A 12 de fevereiro, Rita Ferreira, editora de “Sociedade”, do Expresso, publicava um texto sob o
título “PS recupera
ideia polémica de Marta Temido de obrigar médicos a cumprir tempo mínimo de
serviço no SNS após a especialização”, ancorada no programa eleitoral do
Partido Socialista (PS), denominado “Plano de Ação para Portugal Inteiro,
2024”, então apresentado.
A articulista não olvida o pano de fundo e sublinha a aposta no reforço da
dedicação plena dos médicos, mas adianta que o PS quer “ir mais além”, pelo que
relança “a ideia de que os profissionais de saúde formados pelo Estado devem,
de alguma forma, retribuir a formação que receberam com trabalho dedicado no
serviço público”.
No verão de 2019, a então ministra da Saúde, Marta Temido,
avaliava “a ideia de exigir um tempo mínimo de serviço no SNS [Serviço
Nacional de Saúde] aos jovens médicos, de maneira a compensar o
Estado pelo valor gasto na formação destes profissionais”. Logo se
multiplicaram as críticas, as quais pressagiavam o fracasso da ideia, que não
avançou. Com efeito, a toda a polémica levantada sobrepôs-se a pandemia e,
depois, Marta Temido abandonou a pasta da Saúde.
Entretanto, a pandemia acabou, embora não os casos de
covid-19, e começou a luta dos médicos por aumentos salariais na ordem dos 30%,
processo em cessar-fogo, após acordo com uma das estruturas sindicais, para não
adicionar estranha turbulência ao período pré-eleitoral.
Porém, logo que os atuais protagonistas do partido que
ainda governa e se candidata a eleições retomaram a ideia de Marta Temido, veio
a Ordem dos Médicos (OM) acusar a hipotética medida de estalinista, muito
embora sem pressagiar, como Miguel Guimarães, bastonário em 2019 (e, agora,
elemento da AD – Aliança Democrática), que “vai correr mal”.
Não tendo de me rever na globalidade do programa do
PS, mas concordando com a ideia, não pelo lado da retribuição, mas pelo ângulo
da necessidade de meios do país, fui espreitar o texto apresentado a público.
No
âmbito da 2.ª MISSÃO: UM ESTADO SOCIAL FORTE, MODERNO E INCLUSIVO, no apartado
“2. Um Serviço Nacional de Saúde universal, forte e Saúde universal, forte e
resiliente”, depois de discorrer sobre a relevância e o histórico do SNS, o
texto mostra um subapartado 2.1 referente ao compromisso “na valorização dos
profissionais de saúde”.
Tal
compromisso materializa-se em encetar negociações com vista um plano de revisão
das carreiras e de valorização salarial, reforçando a formação e a investigação
e melhorando as condições de trabalho; equiparar a posição de entrada dos
enfermeiros aos licenciados da carreira geral da Administração Pública;
incentivar a dedicação plena e em exclusividade ao SNS; atribuir incentivos
especiais aos profissionais que trabalhem em territórios menos atrativos,
através de apoios ao alojamento e às famílias, assegurando-lhes o
desenvolvimento profissional e o acesso à telemedicina e a pertença a equipas
multidisciplinares; rever o quadro de alocação de tarefas aos profissionais do
SNS, visando a elevação dos níveis de eficiência e de eficácia, na linha dos
cuidados aos utentes; promover maior abrangência de atividade de enfermagem, sobretudo nos contextos em que a resposta médica é
insuficiente, aumentando a capacidade de prestação de cuidados de proximidade; rever e dignificar a carreira
dos administradores hospitalares e das chefias intermédias, promovendo a sua
valorização salarial e a adoção de um modelo de avaliação de desempenho
adequado; (temos, a seguir, os dois itens
polémicos) avaliar a possibilidade de introdução de um tempo mínimo de
dedicação ao SNS pelos profissionais de saúde, nomeadamente médicos, na
sequência do período de especialização; e avaliar a possibilidade de introdução
de um quadro de compensações, pelo investimento público do país na sua
formação, por parte de médicos que pretendam emigrar ou ingressar no setor
privado.
O verbo “avaliar” pode significar “querer fazer”, mas
experimentando a ver se resulta. Não afiança que haja suporte epistemológico
que ancore a medida em causa.
Discordo do argumento de que, se é o Estado a custear
a formação dos médicos, deve ser compensado por isso, ou seja, de que o
investimento na formação deve ser pago em tempo de serviço, em dinheiro ou em
espécie. Sou do tempo em que, por exemplo, os sacerdotes diocesanos eram
ordenados a título de serviço à diocese que os formou; e, ainda, se mencionavam
casos de ex-seminaristas que, ao solicitarem uma certidão de estudos, eram
obrigados a pagar uma quantia avultada para o tempo. A justiça com a formação
não passa por tais critérios, na minha ótica.
O PS aponta dois grupos de médicos a abranger por este
mecanismo: os recém especialistas e os que pretendem emigrar ou ingressar no
setor privado. Para os primeiros, aponta a possibilidade de “introdução de um tempo mínimo de dedicação
ao SNS pelos profissionais de saúde, nomeadamente médicos, na sequência do
período de especialização”; e, para os segundos, a “possibilidade de
introdução de um quadro de compensações, pelo investimento público do país na
sua formação, por parte de médicos que pretendam emigrar ou ingressar no setor
privado”.
Fonte do PS esclareceu, mais tarde, que “avaliar a
possibilidade” significa que qualquer uma dessas medidas não será tomada sem
avaliação, negociação e aceitação por parte das estruturas representativas dos
médicos. Não se espera que a classe médica, em luta por aumentos salariais e
pretendendo a retoma das negociações, mal haja novo governo, aceite as duas
medidas em evidência. Pedro Nuno Santos prometeu chamar, de imediato, os
profissionais de saúde para negociar
“um plano concertado de revisão das carreiras e de valorização salarial,
reforçando a vertente de formação e investigação e melhorando as condições de
trabalho”.
***
Para os enfermeiros a proposta é mais clara:
“equiparar a posição de entrada dos enfermeiros aos licenciados da carreira geral
da Administração Pública”; e aos administradores hospitalares é prometido
“rever e dignificar a carreira” destes profissionais, a par da das chefias
intermédias.
Outro ponto polémico é o da promoção de “uma maior
abrangência de atividade de enfermagem, sobretudo nos contextos em que a
resposta médica é insuficiente, aumentando a capacidade de prestação de cuidados
de proximidade”. A ideia agrada aos enfermeiros, mas não aos médicos. São de
recordar as críticas da OM, quando a Direção-Geral da Saúde (DGS) publicou uma
norma sobre a assistência ao parto de baixo risco, que poderia ser
feita por enfermeiros especialistas. E, em contraponto, é de referir que alguns
enfermeiros emigram para o Reino Unido e para a Suíça, porque, além da
valorização salarial, lhes são confiados atos de maior responsabilidade.
Com a referenciação dos doentes para terem acesso às
urgências hospitalares – já no quadro da governação do SNS –, o PS propõe o
regresso dos atendimentos permanentes nos centros de saúde de referência. Os Serviços
de Atendimento Permanente (SAP), existentes por todo o país, foram
encerrando com Ana Jorge.
O PS promete “criar uma rede de atendimento
permanente, a funcionar em centros de saúde de referência, servindo uma área
geográfica delimitada e contribuindo assim para reduzir o recurso às urgências
hospitalares”.
Na área dos cuidados de saúde primários o PS fala, a par
da AD, do recurso a médicos e enfermeiros aposentados, para os quais vigora,
desde 2010, um regime de contratação especial. Segundo dados de junho de
2023, trabalhavam no SNS cerca de 500 médicos aposentados, principalmente de
Medicina Geral e Familiar.
Sem afastar a articulação do SNS com o sistema privado
de saúde, o PS define como objetivo a definição de uma estratégia “plurianual
de cooperação com setor privado, assumindo o princípio da supletividade e
colocando o utente no centro dos processos de articulação e cooperação”. Aqui, por mais que o PS queira traçar um separador
da AD, que existe, a verdade é que foram os seus governos que, nos últimos anos,
recorreram ao setor privado na criação dos cheques-consulta, na articulação
durante a pandemia, na contratualização de camas de cuidados continuados e na transferência
de grávidas para unidades de saúde privadas da Grande Lisboa quando a
falta de obstetras levou à impossibilidade de completar escalas de urgências em
vários hospitais.
***
Voltando
à questão em apreço, é de salientar que, Também a 12 de fevereiro, o
constitucionalista Vital Moreira, no blogue “Causa nossa”, se regozija por ver
perfilhada politicamente pelo PS a ideia que vem defendendo há seis anos. Admite
que pode ser polémica “à luz da
lente política da direita liberal” a retoma da ideia imputada pelo Expresso
“a Marta Temido, em 2019”, de exigir aos médicos formados nos SNS “um período
de dedicação ao serviço público, antes de mudarem para o setor privado (ou para
o estrangeiro), como forma de retribuição da formação de especialidade e
correspondente qualificação profissional recebida, ‘cortesia’ dos contribuintes”.
Recorda que já
tinha defendido, em 2017, a ideia no “Causa
nossa”, nos seguintes termos: “Julgo, mesmo, que os médicos formados pelo SNS deveriam ficar
vinculados um certo número de anos ao setor público (salvo havendo redundância)
para ‘retribuir’ os custos da sua formação, sendo obrigados a candidatar-se às
vagas abertas em qualquer ponto do país. É inadmissível que fiquem desertos
concursos no SNS, só porque os médicos recém-formados preferem, logo, locais mais
confortáveis e mais rendosos.”
***
Como referi, acompanho a ideia, mas não pelos motivos apresentados.
Não me preocupa se a proposta é estalinista ou totalitária (não o será,
se negociada e justamente compensada), mas preocupa-me que um SNS – cada vez
mais necessário, porque temos um país envelhecido, cada vez mais pobre e com
gente com mais morbidades – se esteja a esboroar, face à ambiciosa competição
negocial do setor privado. Também me parece inaceitável resolver o problema
através do pagamento da formação, que não é mercantilizável. Ouvi falar de
eclesiásticos, a quem a respetiva diocese ou instituto patrocinou formação além
da eclesiástica, e de outros profissionais que fizeram formação tutelada por
instituições às quais deviam servir. E, desavindos das respetivas entidades
tutelares, resolveram pagar a formação.
O Estado, que se sente obrigado a formar alguns profissionais, como
médicos, magistrados (em exclusivo, bem como polícias e militares),
professores, enfermeiros, etc., deve dispor de autoridade suficiente para, em
caso de insuficiência dos seus quadros e crescendo as necessidades da
população, alocar (obrigatoriamente, durante um certo período de tempo) um
número razoável de profissionais ao seu serviço, para colmatar as necessidades
do sistema. E, quando não acautela esse desiderato, pode entrar em défice de
funcionamento. É o que está a acontecer nas forças armadas, depois da abolição
do serviço militar obrigatório, passando a haver mais oficiais do que praças, e
pode vir a acontecer com os professores ou com os polícias.
De modo semelhante, pode agir, em caso de necessidade, quando a
formação em causa é prestada por entidades privadas, neste caso, através de
negociação com tais entidades.
Obviamente, deve evitar-se qualquer laivo de totalitarismo, continuar o
processo de valorização das carreiras, e compensar, de forma justa, o serviço
que for prestado em regime obrigatório. Com efeito, a liberdade de iniciativa e
de escolha, sendo bens preciosos, não superam o serviço ao bem comum. Sempre
foi válida e imperativa a máxima: “Salus Reipublicae lex suprema esto” (seja a
salvação da comunidade a lei suprema).
É legítima a iniciativa privada da formação e da atividade, com a obtenção
do lucro, mas incumbe ao Estado prover, de forma gratuita e a nível universal,
à saúde dos cidadãos.
20234.02.14 – Louro de
Carvalho
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