A Procuradora-Geral Europeia, a romena Laura Kövesi, que
veio a Lisboa para se avistar com vários responsáveis portugueses da área da
Justiça, no contexto da “Operação Admiral”, a maior investigação deste
recém-criado organismo, revelou alguns pormenores desta ação de combate à fraude no imposto sobre o valor acrescentado
(IVA), na Europa, num esquema de 2,2 mil milhões de euros, com
cerca de 600 suspeitos e mais de 9 mil empresas envolvidas no esquema
tentacular e milionário que se estendeu a 36 países e que começou por ser
detetado em Portugal.
Em causa estão crimes de associação
criminosa, fraude fiscal e branqueamento.
Como contou o português José Guerra, da Procuradoria Europeia (PE), que
está em Portugal para acompanhar as buscas, foi em Coimbra que as autoridades
detetaram um tentáculo de um polvo que cobriu, a princípio, 17 países da Europa
e provocou um prejuízo de 2,2 mil milhões de euros em IVA, que terão ficado por
pagar. A descoberta foi da Autoridade Tributária (AT) que estranhou o facto de
empresas “de pequena dimensão apresentarem uma faturação invulgar”, que tanto a
AT como a Polícia Judiciária (PJ) efetuaram em território nacional.
Assim, embora “a cabeça do polvo” esteja na Europa, o nó começou a ser
desatado em Portugal, segundo o procurador, que sustenta que, na PE, “puderam
fazer uma leitura mais abrangente dos factos” e “a ligação entre todas as
empresas envolvidas”, de modo a chegar a tal resultado.
Em Portugal, a PJ fez 14 detenções em vários pontos do país, a partir de
100 buscas domiciliárias e não domiciliárias realizadas
no Porto, em Matosinhos, Vila Nova de Gaia, Braga, Guimarães, Vila do Conde,
Póvoa de Varzim, Coimbra, Figueira da Foz, Lisboa, Corroios, Vila Franca de
Xira, Sintra e Funchal. Na Europa, as
operações policiais estenderam-se a países como Alemanha, França, Itália,
Espanha, Bélgica, Países-Baixos, Luxemburgo, República Checa, Hungria, Grécia,
Roménia, Eslováquia, Grécia, Áustria, Lituânia e Chipre.
Em causa estavam, a princípio, “oito mil empresas” que faturavam serviços
falsos em cadeia para evitar o pagamento de IVA aos Estados dos vários países,
o que José Guerra denomina de “um carrossel do IVA clássico mas por toda a
Europa”. As empresas vendiam sobretudo material tecnológico e informático (“objetos
de pequena dimensão e grande valor”).
Segundo a PJ, a atividade criminosa assentava
na “constituição sucessiva de uma complexa cadeia de empresas”, cujo objeto
social, na maioria delas, era a venda de equipamento informático em
plataformas online e que executavam os atos necessários (incluindo
o emprego de documentos forjados e de declarações tributárias) para se locupletarem com as quantias de IVA
recebidas da venda desses produtos a clientes finais, num esquema típico da Missing Trader Intra-Community (MTIC) Fraud”,
lesivo os cofres da União Europeia (UE).
Os ditos milhões de euros passaram pela filial portuguesa do Deutsche Bank,
com a cumplicidade do gerente, e pertencem a um grupo de cidadãos portugueses e
de franceses a residir em Portugal. De acordo com um despacho da PE, da secção
de processos do Porto, desde 2016 que o grupo é responsável pela referida “constituição
sucessiva de uma cadeia de empresas. Até ao momento há 14 pessoas detidas por
suspeitas de crimes de associação criminosa, fraude fiscal qualificada,
branqueamento de capitais e falsificação de documentos.
Ainda, segundo o despacho da PE, os suspeitos, além de constituírem
empresas, procedem à abertura de contas bancárias em nome das mesmas, “através
das quais fazem transitar o dinheiro, assim obtido e que depois usam para
vários fins, incluindo a compra de bens pessoais, de propriedades imobiliárias
ou outros bens de elevado valor”.
Os investigadores suspeitam também que esta “identificada célula ou grupo
português” se integra numa rede mais vasta de pessoas espalhadas por vários
países da UE, para “realizarem transações intracomunitárias de bens por forma
ilegítima e que lhes permite apoderarem-se do IVA devido, por tais transações,
aos estados-membros da União Europeia”. O grupo “ou cria ou simplesmente mantém
empresas” que realizam transações “fora do radar fiscal”, fazendo-as atuar como
missing traders, escapando ao
pagamento do IVA, com o recurso a declarações e a documentação falsa.
Os suspeitos, “quer os já identificados em Portugal, quer os que se
encontram noutros países e virão a ser identificados”, usaram plataformas de
venda online que permitem a abertura de contas comerciais para vendedores e
para compradores; disponibilizam aos vendedores a distribuição e o transporte
dos produtos aos compradores online, recebida a mercadoria nos seus armazéns
logísticos, organizados geograficamente nos pontos de venda, funcionando como
entidade financeira, “recebendo os valores dos clientes finais e enviando-os
para as contas bancárias indicadas pelos vendedores”. Os lucros avultados com o
esquema milionário permitiram aos envolvidos adquirirem bens, como imóveis,
automóveis e relógios de luxo, em Portugal e noutros países como os Emirados
Árabes Unidos.
***
Para a Procuradora-Geral Europeia, ouvida pelo Expresso, a 6 de dezembro, a “Operação Admiral” é a maior operação
deste organismo contra a fraude no IVA até ao momento, quer pelo
montante em causa (2,2 mil milhões de euros), quer pelos países envolvidos (36
países), bem como pela grande quantidade de suspeitos (cerca de 600) e pelas
empresas envolvidas no esquema (mais de 9 mil). A
operação dura há um ano e alguns meses, tendo o facto de o organismo funcionar
em 22 Estados-membros da UE permitido melhores resultados do que se
fossem as procuradorias a funcionar individualmente em cada país. Com a PE,
criada há cerca de dois anos, é possível uma circulação mais fluida de
informação entre todos os procuradores sobre o caso.
E Laura Kövesi enfatiza o “muito importante” papel de Portugal nesta
operação: “Recebemos a informação sobre suspeitas de fraude por parte da
Autoridade Tributária e Ministério Público [MP] português. Abrimos um inquérito
baseado nesta denúncia no que parecia ser de início um pequeno caso. E, a
partir de então, começámos a investigar a ligação destas empresas e suspeitos
com outras empresas e suspeitos de outros Estados-membros.”
Disse que os danos estimados “são de 2,2
mil milhões de euros, mas podem ser ainda mais vastos” e referiu que a investigação ainda
está em aberto, pois “ainda há atividades de investigação em alguns
Estados-membros neste momento”, pelo que “isto é apenas o início para nós e o
fim para alguns criminosos envolvidos nesta grande rede europeia”.
No atinente a investigações que
tem a PE abertas em Portugal e ao montante de danos, apontou que, atualmente, o
número de investigações é um pouco superior às nove em curso, em março, tal
como o montante de danos é superior aos 158,2 milhões de euros. Deu conta de que em, toda a Europa, há 1200 investigações em aberto
pela PE. Revelou que, num ano, se recuperaram 250 milhões de euros, cinco vez mais do que o orçamento do organismo que
dirige. E desafiou: “Se meterem um euro na Procuradoria Europeia, iremos
recuperar cinco euros.”
Declarando-se satisfeita com
estes resultados, espera
conseguir, no futuro, recuperar ainda mais dinheiro. E atira: “Considero que,
neste momento, somos a melhor ferramenta, neste campo, para recuperar os danos
relativos a fraudes com o IVA e outros crimes económicos.”
Considera difícil de dizer se
os crimes de branqueamento de capitais, como a fraude com o IVA, são tão ou
mais lucrativos do que os da droga, como refere a Europol, pois, todos os anos, em média, se têm verificado danos de 50
milhões de euros relativos a fraudes com o IVA e, apesar de grande parte destes
crimes não ser detetada até há pouco tempo, sempre houve “grandes redes de
grupos criminosos nesta área a atuar de modo muito eficaz, e difíceis de
detetar”.
Quanto à dimensão deste
negócio e ao dano para a economia europeia, sustenta que “50 milhões de euros são danos muito elevados” e que
uma das razões por que veio a Portugal “foi falar com os responsáveis sobre a
forma de aumentar os recursos da Procuradoria Europeia de modo a combater de
forma mais eficaz estas redes”, apesar de se dizer que não há recursos
suficientes.
Em Portugal, só há dois procuradores a trabalhar em Lisboa e dois no Porto.
É pouco ou quase nada. Porém, eles não trabalham sozinhos e têm o apoio da AT e
das polícias portuguesas.
Concorda com o propósito dos
ministros da Justiça da França e da Alemanha de alargar a competência da PE
para investigar as violações das medidas restritivas da UE contra a Rússia.
Afirma a prontidão do organismo que dirige e observa que é “a melhor e a única ferramenta para investigar esse
tipo de crimes”, só faltando a legislação decidir isso. E considera que este modelo da PE, organismo independente da
UE para investigação de fraude e corrupção, não existe em mais lado nenhum no
mundo, assegura que este é o bom caminho e garante maior eficiência, se puder
dispor de mais recursos.
Interpelada se os MP dos
países europeus já se habituaram ao papel da PE e não o veem como ingerência na
sua própria autonomia, defende que se trabalha com os procuradores de cada país, não competindo com
ninguém.
Confrontada com a situação na
Roménia, país de onde é natural e onde lutou contra a corrupção, confessa: “A corrupção continua lá. Está em todo o lado. E não
apenas na Roménia. Não é algo nacional.” E, comparando com Portugal e com os
demais países da UE, explana: “Encontramos a mesma tipologia
de corrupção em todos os Estados-membros. Não existem países bons e maus no que
respeita à corrupção. A criminalidade está quase em todo o lado. A única
diferença é o nível de deteção dessa corrupção e o envolvimento das autoridades
de cada país na deteção e no combate a esse flagelo e no seu apoio à Procuradoria
Europeia.”
***
A corrupção e crimes afins (difíceis de provar)
instalaram-se por via da desonestidade das pessoas e pelo capricho do
capitalismo financeiro sem rosto, demolidor do capital de empresa e dos erários
públicos. É urgente o seu combate, mas, para tanto, é precisa legislação clara
e liberta de pruridos constitucionalistas, fiscalização pronta e eficaz,
justiça atempada e imparcial, educação para a honestidade e, sobretudo, vontade
política. E parece que ninguém quer combater a corrupção.
2022.12.06 – Louro de Carvalho
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