Em tempo da Quaresma, a Palavra de Deus encaminha-nos para a Páscoa de Jesus,
que é também a nossa. E o Evangelho do segundo domingo propõe-nos a claridade
da luz de Deus e a escura do Filho muito amado de Deus
O Evangelho de Marcos (Mc 9,2-10), pelo relato da Transfiguração do Senhor, apresenta-nos
uma catequese sobre Jesus, o Filho amado de Deus, que realiza o seu (e do Pai)
desígnio libertador em favor dos homens, através do dom da vida. Aos
discípulos, desanimados e assustados, Jesus garante que a rota do dom da vida
não conduz ao fracasso, mas à Vida plena e definitiva.
Marcos situa o episódio num momento charneira da
atividade de Jesus: a fase final da etapa da Galileia, antes de Jesus se
dirigir para Jerusalém.
Após o êxito inicial da sua pregação, Jesus sente,
cada vez mais, a resistência dos líderes religiosos ao anúncio do Reino. Pouco
antes da transfiguração, fariseus e doutores da Lei tinham criticado a liberdade
de Jesus, face às tradições religiosas; e Jesus tinha-os acusado de se
preocuparem com ritos externos e de não com o essencial. A seguir, os fariseus
tinham exigido de Jesus um sinal de que agia em nome de Deus; e Jesus tinha
recusado. Enfim, o judaísmo não iria aceitar Jesus.
Aos discípulos isto levantava questões inquietantes.
Viam Jesus como o Messias que Israel esperava, mas as autoridades estavam
contra Ele e não Lhe davam crédito. E a dúvida era se tinham errado, ao crerem
em Jesus e se disporem a andar com Ele.
Tudo se complica no momento em que Jesus lhe comunica a
decisão de se dirigir para Jerusalém e os avisa de que lá iria sofrer muito e
ser morto pelas autoridades (acrescenta que ressuscitaria, depois de três dias,
mas os discípulos não sabiam o que significa isso). Pedro ousa contestar a
decisão de Jesus e Jesus convida-o a pôr-se no seu lugar de discípulo e a não ser
obstáculo ao projeto de Deus. E, antes de começar a caminhar para Jerusalém, insta
cada um a renegar-se a si mesmo, a “tomar a cruz” e a segui-Lo no caminho do
dom da vida até à morte.
Perante a instalação da dúvida amarga, Jesus houve por
bem revitalizar o ânimo dos discípulos. Chamou Pedro, Tiago e João – o núcleo
duro do colégio apostólico – e convidou-os a subir com Ele a um monte. Iriam
ser confrontados com o fundamento do caminho proposto por Jesus.
A narrativa é uma teofania (manifestação de Deus).
Assim, o narrador põe no quadro os ingredientes das teofanias do imaginário
judaico (que se encontram quase sempre nos relatos teofânicos
veterotestamentários): o monte, as aparições, as vestes brilhantes, a nuvem, a
voz que vem do céu e o medo e a perturbação dos que experienciam o encontro com
o divino. E a catequese estrutura-se sobre símbolos veterotestamentários: o
monte; a mudança do rosto e as vestes brilhantes; a nuvem; Moisés e Elias; o
temor e a perturbação; e a voz de Deus.
O monte, não identificado (a tradição aponta o Tabor),
situa-nos num contexto de revelação: é no monte que Deus Se revela; e foi no
monte (o Sinai) que faz aliança com o Povo e dá a Moisés as tábuas da Lei.
A mudança do rosto e as vestes brilhantes e brancas
evocam o resplendor de Moisés, ao descer do Sinai, após o encontro com Deus e a
receção das tábuas da Lei. E o branco é a cor de Deus. Por isso, estamos no
âmbito do divino.
A nuvem indica a presença de Deus: era nela que Deus Se
ocultava e era a partir dela que Deus conduzia o Povo ao longo da caminhada
pelo deserto, em direção à Terra Prometida.
Moisés e Elias representam a Lei e os Profetas (que
figuram Jesus e que permitem entendê-Lo) e são personagens que, para a
catequese judaica, apareceriam no “dia do Senhor”, quando se manifestasse a
salvação definitiva.
O temor e a perturbação dos discípulos são a reação
natural de homem ou mulher, ante a grandeza, a omnipotência e a majestade de
Deus.
Porém, o elemento de excelência é a voz que vem da
nuvem (onde Deus se oculta). Essa voz” dirige-se aos discípulos e declara
solenemente: “Este é o meu Filho muito amado”. O próprio Deus apresenta Jesus e
garante que Ele é o Filho amado que veio ao encontro dos homens com um mandato
do Pai. E o testemunho de Deus completa-se com um imperativo: “Escutai-o”. Os
discípulos ficam assim prevenidos de que devem escutar e acolher as indicações
de Jesus, sem mais hesitações e medos, em cada passo do caminho.
Marcos tomou estes elementos, amassou-os e construiu a
sua catequese. Nela, Jesus é apresentado, antes de mais, como o Filho amado de
Deus, em quem se manifesta a glória do Pai. Ele não é visionário iludido e sem
os pés assentes na terra, nem revolucionário, com sede de protagonismo que se
aproveita, em benefício da sua ambição política, de um grupo de ingénuos. É o
Filho amado de Deus, enviado aos homens para lhes dar a salvação e a Vida. Tudo
o que diz e faz está conforme o plano de Deus. Os discípulos devem escutá-Lo e
seguir as suas indicações, mesmo quando propõe o caminho difícil de dom da vida
até às últimas consequências.
Jesus é o Messias libertador e salvador esperado por
Israel, anunciado pela Lei (Moisés) e pelos Profetas (Elias). Ele veio
concretizar as promessas de Deus ao longo da História da salvação.
Jesus é o novo Moisés, Aquele por quem Deus dá ao Povo
a Nova Lei e faz a Nova Aliança. Da ação libertadora de Jesus, novo Moisés, nascerá
o novo Povo de Deus que, guiado por Jesus, o caminhará pelo deserto da cruz até
à Terra Prometida, onde encontrará Vida em abundância.
Sobre este quadro paira a luz da ressurreição. A
glória de Deus que se manifesta em Jesus, as “vestes brilhantes, muitíssimo
brancas” (que lembram a túnica branca do “jovem” sentado junto do túmulo de
Jesus e que anuncia às mulheres a ressurreição) e a recomendação de Jesus (“que
não contassem a ninguém o que tinham visto, enquanto o Filho do Homem não ressuscitasse
dos mortos”) vêm nesse sentido. Os discípulos são, assim, convidados a olhar
para lá da cruz e a descobrir que, no final, não está o fracasso, mas a
ressurreição, a vida, a vitória sobre a morte. No entanto, eles ainda não estão
preparados para entender o alcance de tudo isto (enquanto desciam do monte,
discutiam “uns com os outros o que seria ressuscitar de entre os mortos”). Só o
compreenderiam mais tarde, à luz da ressurreição de Jesus.
Todavia, mesmo sem compreenderem, os discípulos
desceram do monte com outra perspetiva de Jesus e do seu plano. E, sem mais
hesitações, foram atrás de Jesus para Jerusalém.
***
Na primeira leitura (Gn 22,1-2.9a.10-13.15-18), sobressai a
figura de Abraão como paradigma do crente. É o homem de fé inabalável, que vive
na constante escuta de Deus, aceita os seus apelos e lhes responde com total obediência.
Essa entrega a Deus é fonte de Vida e de bênção.
No início, surge o verbo que preside ao relato e
define o sentido que os catequistas de Israel deram à narrativa: o verbo hebraico
“nassah” (“pôr à prova”). No Antigo Testamento (AT), este verbo apresenta, não
raro, as cambiantes “examinar”, “experimentar”, “testar”. Define, logo, o que
está em jogo: Deus vai “submeter Abraão a um teste”. É frequente no AT a ideia
de que Deus submete a provas o Povo ou personalidades, para Deus experimentar a
fidelidade do Povo. São forma de Deus confirmar que a comunidade ou a pessoa é
capaz de viver a relação de especial comunhão e intimidade com Ele. Porém,
Abraão não sabe que está a ser testado.
A prova a que é submetido é dramática: Deus pede-lhe
que tome Isaac, o seu único filho, e o ofereça em holocausto sobre um monte.
Ora, Isaac não é só o filho único e amado de Abraão, embora isso bastasse para
tornar a prova muito dura. Isaac é, também, o herdeiro da promessa que Deus,
continuamente, renovou a Abraão, é a garantia do futuro, da numerosa descendência
que irá tomar posse da terra, é a garantia das promessas que deram sentido à
peregrinação de Abraão desde que Deus o mandou deixar a sua terra, a sua
família e a casa de seus pais.
Abraão está ante um Deus que parece retomar o que dera
e cuja palavra de agora parece desmentir a de outrora. É o absurdo da exigência
que nega a História da Salvação; é o impasse, a obscuridade, o sofrimento em
que Abraão de repente se acha; é o ser instado a atirar-se às cegas para
caminho escuro e incompreensível.
Do princípio ao fim, Abraão não abre a boca, a não ser
para dizer: “Aqui estou” – expressão de total disponibilidade diante de Deus. Não
discute, não argumenta, não procura respostas para esse drama incompreensível
que parece hipotecar tudo o que Deus lhe havia prometido. Age, apenas.
Levanta-se de madrugada, prepara tudo para o holocausto, caminha. No monte do
sacrifício, erige o altar, amarra a vítima e puxa do cutelo. O silêncio, a
imediatez da resposta e a forma de agir mostram a entrega, a confiança total em
Deus, a obediência até às últimas consequências.
Percorrido o longo e angustiante caminho da prova,
chega e o momento em que Deus, pela voz do seu mensageiro, verifica o
resultado: todo o comportamento de Abraão ao longo desta crise testemunha que
ele “teme o Senhor”. Esta expressão – frequente no AT – significa a reverência
e o respeito, bem como a pronta obediência à vontade divina, a confiança
inamovível no Deus que não falha, a renúncia aos próprios critérios, a adesão incondicional
à vontade de Deus.
O episódio termina com a referência à “recompensa”
oferecida por Deus. A obediência de Abraão irá gerar plenitude de vida e de
dons divinos (bênção), uma descendência numerosa “como as estrelas do céu ou
como a areia que está na margem do mar” e a posse da terra. O mais interessante
é a asserção de que a obediência de Abraão resultará em bênção para “todas as
nações da terra”.
Nesta catequese, o objetivo não é dizer-nos quem é
Deus e como Ele age. A história do sacrifício de Isaac destina-se, sobretudo, a
propor-nos a atitude que o crente deve assumir diante de Deus. Abraão é
apresentado como o protótipo do crente ideal, que sabe escutar Deus e acolher o
seu plano com obediência incondicional, com total confiança. Mesmo que a
proposta de Deus seja incompreensível ou que os seus desafios interfiram com os
projetos do homem, o crente ideal deve acolher o plano de Deus e realizá-lo com
fidelidade.
***
A segunda leitura (Rm 8,31b-34) lembra aos crentes que Deus os ama com um amor imenso e
eterno. A melhor prova desse amor é Jesus Cristo, o Filho amado de Deus, que
morreu para ensinar ao homem o caminho da vida.
Quando Paulo escreve aos Romanos, está a terminar a
sua terceira viagem missionária e prepara-se para partir para Jerusalém.
Terminado a sua missão no Oriente, queria levar o Evangelho ao Ocidente.
Dirigindo-se, por carta, aos cristãos de Roma, estabelecer laços com eles e dá-lhes
conta dos principais problemas que o ocupavam (entre os quais a questão da
unidade, presente na comunidade cristã de Roma, afetada por alguns problemas de
relacionamento entre judeo-cristãos e pagano-cristãos). Estamos no ano 57 ou
58.
Na primeira parte da Carta, o apóstolo faz notar aos
cristãos divididos que o Evangelho é a força que congrega e salva todo o
crente, sem distinção. Embora o pecado afete, como realidade universal, todos
os homens, a justiça de Deus dá vida a todos, sem distinção; e é em Jesus
Cristo que a vida se comunica e que transforma o homem. Batizados em Cristo, os
cristãos morrem para o pecado e nascem para a vida nova. Passam a ser guiados
pelo Espírito e tornam-se filhos de Deus; libertados do pecado e da morte,
frutificam em santificação e caminham para a Vida eterna.
E, depois de desenvolver esta reflexão, Paulo celebra,
com um hino, o amor salvador de Deus, em que os filhos e filhas de Deus
fundamentam a sua esperança no triunfo final. O trecho em apreço é parte desse
hino.
A razão para a esperança dos cristãos está na certeza
que Deus ama todos os seus filhos com amor imenso e eterno. O envio ao Mundo de
Jesus Cristo, o Filho único de Deus, que nos mostrou o caminho da vida plena e
da felicidade sem fim, que lutou até à morte contra tudo o que oprimia e
escravizava o homem, é a prova do imenso amor de Deus por nós.
Ora, se Deus nos ama tão intensa e totalmente, não há
lugar para o medo. Ninguém ousará acusar-nos, condenar-nos ou fazer-nos mal. O
próprio Deus, com o coração inundado de amor, “justifica-nos”, isto é,
pronuncia sobre nós o veredicto de graça e de perdão, apesar de o não
merecermos.
Jesus não nos condena, pois morreu para nos libertar e
está ao lado de Deus a interceder por nós. O amor que nos dedica iguala o amor
do Pai. Assim, enfrentamos a vida com serenidade e esperança, confiando
totalmente no amor de Deus. E celebramos a Vida!
2024.02.25 – Louro de Carvalho
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