois está cônscio de que o messianismo não passa pelo trono (como
queriam as multidões), mas pela cruz. Não obstante, ao leproso purificado,
Jesus diz que vá mostrar-se aos sacerdotes. Segundo a Lei, o leproso só podia
ser reintegrado na comunidade, depois de a cura ter sido homologada pelo
sacerdote em funções no Templo, pois era ele que tinha poder para declarar a situação
de lepra.
E Jesus
acrescenta: “… para lhes servir de testemunho”. Dado que a cura de um leproso
só podia ser operada por Deus e era, por isso, um sinal messiânico, o facto
devia servir aos líderes do Povo para concluírem que o Messias chegara e que o
Reino de Deus estava já presente no Mundo.
Assim, o leproso purificado devia ser testemunho da
presença de Deus no meio do seu Povo e sinal de que chegaram os novos tempos.
Porém, os líderes judaicos demasiado instalados nas suas certezas, preconceitos
e privilégios, rejeitaram a novidade de Deus, a novidade do Reino.
O texto termina, dizendo que o que fora leproso “começou
a apregoar e a divulgar o que acontecera”, apesar do silêncio que Jesus lhe
impusera. Com efeito, quem experimenta o poder integrador de Jesus converte-se em
profeta e em testemunha do amor e da bondade de Deus.
***
A primeira
leitura (Lv 13,1-2.44-46) mostra-nos o contraponto da atitude evangélica: a
legislação veterotestamentária definia o modo de tratar com os leprosos. Em nome
da saúde pública, do nome de Deus e da santidade do Povo de Deus, as leis de
Israel determinavam a exclusão do doente de qualquer contacto com a comunidade.
O Livro do
Levítico trata, sobretudo, de questões relacionadas com o culto, que era
incumbência dos sacerdotes, membros da tribo de Levi. O trecho em apreço pertence
à terceira parte do Livro (cf Lv 11-16), conhecida como “lei da
pureza”, onde se catalogam os vários géneros de impureza que impedem o homem de
se aproximar do santuário e os ritos destinados a purificar o homem.
Esta noção de impureza é muito próxima da noção de “tabu”
que os especialistas da História das Religiões conhecem. De facto, o homem
deseja a sua vida balizada por regras que o protejam do risco do desconhecido.
Assim, tudo o excecional, anormal, insólito, misterioso, é considerado como
algo suscetível de libertar forças incontroláveis que o homem não domina e que
podem destruir a harmonia e o equilíbrio pretendidos. Portanto, o mais seguro é
erguer uma barreira que mantenha o homem afastado dessas realidades. Foi isto
que os decisores políticos estabeleceram aquando da pandemia de covid-19, até
encontrarem as vacinas.
Desde tempos imemoriais, certos tabus interditavam aos
Israelitas o contacto com determinadas realidades (sangue, cadáver, certos
tipos de alimentos, etc.). Se o homem entrava em contacto com elas, ficava impuro.
Não era pecado, mas o homem devia limpar a impureza contraída, logo que
possível, a fim de reencontrar o equilíbrio e a harmonia. Só depois de
purificado, podia voltar a aproximar-se do Deus santo e a estabelecer comunhão
com Ele. O caso mais grave de impureza era causado por uma doença – a lepra. É
a essa realidade que o trecho em causa se refere.
O termo “lepra” designa um conjunto variado de afeções
da pele, e não apenas a doença que nós conhecemos com essa designação. No geral,
utiliza-se, hoje, o termo para designar vários tipos de enfermidade da pele,
que deformam a aparência da pessoa afetada. Seja como for, o leque de afeções
aqui catalogado sob a designação geral de “lepra” é visto como um estado
insólito e anormal, uma manifestação de forças misteriosas que ameaçam a
harmonia e o equilíbrio da existência do homem. E o leproso era, em
consequência, segregado e afastado da convivência com as outras pessoas. Tal
medida tinha, antes de mais, a intenção higiénica de evitar o contágio, mas
significava a dificuldade da comunidade em lidar com o insólito, com as forças
misteriosas e inquietantes da doença (aqui, uma doença particularmente
repulsiva, que não podia ser tratada e que, potencialmente, era fatal).
Porém, a segregação estabelecida na Lei para os
leprosos tinha também um motivo religioso. Para a mentalidade do povo bíblico,
Deus distribuía as recompensas e os castigos de acordo com o comportamento
humano. A doença era o castigo de Deus para os pecados e infidelidades da
pessoa. Ora, doença tão assustadora e repugnante como a lepra era tida como castigo
terrível para pecado muito grave. O leproso era, portanto, um pecador,
especialmente amaldiçoado por Deus, indigno de pertencer à comunidade do Povo
de Deus e que, em nenhum caso, podia ser admitido às assembleias onde Israel
celebrava o culto na presença do Deus santo.
Quando alguém exteriorizasse sinais de pecado e de
indignidade, devia ser banido da comunidade santa pelas autoridades competentes
(os sacerdotes). O sacerdote não aplicava remédios nem tinha função terapêutica
(embora a sua intervenção ajudasse a controlar o mal e a impedir o contágio), mas
decidia da capacidade ou da incapacidade de alguém para integrar a comunidade
do Povo de Deus e para ser admitido à presença do Deus santo. Compreende-se,
humanamente, a dificuldade da comunidade israelita em lidar com doença
contagiosa grave e repugnante, mas é impensável que, em nome de Deus e da
santidade do Povo de Deus, se criem mecanismos de rejeição, de exclusão, de marginalização.
Por isso, sentimos como salutar a revolução desencadeada por Jesus. E a questão
que se levanta é se ainda estamos presos aos Livro do Levítico ou se já aderimos ao Evangelho, isto é, se ainda estamos
no judaísmo ou se já somos cristãos.
***
A segunda
leitura (1Cor 10,31-11,1)
ajuda a responder à questão acabada de levantar, convidando os cristãos a terem
como prioridade a glória de Deus e o serviço dos irmãos. O exemplo supremo deve
ser o de Cristo, que viveu na obediência incondicional ao desígnio do Pai e fez
da sua vida dom de amor ao serviço da libertação dos homens.
Temos, no trecho em apreço, a conclusão do ensinamento
de Paulo sobre o consumo da carne dos animais sacrificados nos santuários
religiosos de Corinto.
Paulo começa a sua exortação com um primeiro
imperativo: “Fazei tudo para a glória de Deus.” “Tudo” é bem expressivo: já não
se trata do que se come, nem do que se bebe, mas da totalidade da vida: toda a
ação do crente deve ter como finalidade a glorificação de Deus.
A seguir, há outro imperativo, mas em forma negativa:
“Não deis escândalo”. Antes, o apóstolo tinha-se referido a não causar
escândalo junto dos mais débeis, como no caso do consumo das carnes imoladas
aos ídolos; mas, agora, o olhar de Paulo amplia-se às dimensões da cidade e do Mundo.
Abraça todos os homens e mulheres, de todas as raças e culturas e inclui os
irmãos na fé (de Corinto e de qualquer outra Igreja). Não é lícito ao crente
fazer mal seja a quem for. Os estudiosos de Paulo dizem que este segundo
imperativo não é mais do que a explicitação do primeiro: a glorificação de Deus
passa pelo respeito integral por cada homem ou mulher com quem o crente se
cruza. A este propósito, Paulo refere – para ilustração dos Coríntios – o
próprio exemplo: nunca procurou o seu próprio interesse, mas o bem de todos. O
que sempre o moveu, na sua ação e missão, foi só o amor aos irmãos a quem Deus
o enviou a anunciar a Boa Notícia.
Por fim, aparece um terceiro imperativo: “Sede meus
imitadores, como eu o sou de Cristo”. Explica porque é que, antes, se tinha
apresentado como exemplo: não é porque se ache melhor do que os outros, mas
porque tem procurado, com toda a honestidade e coerência, imitar Cristo. Ora,
Cristo não viveu ao sabor dos próprios interesses e projetos pessoais, mas deu
a vida para que se concretizasse o desígnio do Pai em favor dos homens. Cristo
tem sido, para Paulo, a fonte inspiradora. Com Ele, aprendeu a viver para a
glória de Deus, servindo os irmãos. É esse o caminho que aponta aos irmãos de
Corinto e a todos nós.
***
O cuidado do corpo e a preservação da saúde pública
não nos permitem excluir os outros da comunidade e do abraço de Deus, como não
nos podem afastar dos irmãos, nem de Deus. A verdadeira religião alimenta-se do
templo, mas não se confina ao templo, antes se realiza e frutifica fora dele. O
cristão, tendo conhecido a Lei, não se torna servo da Lei, mas põe-se ao
serviço da Fé em Cristo. Dela nasceu, nela cresce e com ela entra na comunhão
com Deus e com os irmãos, na certeza de que a perfeição se alcançará no Além.
2024.02.12 – Louro de Carvalho
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