Três
insignes figuras bíblicas, além de Jesus, marcaram a liturgia do 2.º domingo do
Advento no Ano A, a 4 de dezembro: o profeta Isaías, o precursor João Batista e
o apóstolo Paulo.
Na
primeira leitura (Is 11,1-10) desta Liturgia,
Isaías apresenta um enviado de Javé, descendente de David, sobre quem repousa a
plenitude do Espírito de Deus e cuja missão é construir um reino de justiça e
de paz infindas, de onde estarão definitivamente banidas as divisões e os
conflitos.
O
trecho profético em causa é um poema que alimenta o sonho do regresso à época
ideal do reinado de David, dando fôlego à corrente messiânica.
Atingida
a maioridade, o rei Ezequias passou a dirigir os destinos de Judá (cerca de 714
a.C.) e tentou consolidar uma frente antiassíria, com o Egito, a Fenícia e a
Babilónia – atitude censurada pelo profeta, por significar a colocação da
confiança e da esperança no poder de exércitos estrangeiros, negligenciando o
poder de Deus, e por ser um grave sinal de infidelidade a Deus. Daí resultaria
a ruína da nação, que se consumou quando Senaquerib invadiu Judá, cercou
Jerusalém e obrigou Ezequias a submeter-se ao poder assírio (701 a.C.).
Desiludido
com a política dos reis de Judá, o profeta passou a visionar um tempo novo, sem
armas e sem guerras, de justiça e de paz sem fim, o qual só poderia surgir da
iniciativa de Javé, cujo instrumento na implementação desse reino seria, na visão
do profeta, um descendente de David. Este poema será o texto epocal em que melhor
se combinam profecia e sonho.
Na
sua primeira parte (Is 1-5), o
profeta apresenta o instrumento de Deus na concretização do reino. Virá “da
raiz de Jessé”, pai de David e fará voltar o tempo ideal de bem-estar, de
abundância e de paz que o Povo de Deus viveu no reinado ideal de David. Será
animado pelo Espírito de Deus (ruah
Jahwéh), o que ordenou o universo no alvor da criação, animou os heróis
carismáticos de Israel e inspirou os profetas. Esse Espírito confere ao enviado
de Deus as eminentes virtudes dos antepassados: sabedoria e inteligência, como as
de Salomão, espírito de conselho e de fortaleza, como o de David, e espírito de
conhecimento e de temor de Deus, como o dos patriarcas e profetas. A estas virtudes
a versão grega dos Setenta
acrescentou a piedade. Eis a origem da lista dos dons do Espírito Santo (Sacrum Septnarium).
Da
plenitude carismática brota a justiça e a construção do reino onde os direitos
dos pobres são respeitados e os oprimidos terão a liberdade e a paz. Dele serão
excluídas, definitivamente, a injustiça, a mentira, a opressão e a repressão.
Tal será o reino que o Messias virá inaugurar.
Na
segunda parte do poema (Is 11, 6-9),
Isaías descreve o quadro do mundo novo que o Messias vai instaurar. A revolta
do homem contra Deus introduzira no mundo fatores de desequilíbrio que
quebraram a harmonia entre o homem e a natureza, entre o homem e o irmão. Agora
o Messias trará a paz e cumprir-se-á o desígnio de Deus para o mundo e para o
homem: os animais – selvagens e domésticos – viverão em harmonia e todos estarão
submetidos ao homem na sua fragilidade máxima. A própria serpente (que, estando
na origem do afastamento do homem do Deus criador, instaurou a desarmonia
universal) comungará desta harmonia e paz: é a superação do desequilíbrio, do
conflito, da divisão que o pecado fez entrar no mundo. Desfeitas as inimizades
e superadas as desarmonias, o homem viverá em paz, em total comunhão com Deus. No
paraíso terreal, optou por ser adversário de Deus e por viver no orgulho e na
autossuficiência; agora, por ação do Messias, regressa à comunhão com o criador
e passa a viver no “conhecimento de Deus”. Regressa ao paraíso original e torna-o
mais o espaço do homem.
No
Evangelho (Mt 3,1-12) João Batista
anuncia que a concretização do Reino está muito próxima. E, para que o Reino se
torne realidade viva, convida os coetâneos a mudarem a mentalidade, os valores,
as atitudes e os comportamentos, para que haja, nas suas vidas, lugar para a
Salvação que está a chegar, pois “Aquele que vem” oferece aos homens o batismo
“no Espírito Santo e no fogo”, que os tornará “filhos de Deus” e capazes de
viverem no dinamismo do Reino.
Após
o Evangelho da Infância (cf Mt 1-2),
Mateus apresenta a figura que prepara os homens para acolherem Jesus: João Baptista,
que foi o guia carismático do movimento popular que anunciava a proximidade do “juízo
de Deus”. Vivia no deserto, nas margens do rio Jordão. A sua mensagem, centrada
na urgência da conversão, pois o “juízo de Deus” estava iminente, incluía o
rito de purificação pela água, rito frequente entre alguns grupos judeus da
época, sendo provável que João tivesse relação com a comunidade essénia de
Qûmran, para a qual o juízo de Deus e os rituais de purificação pela água
faziam parte do quotidiano. E, segundo a mais antiga tradição cristã, Jesus teve
relação com o movimento de João no início da sua vida pública e alguns
discípulos de João tornaram-se, a partir de certa altura, discípulos de Jesus
(cf Jo 1,35-42).
Os
primeiros cristãos viram João como o mensageiro anunciado em Is 40,3 e como Elias (2Rs 1,8) que, segundo a tradição judaica,
anunciaria a chegada do Messias. Assim, João foi o precursor a preparar o
caminho e Jesus é o Messias, enviado por Deus para anunciar o reinado do Senhor.
Em
João, há vários fatores a destacar: a figura, a mensagem, as reações ao anúncio
e a comparação entre o batismo de João e o batismo de Jesus.
João
é figura que interpela. Aparece ligada ao deserto (lugar de privações e de
despojamento, mas também lugar do encontro entre Javé e Israel), não ao Templo
ou aos sítios onde se reúne a sociedade seleta de Jerusalém; usa, como Elias,
“uma veste tecida com pelos de camelo e uma cintura de cabedal à volta dos
rins”, não as roupas finas, com pregas minuciosamente estudadas, dos sacerdotes
da capital; faz alimentação frugal (de “gafanhotos e mel silvestre”), em contraste
com as iguarias finas das mesas da classe dirigente. É, pois, um homem que –
por palavras e pela própria pessoa – questiona um certo estilo de vida, voltado
para as coisas, para o “ter”, convidando à conversão, à mudança de valores, ao
esquecimento do supérfluo, para relevar o essencial.
Mateus
resume o anúncio joânico no pregão: “Convertei-vos (“metanoeîte”), porque está perto
o Reino dos céus”. O verbo grego (metanoéô) tem o sentido de “mudar de
mentalidade”; mas aqui deve ser visto na perspetiva do Antigo Testamento (AT), como
apelo ao retorno incondicional ao Deus da Aliança. E esse retorno ou conversão
é urgente, porque o “Reino dos céus” está perto. Muito provavelmente, João ligava
a vinda iminente do Reino ao “juízo de Deus”, que destruiria os maus e
inauguraria, com os bons, um mundo novo. Por isso, fala da “cólera que está
para vir” e acrescenta: “o machado já está posto à raiz das árvores”, pelo que “toda
a árvore que não dá fruto será cortada e lançada ao fogo”. E, na ótica de João,
é urgente a conversão, pois aproxima-se a intervenção justiceira de Deus na
história humana; e quem não estiver do lado de Deus será aniquilado –
perspetiva em voga em ambientes apocalípticos, como na teologia dos essénios.
A
mensagem é para todos. Com efeito, Mateus fala da “gente que acorria de
Jerusalém, de toda a Judeia e de toda a região do Jordão” e era batizada “por
ele no rio Jordão, confessando os seus pecados”. No entanto, Mateus faz especial
referência a fariseus e a saduceus, para quem João tem palavras duríssimas: “Raça
de víboras, quem vos ensinou a fugir da ira que está para vir? Praticai ações
que se conformem ao arrependimento que manifestais. Não penseis que basta
dizer: ‘Abraão é nosso pai’.” São pessoas que, à cautela ou por curiosidade,
vêm ao encontro de João, mas sentem que o juízo de Deus não as atingirá porque,
sendo filhos de Abraão e membros privilegiados do Povo eleito, Deus tem de os
salvar, quando vier para julgar o mundo e condenar os maus. Porém, João adverte
que não há salvação mecanicamente assegurada aos inscritos nos registos do povo
eleito: é preciso viver em contínua conversão e fazer as obras de Deus, pois “toda
a árvore que não frutifica será cortada e lançada ao fogo”.
Releva-se,
no texto, o rito de imersão na água do rio Jordão das pessoas que aderiam ao apelo
à conversão. Era rito praticado em certos ambientes judaicos a significar a
purificação do coração e que João ministrava para significar o arrependimento,
o perdão dos pecados e a agregação ao “resto de Israel”, subtraído à ira de
Deus. Todavia, João adverte: “Aquele que vem depois de mim […] batizar-vos-á no
Espírito Santo e no fogo.” De facto, o batismo de Jesus vai muito além do
batismo de João: confere a quem o recebe a vida de Deus (Espírito) e torna-o
filho de Deus; e implica a incorporação na Igreja (comunidade dos que aderiram
à salvação que Cristo trouxe) e a participação ativa na missão da Igreja.
Significa o arrependimento e o perdão dos pecados, mas também um quadro de vida
novo, o da relação de filiação com Deus e de fraternidade com Jesus e com todos
os batizados.
Por
sua vez, a segunda leitura (Rm 15,4-9)
dirige-se aos que receberam a proposta do Reino. Sendo o rosto visível de
Cristo no meio dos homens, devem dar testemunho de união, de amor, de partilha,
de harmonia, acolhendo e ajudando os irmãos mais débeis, a exemplo de Jesus.
A
Carta de Paulo é de reconciliação, endereçada aos romanos, mas dirigida a toda
a Igreja. Pretende, quando culturas e sensibilidades diferentes dividem os
cristãos, afastar o espectro da divisão da Igreja e levar os crentes a
redescobrir a unidade da fé e a igualdade de todos ante Deus. Tendo optado por
Cristo e recebido o batismo, receberam o dom de Deus e tornaram-se irmãos.
O
trecho em referência pertence à segunda parte da carta (Rm 12,1 – 15,13), em que Paulo exorta os cristãos a viver no amor e
lhes dá algumas indicações práticas acerca do comportamento que devem assumir
para com os irmãos.
O
texto deve entender-se no contexto mais amplo da perícope que vai de 15,1 a
15,13, construída na base de dois parágrafos simétricos que apresentam a mesma
sequência e organização: exortação; motivação cristológica; iluminação a partir
da Escritura; e súplica final.
Na
primeira parte, Paulo exorta os cristãos a vencer o egoísmo e a autossuficiência
e a dar as mãos aos mais débeis. Como motivo de tal postura, invoca o exemplo
de Cristo, que não procurou um caminho de facilidade, mas escolheu o amor e o
dom da vida. Esta postura é a que a Escritura – escrita para nossa instrução –
nos sugere. E Paulo pede ao “Deus da perseverança e da consolação” que dê aos
cristãos de Roma a harmonia, para que O louvem num só coração e numa só alma. Na
segunda parte, Paulo exorta os crentes a não fazerem discriminações, mas a
acolherem todos. Como razão para este comportamento, aponta o exemplo de Cristo,
que acolheu todos os homens e justifica o que disse entes com o exemplo da
Escritura, citando explicitamente vários textos do AT. E pede ao “Deus da
esperança” que cumule os crentes “de alegria e de paz, na fé”.
O
mais importante de tudo isto é a mensagem que sobressai no texto: a comunidade
deve viver em harmonia, acolhendo e ajudando os mais fracos, sem discriminar
nem excluir ninguém, no amor e na partilha. Cristo é o exemplo que a comunidade
deve ter sempre diante dos olhos.
Em
suma, Isaías e João encaminham-nos para Cristo, de quem Paulo é testemunha
esclarecida, esclarecedora e infatigável. Estas figuras bíblicas, entendidas
segundo a palavra e a atitude de Cristo, mostram a efemeridade dos reinos do
mundo, a fragilidade da vida assente nos critérios humanos perpassados pela autossuficiência,
egoísmo e ganância do poder, do dinheiro e da fama e constituem veemente apelo
à assunção dos valores do Reino: a sabedoria do dom, a força do Espírito, a
entrega, a partilha, o diálogo, a fraternidade, a inclusão, a comunhão, a
justiça, a paz.
2022.12.05 – Louro de Carvalho
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