Celebrou-se, a 4 de fevereiro, o Dia Internacional da Fraternidade Humana, criado pela Resolução
75/200 da Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), a 21 de
dezembro de 2020, com o principal objetivo de “promover a tolerância e o
diálogo entre povos de diferentes religiões e culturas e de destacar o contributo
de cada uma para a Humanidade”.
É também o seu escopo “sensibilizar para a necessidade
de políticas que satisfaçam este propósito, especialmente na educação das
crianças e dos jovens, sobretudo numa altura em que o discurso de ódio tem
vindo a fazer parte da agenda política”.
A instituição desta virtuosa efeméride é sinal do
reconhecimento internacional do “Documento Fraternidade humana em prol da paz
mundial e da convivência comum”, assinado pelo Papa Francisco e pelo Grande Imã
de Al Azhar, Ahmed Al Tayyeb, a 4 de fevereiro de 2019.
A ideia de fraternidade sempre esteve presente na História
humana, embora adquirindo significados diferentes ao longo do tempo, mas sempre
como vínculo de afetos e de partilha entre um grupo ou comunidade. Se, no
início, o vínculo se restringia ao meio familiar, entre irmãos descendentes da
mesma família, a História bíblica atribui-lhe significado mais universal.
Recorda o Papa, na encíclica Fratelli Tutti (FT):
“Nas tradições judaicas, o dever de amar o outro e de cuidar dele parecia
limitar-se às relações entre os membros de uma mesma nação. O antigo preceito
‘amarás o teu próximo como a ti mesmo’ (Lv
19,18) entendia-se como referido aos compatriotas. Todavia, especialmente no
Judaísmo que se desenvolveu fora da terra de Israel, as fronteiras foram-se
ampliando. Aparece o convite a não fazer aos outros o que não queres que te
façam a ti (cf Tb 4,15). E a
propósito dizia, no século I (a.C.), o sábio Hillel: ‘Isto é a Lei e os
Profetas. Todo o resto é comentário’. O desejo de imitar o comportamento divino
levou a superar a tendência de limitar o amor aos mais próximos: ‘A compaixão
do homem tem por objeto o próximo, mas a misericórdia divina estende-se a todo o
ser vivo’ (Sir 18,13)” (FT n.º 59).
Se, no início, o conceito de próximo excluía o
estrangeiro, a evolução da ideia e o alargamento de fronteiras gerou a inclusão
do estrangeiro como filho do mesmo Pai. E o cristianismo deu-lhe o estatuto de
universalidade: “O que quiserdes que vos façam os homens, fazei-o também a
eles, porque isto é a Lei e os Profetas (Mt
7,12). “Sede misericordiosos como o vosso Pai é misericordioso” (Lc 6,36).
Politicamente, o auge da relevância da Fraternidade
aconteceu com a sua inclusão no lema da Revolução Francesa (1789): “liberdade,
igualdade e fraternidade”. Pela primeira vez, a ideia de fraternidade
extrapolou a esfera religiosa para se tornar categoria política. Porém, se as
duas primeiras ideias da trilogia foram integradas no discurso político, a
fraternidade, por motivos políticos, foi substituída pela solidariedade,
conceito mais restrito, que põe em oposição o grupo de iguais face ao exterior,
o diferente. E, na Revolução Industrial, a fraternidade era problema para as
lutas sociais, face ao vigente capitalismo pujante. Assim, durante muito tempo,
mesmo mantendo a França o lema da Revolução, a fraternidade viu-se politicamente
relegada para segundo ou terceiro plano. Contudo, face às consequências da globalização
e à exigência de defesa do planeta, a ideia renasceu das cinzas.
Assim, durante a sua Viagem Apostólica aos Emirados
Árabes Unidos, em fevereiro de 2019, o Papa Francisco e o Grande Imã de Al
Azhar, Ahmed Al Tayyeb, ao assinarem o documento em referência,
deram um passo de gigante na afirmação da fraternidade como ideia central
do diálogo entre as várias religiões e culturas. Na sequência, ao
escrever a encíclica “Fratelli
Tutti”, Francisco intuiu bem o conceito e o seu verdadeiro alcance enquanto
plataforma de diálogo universal. Serão os dois documentos marco no relançamento
do diálogo entre religiões e culturas. A ideia de fraternidade de Francisco
contém em si as potencialidades da plena cidadania, quando os homens e mulheres
se reconhecem como iguais, irmãos unidos pelos laços da família universal.
Reconhece-se o outro através do amor e comunhão entre
irmãos e irmãs. Assim, escreveu o Papa: “O diálogo entre pessoas de diferentes
religiões não se faz apenas por diplomacia, amabilidade ou tolerância”. E, como
ensinaram os bispos da Índia, “o objetivo do diálogo é estabelecer amizade,
paz, harmonia e partilhar valores e experiências morais e espirituais, num
espírito de verdade e amor” (cf FT, n.º
251). Não há, pois, verdadeiro diálogo entre religiões e culturas, se o
objetivo for impor a nossa realidade, em vez de, humildemente, irmos ao
encontro do outro, escutá-lo e acolhê-lo na sua verdade.
***
Por iniciativa da MEERU (Promover a Coesão Comunitária através do Diálogo
e da Proximidade) e do Blanquerna Obervatory (observatory of
media, religion and culture),
com apoio do KAICIID DIALOGUE CENTRE e parceria do 7 Margens, decorreu, na
“Porta”, do Porto, em Dia Internacional da Fraternidade Humana, no âmbito do
projeto Bridges of Faith, uma conversa entre o muçulmano Khalid Jamal, o
padre Rui Santiago e o judeu Joshua Ruah.
As razões para o diálogo são inúmeras, como diz Khalid Jamal, membro da Direção
da Comunidade Islâmica em Lisboa.
As religiões são paz e o Nosso Deus fala-nos de paz. É preciso compreender que as
religiões – tantas vezes instrumentalizadas e ao invés do que muitos apregoam –
são “bálsamo para a vida humana e veículo privilegiado para a promoção da paz e
da fraternidade universais”, mas, não raro, confundidas com outras agendas, de
índole mercantilista, geopolítica, entre outras.
O Mundo não tem de ser de confrontação e de guerra, mas só atingiremos a suprema bondade,
quando soubermos apreciar o outro na beleza da sua diversidade, e não na igualdade
forçada.
Há mais o que nos une do que o que nos separa. As afinidades são infindáveis, um
Deus único, que falou e que se revelou, através das Escrituras (é a boa nova do
monoteísmo). O Deus do pai Abraão, de Moisés, de Jesus que nasceu numa terra
Santa, para todos – e que é, tristemente, palco de guerra sangrenta – que mais
devia unir, em vez de separar.
Desta vez, Khalid Jamal
propõe uma receita mais original: o diálogo religioso
precisa de empatia e de amabilidade, e ambas têm de ser compatíveis com a
máxima honestidade de ideias.
O cristão precisa de aprender a ouvir do muçulmano que Allah
não tem parceiros e que Jesus não é Deus. E o muçulmano tem de ter a frontalidade
de o dizer aos cristãos. O muçulmano precisa de aprender a ouvir do cristão que
há, no Deus único, três pessoas divinas e que uma delas, sem deixar de ser
Deus, se tornou homem em Jesus, que é realmente Deus. E o cristão tem de ter a frontalidade
de o dizer aos muçulmanos. Nada disto perverte as suas fés, nem representa discurso
de ódio recíproco. Aliás, representa máximo respeito recíproco, constituindo
saudável e radical disposição de não andar a brincar às escondidas intelectuais
ou religiosas.
O estímulo da amizade promove, genuína e descontraidamente,
que sejamos capazes de apreciar o que o próximo diz, “calçando os seus sapatos”,
como diria Mia Couto, resgatando os melhores argumentos destes, pela simpatia que
por eles nutrimos, usando uma linguagem universal e não exclusiva da fé de cada
um, com verdade, não nos furtando aos temas difíceis e tendo por propósito o
diálogo e não o consenso, numa própria e verdadeira fraternidade universais.
Enfim, ressalta
a célebre e sábia frase popular das terras do tio
Sam: “Se não
aprendermos a dialogar sobre a religião, acabaremos por guerrear por causa da
religião.”
***
O redentorista Rui
Santiago sente que a amizade desencadeia a vontade
de participação alegre e diz que a conversa em referência é uma iniciativa de
quem se dedica à Esperança nos desafios quotidianos da inclusão e de relações
improváveis. Gosta de ver as coisas de outros lugares, de pensar com as
palavras de outros, de ouvir histórias e de receber visões. “Estar à conversa
com um irmão judeu e com um irmão muçulmano significa entregar uma mão a um e a
outra mão a outro e ficar feliz por me levarem a passear a ver o que eles
quiserem”, confessa.
Fascina-o a maravilha de andarmos num Mistério e de vivermos
de sinais, de aproximações, de alegorias, de metáforas, de imagens, de palavras.
Os crentes são catadores de sinais e, nos melhores dias, cantores de prodígios
e de narrativas. Estar à conversa com estes irmãos permite a partilha generosa
destes sinais colhidos e interpretados, destas alegorias e metáforas diferentes. E
ver-se pelos olhos de outros é sempre um modo de bênção.
Os três grupos
religiosos, comungando na fé em Deus Criador, sabem que, “na origem de tudo;
está um desígnio único, um amor único, um projeto único, uma Criação Una”, o
que leva a conversa a ser “um sinal bonito entre a poesia do uno e a profecia
da unidade.
Os três conhecem-se desde o tempo em que estavam juntos
nas entranhas de Abraão, princípio visceral das mesmas tão ampliadas tradições.
Por isso, “trazem, nas memórias mais primevas, o apelo à irmandade, à
paternidade comum na bênção e na promessa”.
Os três são “gente
d’A Palavra” e creem num Deus que se diz, que fala, que dialoga connosco, em
modos vários e mediações. São gente que “anda debaixo do braço de um Livro”. Quando
abrem os Livros Santos, sabem que “estão a expor-se ao Livro, a deixar-nos folhear
por ele”. Creem no vigor de palavras que nunca murcham nem se esgotam e fazem
da Palavra “lugar de interpretação incessante e de encontro”. Por isso, estar à
conversa é uma “velada profissão de fé na vitalidade da Palavra de um Deus que
se comunica”.
Considera que precisam de oportunidades para
dicções autênticas e esperançosas entre si. Muitas palavras mal ditas já
aconteceram e ainda acontecem, infelizmente. Porém, crê numa profecia transcrita
no último livro do seu Novo Testamento,
onde “o sonho do projeto criador e salvador de Deus, finalmente culminado”, é
ilustrado com imagens e palavras. A meio dessa exuberância, ressalta um milagre
deste calibre: “E nunca mais haverá nada mal dito!” (Ap 22,3) É por isso que estarem os três à conversa é ocasião para
ensaiarem o tal futuro grandioso. É um treino de bendição partilhada, de bênção
recíproca, de palavras que bendizem uns aos outros.
***
Joshua Ruah, antigo dirigente da Comunidade Israelita de Lisboa (IL),
refere que há quem
acredite que Deus nos mostra o caminho, mas que outros preferem falar no
Universo e nas coisas que o cosmos nos diz. Como em tantas outras áreas da
vida, acredita que “o que importa realmente é saber ouvir”. Em toda a sua existência,
teve a noção de que a morte é uma coisa que temos de pensar e de aprender. E o
aprender é simples: “Faz o melhor que puderes e o mais rapidamente possível
porque podes não ter tempo para acabar”. Como se convenceu de que tinha um
prazo de validade, ali por volta dos 60 anos, foi‐se habituando a esta ideia e
tentando adaptar a vida ao pouco tempo que lhe restava.
Sente que vivemos um momento, se não de
viragem, de reflexão. A globalização da miséria, os ricos cada vez mais ricos,
o fim da classe média, os algoritmos inclementes, o fim do trabalho, as alterações
climáticas, a corrupção e incompetência políticas. Todavia, não é esta a Historia
em que acredita. Basta olhar para trás, considerar as convulsões e as revoluções
e ter um bocadinho de fé́. Resolver-se-á́ tudo, possivelmente, com algum
atraso, mas o mais importante é e será́ a literacia: “aprender a pensar, a
raciocinar e a sentir melhor”. Teremos novos paradigmas de relação social, de
economia, de finanças e de distribuição de riqueza. Até à disseminação da Internet e, em particular, dos
smartphones, a aprendizagem cingia‐se, em grande parte, à memorização. Hoje,
com a memória mais na algibeira, o processo de aprendizagem levar-nos-á́ a
destinos mais igualitários e livres, pelo caminho da criatividade. Este novo Mundo
pode ser aterrorizador para os mais velhos, mas espera-se que os mais novos creiam
no seu poder demiúrgico, no sentido da inovação, da fraternidade e da
felicidade.
***
Estarem à conversa um muçulmano
concreto, um cristão concreto e um judeu concreto, a partir das suas histórias
é sinónimo de crer na “força desarmada do encontro, do diálogo e da amizade
entre pessoas, para abrir caminhos para a Paz”. É a via para mais
liberdade e mais igualdade.
2024.02.05 – Louro de Carvalho
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