Uma
investigação aos negócios públicos da Região Autónoma da Madeira (RAM) e
algumas das suas autarquias, com envolvimento de empresas, levada a cabo por
cerca de duas centenas de elementos da Polícia Judiciária (PJ), sob a direção
do Ministério Público (MP) – mais propriamente do Departamento
Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP) – e com autorização de
juízes de instrução criminal (JIC), deu azo à indiciação e à constituição de
arguidos de um autarca e de dois empresários, do que resultou a sua detenção e
a sua apresentação a um JIC no Tribunal Central de Instrução Criminal (TCIC).
Ao
mesmo tempo, em processo autónomo, a investigação deu azo à constituição de
arguido do presidente do governo regional, não detido, por integrar o Conselho
de Estado, de que é membro por inerência e do qual é necessária autorização
para ser ouvido em tribunal.
A
investigação decorreu, a 24 de janeiro, na Madeira, nos Açores e no Continente
(aqui, foram investigadas empresas). Entre os
crimes que estão na base da investigação estão suspeitas de corrupção,
participação económica em negócio, prevaricação, abuso do poder, além de
outros.
Esta megaoperação impressionou pela quantidade de elementos
que mobilizou, pelo abstruso transporte em aviões da Força Aérea, pela autónoma
deslocação para a RAM de um batalhão de jornalistas para cobrirem o espetáculo
e, obviamente, por colocar em causa um governo de coligação e com acordo de
incidência parlamentar, à semelhança do que sucedera, a 7 de novembro, com o
governo da República, mas apoiado por maioria parlamentar de um só partido e
cujo primeiro-ministro (PM) não foi nem está constituído arguido.
Face a dito segundo o qual os jornalistas terão sido avisados
de véspera, o diretor da PJ veio declarar que ninguém avisara os inquiridos.
Pudera! Contudo, isso não estava em causa.
À Força Aérea aplica-se o regime das Forças Armadas (FA), que
estão disponíveis, segundo a Constituição da República Portuguesa (CRP), para
satisfação dos compromissos militares internacionais do Estado e para
participação em missões humanitárias e de paz assumidas pelas organizações
internacionais que Portugal integra (ver CRP, artigo 275.º, n.º 5). Não é o
caso.
As FA também podem ser incumbidas, nos termos da lei, de
colaborar em missões de proteção civil, em tarefas que visem a satisfação de
necessidades básicas e de melhoria da qualidade de vida das populações e em
ações de cooperação técnico-militar no âmbito da política nacional de
cooperação (ver CRP, artigo 275.º, n.º 6). Nada disto se passou.
Além disso, as leis que regulam o estado de sítio e o de
emergência devem fixar as condições de emprego das FA quando se verifiquem tais
situações (ver CRP, artigo 275.º, n.º 7). O país não está em nenhum desses
estados de exceção. Se fosse o caso, as FA, no estado de emergência,
colaborariam com as forças de segurança; e, no de sítio, dirigiriam as
operações.
***
Em termos de consequências politicas, do 7 de novembro,
resultou a demissão do PM, alegadamente por força de parágrafo que a
procuradora-geral da República (PGR) incluiu num comunicado de imprensa. Todas as
forças políticas, exceto o Partido Socialista (PS), entenderam que o PM deixou
de ter condições para continuar no cargo, o que o próprio alegou.
Além disso, todos (exceto o PS, que acabou por se conformar
com a decisão presidencial) sustentavam a necessidade de novas eleições. E o
Presidente da República (PR), em coerência com o que sempre dissera (que a vitória
eleitoral estava colada à pessoa de António Costa), afastou qualquer hipótese
de nomeação de um novo governo do PS e partiu para o anúncio da dissolução da
Assembleia da República (AR). Ao mesmo tempo, manteve o governo em plenitude de
funções até 7 de dezembro, após o que passou ao regime de gestão, e a AR em
funções até 15 de janeiro, data em que produziu o decreto de dissolução.
No caso da RAM, em que Miguel Albuquerque, além de indiciado,
é arguido, os partidos ligados ao governo regional, com exceção, a princípio,
do partido Pessoas-Animais-Natureza PAN), estavam a afastar a hipótese de
eleições e a querer sugerir que o representante da República (RR) nomeasse novo
governo a partir do atual quadro na Assembleia Legislativa Regional da Madeira
(ALRM). Esta não pode ser dissolvida sem passarem seis meses após as últimas
eleições regionais (a 24 de setembro), portanto, só a partir de 24 de março.
Todavia, nada obstava a que o anúncio da dissolução fosse feito desde já, como
aconteceu a nível nacional. Por seu turno, PS, ao invés do que sugeriu para a
República, sustentou que a RAM deveria ir para eleições, logo que possível, e
que o governo regional deveria manter-se em funções de gestão até à posse de
novo governo saído das novas eleições. Também o Chega, como em novembro, queria
eleições.
Assim, a direita política tradicional, vá lá saber-se porquê,
estava a clamar por uma solução diversa da que foi encontrada (e queria) para a
República; o PS, incoerente com o que pretendia para o Continente, acabou por
defender solução idêntica à encontrada a nível nacional, insinuando a
necessidade de coerência dos outros partidos e do próprio PR.
Entretanto, após várias reuniões partidárias, supostamente
para encontrar sucessor para Albuquerque e, pelos vistos, ninguém tendo querido
arriscar a sucessão, o presidente do governo regional, para bem da Madeira,
apresentou ao RR o seu pedido de exoneração, que foi prontamente aceite, sendo
o respetivo decreto publicado no Diário
da República.
Contudo, segundo comunicou, a 16 de fevereiro, o RR, depois
de ter ouvido os partidos com assento na ALRM e de se ter avistado com o PR
(não sei para quê), o governo regional fica em gestão, até o PR tomar uma
decisão sobre a decisão do parlamento regional.
O PR, que parecia aceitar a solução que passasse por um novo
governo regional emergente do atual quadro político, disse que era cedo para
tomar uma decisão (de facto, ainda não ocorreram as eleições nacionais, cujos
resultados são uma grande incógnita, para já), mas não descartou o poder de
dissolução.
Fora do processo está o presidente da Câmara do Funchal, que,
uma vez constituído arguido, renunciou ao mandato, sendo substituído pela até
então vice-presidente.
A decisão do RR coloca o governo regional numa situação
precária, que divide os partidos. Os da coligação queriam um novo governo, sem
eleições; o PAN, o PS e o Chega veem, na medida precária, o prenúncio de novas
eleições, a marcar pelo PR.
Do meu ponto de vista, o RR deveria ter marcado uma posição
inequívoca, e não ficar à espera do que o PR queira decidir. Se entendia que
devia haver novo governo, que o nomeasse, deixando que, de futuro, o PR
assumisse o ónus da dissolução da ALRM; se entendia que a dissolução era a
melhor opção, que mantivesse o governo em gestão, mas que sugerisse,
claramente, essa via ao PR. De resto, parecerá uma figura insignificante na
RAM, como dizia, antigamente, Alberto João.
***
No atinente aos clamores em relação à Justiça, também há
escolhos a salientar, tanto em relação à governança da República, como à da
RAM.
Propositada ou cândida, a inserção do célebre parágrafo num
comunicado da PGR, levou à queda do PM. As entidades apontadas como
responsáveis pela sua queda – PR e PGR – descartaram qualquer responsabilidade
no caso. O PR declarou que o PM é que quis ir embora; e a PGR disse que não era
responsável por coisa nenhuma.
Com exceção de Rui Rio e de alguns elementos do PS (estes de
forma contida, pelos vistos recomendada pelo PM), os partidos políticos não
criticaram o MP, a não ser pelo lado da espetacularidade da Operação Influencer,
temendo que tudo pudesse dar em nada. Contudo, posteriormente, António Costa
criticou o PR, a quem imputou a responsabilidade pela convocação de novas
eleições, pois não quis nomear um novo PM; e criticou o MP, por estar a impedir
o executivo de promover o interesse económico do país e por estar sob inquérito
sem que alguém o tenha informado do seu conteúdo. Embora a Justiça tenha o seu
tempo, não pode, segundo Costa, impedir a ação política.
É de salientar que, ao serem feitas umas abstrusas e
espetaculares buscas na casa de Rui Rio e de sedes do partido que liderou, o
Partido Social Democrata (PSD) muitos elementos do PS, aliás como alguns
comentadores criticaram a atuação do MP, o que o PSD não fez desta feita.
Entretanto, o JIC, ao invés do que que propôs o MP, mandou em
liberdade os arguidos, por não ver consistência na indiciação dos factos
alegados no inquérito. No entanto, alguns tiveram de prestar caução pecuniária
e entregar o passaporte. O JIC foi largamente criticado por não ver indiciação
suficiente no achamento de 75800 euros, no gabinete do chefe de gabinete do PM,
pela Polícia de Segurança Púbica (PSP), que coadjuvou o MP na investigação, em
vez da PJ.
Já no caso da RAM, a operação foi mais espetacular. O
presidente do governo regional foi constituído arguido, mas não foi detido, por
impossibilidade jurídico-política. Foram constituídos arguidos e detidos um
autarca (que renunciou ao cargo) e dois empresários, que foram apresentados a
um JIC no TCIC, em Lisboa, e não no departamento de investigação e ação penal
(DIAP) do Funchal (não se sabe porquê).
Efetivamente, ver guardadas umas dezenas de milhares de euros,
num gabinete da residência oficial do PM, levantou suspeitas a muita gente, mas
a PJ ter encontrado centenas de milhares de euros no Funchal e arredores não
impressionou nenhum dos habituais comentadores da praça, talvez por andarem
distraídos com os debates do período pré-eleitoral.
Ante a decisão do JIC de mandar em liberdade os arguidos, apenas
com termo de identidade e residência (TIR), recrudesceram os clamores contra
esta forma de agir do judiciário. Os políticos interessados na matéria ficaram
praticamente calados, esquecidos de que o MP recorre da decisão do JIC, apenas
considerando demasiado o tempo da audição (21 dias). Porém, querem a reforma da
Justiça, que não pode fazer-se a quente, e que muitos não creem que aconteça.
O diretor nacional da PJ veio a terreiro defender o trabalho
da corporação a que superintende.
Por sua vez, a PGR, após sucessivas críticas ao MP, que devia
uma explicação pública, emitiu um comunicado em que lamenta o tempo excessivo que
durou a audição dos arguidos e protesta contra a libertação dos mesmos,
garantindo haver fortes indícios da prática dos crimes alegados pelo MP,
ancorada no parecer de cinco juízes que intervieram no processo.
Primeiro, do meu ponto de vista, deve pôr ordem na casa;
depois, não pode equiparar o valor do pretexto dos juízes que autorizam buscas
e escutas telefónicas (para isso, não são necessários fortes indícios, mas
apenas suspeitas sustentáveis), com o da situação com que se depara o JIC na
audição dos arguidos. Cabe a este assegurar, por um lado, as liberdades dos
arguidos, tanto quanto possível, e garantir, por outro, as condições de
segurança e de eficiência do inquérito (acautelando o perigo de fuga, a
continuação da prática dos crimes ou a perturbação do inquérito). Com efeito,
se não é legítimo deter um cidadão durante muito tempo, também só se lhe deve
aplicar uma medida de coação mais grave, se outra mais leve não puder ser
considerada suficiente.
O caso da Madeira veio, pois, reiterar a exigência de muitos
sobre a autocrítica que o MP deve fazer sobre a sua forma de atuar e de
comunicar, bem como evidenciar a necessidade de articular a autonomia do MP com
a necessidade de funcionamento da sua hierarquia, o que entidades ligadas à
Justiça já vêm reconhecendo, embora não aceitando que o MP seja exposto no
pelourinho, com prejuízo para a sua ação e para a sua credibilidade. Além
disso, não é legítimo calar as vozes ou imobilizar as canetas que promovem,
internamente, a crítica de formas de atuação e de comunicação.
Na Justiça, tanto como na eficácia, conta a perceção que o
povo tem do seu funcionamento. E essa perceção não é claramente positiva. Portanto,
algo tem de mudar.
2024.02.18 – Louro de Carvalho
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