A 15 de janeiro, a BBC recordou
os dias dramáticos dos chefes de postos de correio. O caso não era muito conhecido.
Terá começado antes do fim do século XX e continuado até 2015. Durante este
período, muitos chefes de postos de correio britânicos de pequenas cidades ou
de áreas rurais (em Inglês subpostmasters: parceiros de
franquia ou proprietários de empresas independentes) passaram a ser acusados de
roubo, de fraude e de falsificação de contabilidade financeira. Eram incriminações-chapa:
subtraíam dinheiro das contas bancárias dos postos que dirigiam. E as
condenações incidiram em centenas de pessoas, provocaram, em casos extremos,
suicídios e, mais comummente, penalizações variadas, incluindo a prisão e o público
enxovalho.
As contas feitas no papel estavam certas, mas o sistema
informático assinalava grandes défices. Porque uma cláusula contratual ditava
que eram os responsáveis por qualquer desaparecimento de dinheiro, ficavam
alarmados. Não os tranquilizavam os telefonemas para a assistência técnica. A
cada um era dito não haver outros relatos de problemas idênticos, pelo que
ficava sozinho no drama. O problema coletivo tornava-se sarilho individual. A
alternativa era pagar, de imediato, o défice, em dinheiro, ou enfrentar
julgamento, com alta probabilidade de ir parar à prisão.
O caso tem sido falado, nos últimos tempos, porque o
primeiro-ministro (PM) do Reino Unido (UK), Rishi Sunak, foi instado a promover
a anulação das sentenças condenatórias dos chefes de postos de correio do país.
A resolução surge justificada por ter ficado comprovado que houve uma tremenda injustiça.
A culpa era da informática (dos informáticos ou dos chefes dos informáticos):
um sistema de software desenvolvido pela empresa japonesa
Fujitsu fornecia dados incorretos sobre faturação. A inquestionável informática
tinha a responsabilidade pelo que Rishi Sunak considerou como um dos maiores
erros judiciais da História do Reino Unido.
A resolução
do PM foi acelerada pela exibição televisiva da série Mr Bates vs the Post Office e por 2024 ser ano de
eleições gerais. Transmitida, no início de janeiro, pelo canal britânico ITV, em quatro episódios, a história de
Alan Bates, chefe de posto de correio protagonista da campanha contra a
injustiça, foi vista por nove milhões de espectadores. A BBC anotava que a série, ao evidenciar
a magnitude do escândalo, provocou tanta indignação que, rapidamente, levou a
alcançar o que não tinha sido possível lograr ao longo de décadas de
reclamações e de protestos.
Citado pela BBC, Toby Jones, o ator que interpreta
Alan Bates, fez profissão de fé no duradouro valor da arte dramática no
progresso da consciencialização pública e dos debates nacionais. Portanto, a
série tem o crédito de haver fornecido a empatia necessária para suplantar os
muitos anos de indiferença, cumulada de cinismo que nem a persistência de Bates
contrariou.
A saga dos
chefes de postos de correio britânicos “é um drama real de vidas destruídas
pelo mau funcionamento de apenas um programa de software e
pela cultura tóxica de uma empresa pública que deveria ter estado mais
vigiada”, assinalou Marta Peirano, a 15 de janeiro, no diário espanhol El País, evocando o caso para incentivar
à ponderação das reais consequências de introduzir soluções opacas para
modernizar infraestruturas sanitárias, educativas, financeiras e
administrativas, em contexto político incentivado por forte exuberância
tecnológica e pouco sentido de responsabilidade. A reflexão, como sustenta a
jornalista, torna-se pertinente, agora que a inteligência artificial (IA) se
apressa a entrar em estabelecimentos de ensino, na administração central e
local, nos tribunais, nos centros de saúde e noutros serviços críticos,
substituindo o que aí mais falta faz: “melhores condições de trabalho e mais
pessoal”.
***
Já a 10 de janeiro, o jornal britânico The
Guardian publicou uma peça de Peter Walker, Daniel Boffey e Rowena Mason, sob
título “Escândalo Horizon: centenas
de operadores de correios terão condenações anuladas”, dando conta de uma medida inédita a aprovar pelo parlamento, dentro de
meses, “destinada a pôr fim a um dos maiores erros judiciais da História
britânica”.
Todavia, advogados seniores, sustentando que isto não deve ser vista como “um precedente”, disseram que a decisão de aprovar um
projeto de lei que anula tantos veredictos judiciais é constitucionalmente
extraordinária e corre o risco de eliminar a independência do poder
judicial, se
for vista como um precedente para casos futuros.
Ao anunciar a mudança, dias após a transmissão de um
drama da ITV que catapultou a saga para
a área política, o PM disse à Câmara dos Comuns que a legislação absolveria
todos os condenados no escândalo Horizon.
Qualquer pessoa que veja anulada a sua condenação terá a oferta inicial de 600
mil libras ou a possibilidade de avançar com processo de avaliação detalhado,
se achar que lhe é devido mais dinheiro. Os que fazem parte de um litígio de
grupo separado, que já receberam algum dinheiro, receberão 75 mil libras cada.
E serão pagos pelo contribuinte, pelo menos, 450 milhões de libras.
Kevin Hollinrake, o ministro responsável pelos
assuntos postais, admitiu que haja pessoas a ter compensação de modo fraudulenta,
mas que o risco vale a pena terminar a longa espera.
“Este é um dos maiores erros judiciais na História da
nossa nação”, disse Sunak, na resposta a perguntas dos parlamentares. “As
pessoas que trabalharam arduamente para servir as suas comunidades tiveram as
suas vidas e reputações destruídas, sem terem qualquer culpa. As vítimas devem
obter justiça e compensação.” E frisou: “Garantiremos que a verdade venha à tona,
que emendaremos os erros passados e que as vítimas terão a justiça que
merecem”.
Alan Bates – o postmaster
que faz campanha, há 20 anos, a expor o escândalo recebeu o anúncio com a
aprovação. “Já era hora, esta era a coisa decente a fazer”, disse ao Times. “Temos todo o país atrás de nós
agora. Ainda há muito trabalho a fazer. Uma vez concluído o trabalho, o
trabalho está concluído e podemos relaxar um pouco – mas ainda não chegamos
lá.”
Também o Partido Trabalhista manifestou o apoio
imediato, o que significa que o projeto seria aprovado, no parlamento, sem
obstáculos. Porém, as organizações jurídicas disseram que os ministros deveriam
garantir ao parlamento, e na lei, que se trata de um caso único. David McNeill,
da Law Society, disse: Estamos a olhar para baixo com uma espécie de sensação
incómoda de vertigem? Sim, estamos. Viola um princípio fundamental que é, efetivamente,
o governo legislar contra as decisões, contra a independência dos tribunais. São
circunstâncias excecionais, é uma medida extraordinária. Não deve, nunca deve,
ser vista como um precedente.” E Sam Townend KC, presidente do Conselho da Ordem,
prometeu exame cuidadoso das propostas, pois é necessário “garantir a
independência do poder judiciário”; e “o governo deve ser cuidadoso, ao
estabelecer precedentes legais e constitucionais”.
Downing Street, ou seja, o gabinete do primeiro-ministro,
disse que este passo não foi tomado de modo leve e que foi consultado o
judiciário. E, mais tarde, o primeiro-ministro da Escócia, Humza Yousaf, afimou
que todos os condenados na Escócia, como parte do escândalo, serão inocentados.
Escrevendo a Sunak, disse que queria trabalhar com o governo do UK, para garantir
que as vítimas serão inocentadas. Efetivamente, uma lei como a proposta por
Sunak para anular as condenações não teria efeito na Escócia, mas Yousaf
indicou que um consentimento legislativo do parlamento escocês será a forma
mais rápida de garantir que fosse aplicada a norte da fronteira.
Falando à BBC,
Hollinrake aceitou que a resposta foi acelerada pelo drama da ITV “Mr Bates vs the Post Office”, transmitido em quatro partes, uma semana
antes, que narrava a história de Alan Bates, operador dos correios que
liderou a campanha contra a injustiça. “É claro que respondemos à pressão
pública. É para isso que estamos aqui”, disse Hollinrake. “Isto é o governo. As
coisas vão para a pilha “muito difícil”. Há muitas partes interessadas
diferentes envolvidas no governo.”
Embora o plano inocente e compense, rapidamente, as
mais de 900 pessoas processadas pelos Correios, injustamente acusadas de
receber dinheiro, entre 1999 e 2015, continua a disputa política paralela sobre
a responsabilidade pelo caso.
O anúncio do plano por Sunak foi feito em resposta a
uma pergunta formulada por Lee Anderson, vice-presidente do partido
Conservador, que apelou a que Ed Davey, que foi ministro responsável pelos
assuntos postais de 2010 a 2012, renunciasse ao cargo de líder Liberal
Democrata.
Simon Blagden, um conservador que preside à agência
governamental Building Digital UK, foi referenciado pela Fujitsu UK, em 2015,
como membro da sua equipa de liderança que fez parte do conselho de negócios
responsável do Reino Unido e da Irlanda, além de ser presidente de uma das subsidiárias,
a Fujitsu Telecomunicações, durante 14 anos, de 2004 a 2019.
O governo disse que Blagden “não estava, de forma
alguma, envolvido” no projeto Horizon
e que a Fujitsu Telecommunications era “uma organização separada”.
Há questões complicadas para alguns funcionários de
Whitehall sobre a sua supervisão dos Correios, incluindo funcionários públicos
que faziam parte do seu conselho em nome do governo. Susannah Storey, agora
secretária permanente do Departamento de Cultura, Media e Desporto, e Richard
Callard e Tom Cooper, dos Investimentos Governamentais do Reino Unido, eram
diretores não executivos dos Correios e, provavelmente, serão chamados a depor
no processo público em curso sobre as condenações.
Apresentando o plano na Câmara dos Comuns, Hollinrake
disse, após o discurso de Sunak, que os operadores dos correios condenados
durante o período relevante seriam convidados a assinar uma declaração, garantindo
que não cometeram um crime e que poderiam ser processados por fraude, se esta
fosse falsa. “Não pretendo dizer à Câmara que este é um dispositivo infalível,
mas é um dispositivo proporcional que respeita o calvário que essas pessoas já
sofreram.”
As duas classes de compensação – 600 mil libras e 75 mil
libras – refletem o facto de o segundo grupo, de 555 pessoas, fazer parte de
uma ação judicial de grupo que recebeu compensação, através de um acordo dos
Correios, em 2019. Grande parte do pagamento de 43 milhões foi para custas
judiciais, e os do grupo que acreditam ter direito a mais de 75 mil libras
também podem passar pelo processo de avaliação. Hollinrake disse esperar que os
que foram processados, após participarem de um esquema-piloto do software, também seriam elegíveis para
compensação.
Os Correios processaram mais de 900
proprietários-operadores de agências com base em informações do sistema Horizon. Embora tenham admitido a culpa,
até dezembro só 142 revisões de casos de recurso foram concluídas. Destas 93
condenações foram anuladas, com 54 mantidas, retiradas ou recusadas a permissão
de recurso.
***
Quem não se lembra das erradas e erráticas colocações de
professores (a lecionar disciplinas para as quais não tinham o mínimo de conhecimento)
no ano letivo de 1976/77, com a desculpa de que “foi o computador”? Quem não se
lembra do caos do concurso de professores para o ano letivo de 2004/2005, que
só foi resolvido em outubro, por substituição da equipa de procedimentos do
Ministério da Educação e pela intervenção de outra empresa informática? Quem
nunca foi cilindrado por um lapso informático, por um erro bancário ou fiscal? Quantos
professores não foram obrigados a fazer sumário na plataforma nos primeiros
cinco minutos de aula?
Recentemente, soube de uma criança de “oito anos” (1.º ciclo),
a qual, porque alguém se esqueceu de a inscrever para almoço na plataforma, foi
inibida de almoçar na escola.
Em contrapartida, eu próprio vi-me em dificuldade para
submeter ao fisco um formulário, mas, pedida ajuda a um funcionário, que simpaticamente
a prestou, resolvi o problema por mim.
É preciso menos deslumbramento pela tecnologia e mais
respeito pelas pessoas. A tecnologia é facilitadora, e não substituta de
pessoas. Quando ela falha, as pessoas devem ser ajudadas. Não me venham dizer
que a IA pode substituir a mão humana em escolas, hospitais, segurança social,
banca, etc.!
2024.02.02
– Louro de Carvalho
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