A 29 de
janeiro, o Presidente da República (PR) devolveu à da Assembleia da República
(AR), ainda sem promulgação (ou seja, vetou), o Decreto da AR n.º 127/XV, que
“estabelece o quadro jurídico para a emissão das medidas administrativas a
adotar pelas escolas para a implementação da Lei n.º 38/2018, de 7 de agosto,
procedendo à sua alteração, e o Decreto da AR n.º 132/XV, que modifica o regime de atribuição do nome próprio e
de averbamentos aos assentos de nascimento e de casamento, alterando o Código
do Registo Civil.
De acordo com
as notas presidenciais em referência e as cartas que enviou ao presidente da
AR, o chefe de Estado aduz que o primeiro diploma não respeita, suficientemente,
o papel dos pais, dos encarregados de educação, dos representantes legais e das
associações por eles formadas, nem clarifica as diferentes situações em função
das idades. Por isso, a AR deve ponderar a introdução de “mais realismo”, em
matéria em que de pouco vale afirmar princípios que se chocam, pelo “geometrismo
abstrato, com pessoas, famílias, nas escolas, em vez de as conquistarem para a
sua causa, numa escola que tem hoje, em Portugal, uma natureza cada vez mais
multicultural”.
Relativamente
ao segundo diploma, o PR considera que “não
garante um equilíbrio no respeito do essencial princípio da liberdade das
pessoas”, pelo sublinhado dado ao “nome neutro”, nome que “é legítimo como
escolha dos progenitores”, mas que “não deve impedir a opção por nome não
neutro, se for essa a vontade de quem teve essa decisão. Por outro lado, o
diploma “vem permitir que uma pessoa, que decida mudar de género, possa fazer
registar, unilateralmente, essa alteração em assentos de casamento dessa pessoa
ou de nascimento de filhos, nomeadamente menores, sem que a pessoa com quem foi
ou é casada seja consultada ou sequer informada, tal como sem que o outro
progenitor ou o filho maior se possam pronunciar ou ser informados”.
O veto político
presidencial vem na sequência do pedido que a Associação Portuguesa de Escolas Católicas (APEC)
formulou ao chefe de Estado, no sentido de vetar as medidas a adotar pelas
escolas, para garantir o direito de crianças e jovens à autodeterminação da
identidade de género.
Em nota de imprensa, a APEC alegava que a legislação em
apreço, aprovada pela AR, a 15 de dezembro, viola, de modo “flagrante e
inaceitável”, o artigo 45.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa
(CRP) que determina que “o Estado não pode programar a educação e a cultura
segundo quaisquer diretrizes filosóficas, estéticas, políticas, ideológicas ou
religiosas”. Por outro lado, segundo a APEC, a legislação “emana de uma
ideologia destruidora dos fundamentos societais, assente numa desconstrução de
padrões de convivência social milenares”.
Segundo o texto aprovado, a 15 de dezembro, em votação final
global, as medidas a adotar pelas escolas, para garantir o direito de crianças
e jovens à autodeterminação da identidade de género e à proteção das suas caraterísticas
sexuais, as escolas devem definir “canais de comunicação e deteção”,
identificando o responsável ou os responsáveis a “quem pode ser comunicada a
situação de crianças e jovens que manifestem uma identidade ou expressão de
género que não corresponde ao sexo atribuído à nascença”.
Após ter conhecimento desta situação, a escola deve, em
articulação com os pais, com os encarregados de educação ou com os
representantes legais, promover a avaliação da situação, “com o objetivo de reunir
toda a informação relevante para assegurar o apoio e acompanhamento e
identificar necessidades organizativas e formas possíveis de atuação, a fim de
garantir o bem-estar e o desenvolvimento saudável da criança ou jovem”.
A escola terá de garantir que “a criança ou jovem, no
exercício dos seus direitos e tendo presente a sua vontade expressa, aceda às
casas de banho e balneários, assegurando o bem-estar de todos”, para o que
procederá “às adaptações que se considerem necessárias”. E a APEC sustenta que
este ponto fere “a privacidade, a intimidade, o resguardo e a proteção das
crianças e jovens das instituições escolares”, advogando que as escolas, e as
católicas em particular, “têm procedido ao tratamento das situações que lhes
surgem, com o cuidado, respeito e singularidade que merecem, sem necessidade de
uma generalização, vulgarização e normalização”.
Na ótica da APEC, esta legislação, ao preconizar a promoção
de ações de informação e sensibilização para crianças e jovens, alargando-as à
restante comunidade escolar, põe a escola “no papel de doutrinação da ideologia
de género” e “não no papel de formar crianças e jovens, ajudando a construir a
sua identidade orientada para uma cidadania ativa, tendo em vista uma sociedade
melhor e mais justa”.
Por outro lado, critica o facto de as medidas terem sido
aprovadas com o governo “em condições de fragilidade política”, demissionário
desde 8 de dezembro, “com celeridade excessiva e sem o debate e o
esclarecimento necessários, imprescindíveis a uma alteração legislativa desta
natureza, com as consequências sociais dela decorrentes”.
Segundo o diploma, as crianças devem poder escolher de acordo
com a opção com que se identificam, “nos casos em que existe a obrigação de
vestir um uniforme ou qualquer outra indumentária diferenciada por sexo”. E devem
ser promovidas ações de formação dirigidas ao pessoal docente e não docente, em
articulação com os Centros de Formação de Associação de Escolas, “de forma a
impulsionar práticas conducentes a alcançar o efetivo respeito pela diversidade
de expressão e de identidade de género, que permitam ultrapassar a imposição de
estereótipos e comportamentos discriminatórios”.
A legislação para a autodeterminação da identidade de género
nas escolas foi deliberada pela AR após a rejeição, pelo Tribunal
Constitucional (TC), em 2021, da sua regulamentação pelo governo. O texto final,
que agrega projetos de lei do Partido Socialista (PS), do partido
Pessoas-Animais-Natureza (PAN) e do Boco de Esquerda (BE), foi aprovado com os
votos destes e do Livre, e teve os votos contra do Partido Social Democrata (PSD),
do Chega e da Iniciativa Liberal (IL) e a abstenção do Partido Comunista
Português (PCP).
***
Ao invés do que era de esperar, a contestação incide mais nas
medidas a adotar nas escolas do que na questão do nome neutro e da
autodeterminação de género.
A APEC, criticando a legislação pelo lado da ideologia,
preocupa-se mais com o interior das escolas do que com a questão de fundo, onde
reside a ideologia que pode ou não ser aceite.
É certo que a autodeterminação de género e a orientação
sexual se inscrevem no quadro dos direitos humanos e não podem constituir pretexto
para qualquer forma de discriminização. Todavia, para que tais direitos sejam
garantidos, não precisamos de alterar as estruturas físicas existentes nas
instalações escolares ou outras – embora se possa e deva acautelar esse quesito
de igualdade ou de diversidade em instalações novas – nem de mudar as
gramáticas (como alguns querem com os nomes próprios neutros e mesmo com nomes
comuns de desinência neutra, do tipo macieire, pere, musique, soldade, etc.).
O argumento de que “todes” se devem sentir confortáveis deve
também aplicar-se aos que se sentem melhor em espaços marcadamente masculinos
ou en espaço marcadamente femininos.
Nada tenho contra o uso de nome próprio neutro, nem contra a
descaraterização sexual em documentos de registo. Porém, julgo não haver
necessidade de forçar a língua portuguesa a admitir um género (o neutro, que
havia no Latim e no Grego) que deixou cair ao longo da História.
Por outro lado, é de evitar que os nomes neutros ou a
autodeterminação de género não redundem em modismos desnecessários e de efeitos
nefastos. Por isso, a legislação vetada diz bem em não impor o nome neutro e em
não proibir o nome masculino ou feminino, bem como a caraterização masculina ou
feminina. Contudo, não gosto de que escolhas ou alterações desta ordem se façam
às escondidas de cônjuges e parentes da mesma comunidade familiar. Talvez o
caminho seja o da aposta forte numa antropagogia desempoeirada e
respeitosa.
Numa coisa assento: a aceitação inequívoca da igualdade de
género, que impeça todo o tipo de discriminação. Já quanto à identidade de
género (no pressuposto de que a diferenciação é fruto da sociedade e não da
Natureza), duvido da validade do seu suposto suporte científico. E lamento que
haja mudanças de sexo que, mais tarde, se querem reverter. As pessoas foram na
onda ou foram lançadas na aventura ou na coação?
***
No caso do diploma que foi aprovado apenas com os votos contra do Chega na
Comissão de Direitos Liberdades e Garantias e que permitia que uma pessoa
registasse um nome próprio que não fosse identificado com o género masculino ou
feminino – por exemplo Alex, Rafa, Cris –, o PR diz que o texto “não garante um equilíbrio no respeito do essencial
princípio da liberdade das pessoas”. E considera que, sendo a escolha do nome
neutro legítima, ela “não deve impedir a opção por nome não neutro, se for essa
a vontade de quem teve essa decisão”.
O segundo problema respeita ao facto
de a lei permitir que uma pessoa possa decidir mudar de género, registando tal
mudança nos averbamentos de casamento ou de nascimentos de filhos, “sem que a
pessoa com quem foi ou é casada seja consultada ou sequer informada, tal como
sem que o outro progenitor ou o filho maior se possam pronunciar ou ser
informados”.
“O Presidente da República entende
que quem muda de sexo ou nome, se é casado/a, a outra parte tem uma palavra a
dizer sobre isso. Mas, se a outra parte tivesse algo a ver com isso, seria
inconstitucional, por violação da liberdade individual, da autonomia e da
autodeterminação da pessoa que muda de sexo ou nome”, sustenta a deputada
socialista Isabel Moreira.
Quanto ao diploma que estabelece a
possibilidade (e até a obrigatoriedade) de as escolas adotarem
medidas para implementar a lei que estabelece a autodeterminação da identidade
e expressão de género (“lei das casas de banho”), como por exemplo a formação e sensibilização da comunidade
escolar, além da identificação de um profissional responsável pelas situações
de disforia de género, o PR considera que o texto não respeita
suficientemente o papel dos pais, dos encarregados de educação, dos representantes
legais e das associações por eles formadas, nem clarifica as diferentes
situações em função das idades.
Isabel Moreira frisa que “já havia um decreto regulamentar em vigor e cuja
implementação estava a correr muito bem”. Contudo, o TC considerou-o ferido de
inconstitucionalidade orgânica, pois tinha de ter a “forma de lei.” Foi isso
que foi feito. “E, mesmo assim, o decreto caiu”.
Ao vetar o diploma, o PR “legitimou a ideia de que
proteger direitos fundamentais de jovens trans pode ser uma ameaça e cedeu mais
uma vez a uma agenda que está a beneficiar, neste momento, não a
igualdade e direitos fundamentais como a liberdade e a segurança de todos – o
que implica proteger as minorias – mas uma direita ultrarradical”, aponta a
deputada.
***
Considero que a argumentação do veto presidencial à “lei das casas de
banho” é artificiosa e algo rebuscada. Não obstante, é excessivo dizer que
houve cedência a uma direita radical.
A APEC aponta o dedo, não à ideologia base, mas a fumos que, havendo uma
cultura de equilíbrio (que faz falta) não teriam efeitos nefastos na sociedade
e até evitariam casos de enorme sofrimento para quem se vê discriminado e com
problemas existenciais. Quanto ao artigo 45.º da CRP, teríamos de criticar
muitas coisas na intervenção do Estado âmbito da Cultura e da Educação. E,
quanto à duvidosa legitimidade do diploma por o governo estar demissionário, é
de referir que a AR, sede de aprovação do diploma, esteve na plenitude de funções
até 15 de janeiro.
Por fim, estranho a decisão do TC sobre o dito decreto regulamentar. Foi a própria
Lei n.º 38/2018, de
7 de agosto, no seu artigo 12.º, n.º 3, que deu poderes regulamentares aos
membros do governo responsáveis pelas áreas da igualdade de género e da educação.
Não houve subtração à AR.
2024.02.01 – Louro de Carvalho
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