Preferia ter certezas e não ficar na dúvida
sobre o que pensar dos decisores políticos e da visão científica dos juristas
da nossa praça.
Alguns constitucionalistas, como Jorge Miranda,
e a provedora de Justiça, Maria Lúcia
Amaral, entendem que não é necessária uma revisão da Constituição da República
Portuguesa (CRP), mas entendem que uma revisão cirúrgica da mesma possa “resolver alguns problemas”.
Jorge Miranda afasta qualquer alteração na
organização do poder político, embora critique o comportamento do Tribunal
Constitucional (TC), por não fazer a cooptação dos juízes quando expira o
mandato dos cooptados. Porém, aceita alterações no quadro dos direitos
fundamentais, como a preocupação ambiental, bem como o estabelecimento do
direito de voto a partir dos 16 anos, tendo em conta, neste caso, a coerência
com a possibilidade de haver a emancipação e o casamento a partir dessa idade.
E, como outros constitucionalistas, entende que a CRP deverá esclarecer a
questão dos metadados e o regime jurídico da emergência sanitária em caso de
pandemia ou até de epidemia com graves riscos para a saúde pública.
Já Maria Lúcia
Amaral salientou, em entrevista à agência Lusa, que
a CRP “tem sido estável”, pelo que, enquanto jurista, defende
que “não era necessária uma revisão constitucional”, embora reconheça que este
processo possa ser útil “para resolver alguns problemas”, que precisam de ser
esclarecidos”, como é o caso dos metadados e o das medidas em estado de emergência, embora entenda que a
revisão “não é necessária”. E justificou: “É bom que se esclareça. Passámos por
uma pandemia, eu aí fui eco de muitas dessas dúvidas e tive uma política
claramente definida. Havia muitas dúvidas em saber se as medidas que foram
tomadas fora do estado de emergência tinham ou não suficiente respaldo na
Constituição. Era bom que isso ficasse resolvido.”
Em maio de 2021, sustentou que Portugal precisava de uma nova lei que regulamente situações de emergência como a criada
pela pandemia, sem os limites de vigência temporal impostos pelo estado
de emergência constitucional, e que a sistemática renovação do estado de
emergência confere um prazo de caducidade às decisões políticas que comprometem
a adesão e a confiança dos cidadãos às medidas em questão. Agora, considerando que
“não era necessária uma revisão constitucional”, aceita que a
revisão possa avançar e sirva para esclarecer “situações em que estão em
causa interesses públicos relevantíssimos”. A este respeito, declarou: “Penso,
como jurista, que não era necessári[a] uma revisão constitucional, mas, se a
maioria dos juristas entende que é necessária uma revisão constitucional, então
que se esclareça a questão.”
Para a provedora de Justiça, a revisão deverá servir também para esclarecer
a questão dos metadados, cuja polémica surgiu após o TC ter declarado
inconstitucionais normas que determinavam que os fornecedores de serviços
telefónicos e de internet deveriam conservar os dados relativos às comunicações
dos clientes – como origem, destino, data e hora, tipo de equipamento e
localização – durante um ano, para utilização em investigação criminal.
Maria Lúcia Amaral sustentou que, a haver revisão, esta seja
“esclarecedora”, “pacificadora” e que “antecipe problemas futuros”. E desafiou
que, se há dúvidas na comunidade sobre a falta de clareza constitucional faz
sobre isto, “é bom que se esclareça”.
Era importante que os políticos e os juristas da praça esclarecessem se a
revisão é ou não necessária. Não percebo como querem que se esclareçam as
dúvidas e não é necessária a revisão.
Talvez a questão se esclareça auscultando os cidadãos, como se poderá ver pelos resultados de uma sondagem
da Aximage para o DN, o JN e a TSF sobre o processo de revisão em curso.
A iniciativa do processo foi do Chega, mas a
aritmética parlamentar dita que as mudanças serão as que forem consensualizadas
entre o (Partido Socialista) PS e o Partido Social Democrata (PSD), pois só com
o envolvimento destes dois partidos se chega à indispensável maioria de dois
terços dos deputados. Assim, deverão passar as alterações que permitam o
recurso aos metadados e aos confinamentos, já que ambos incluíram essas
matérias na sua lista de prioridades.
Por seu turno, os eleitores estão
disponíveis para permitir o acesso das polícias aos metadados em caso de crime
grave e para possibilitar que haja pessoas confinadas sem ser necessário
declarar o estado de emergência. Essas são as duas propostas com que os
eleitores mais se identificam (de um total de seis com que foram confrontados).
Em particular, no atinente à “lei dos metadados”,
59% aceitam que a polícia use dados de tráfego e de localização das
comunicações, seja em chamadas telefónicas, seja na navegação na Internet, se
estiverem em causa suspeitas de crimes graves e se houver autorização judicial.
O apoio à inclusão desta possibilidade na CRP é elevado entre os eleitores do
PS e PSD. Se for aprovada, não se repetirá o veto do TC, como aconteceu em
abril deste ano, para sobressalto do Ministério Público (MP). Também a proposta
respeitante a confinamentos, das listas do PS e do PSD, prevê a possibilidade
de restrição da liberdade de portadores de doença contagiosa (por exemplo, a
covid), mesmo que o país não esteja em estado de emergência: 54% dos inquiridos
concordam, sendo os eleitores socialistas e sociais-democratas os seus maiores
defensores.
Há uma outra proposta de alteração que reúne um
apoio maioritário dos portugueses (53% concordam), mas cuja hipótese de
aprovação é menos clara. O PS propõe a inclusão da identidade de género como
fator não-discriminatório (a par, por exemplo, da orientação sexual, da
religião ou das convicções políticas) e é entre os eleitores socialistas que o
apoio é maior (70%). Contudo, a medida não se encontra nas prioridades do PSD,
sendo igualmente certo que os eleitores sociais-democratas não mostram tanto
entusiasmo (apenas 45% concordam).
E, quando estão
em causa alterações ao funcionamento do sistema político, a resistência é
maior. De acordo com a sondagem, as propostas do PSD e do Bloco de Esquerda
(BE) no sentido de alargar o voto dos 18 para os 16 anos não têm acolhimento:
28% dos eleitores estão de acordo, mas 47% discordam, incluindo os eleitores
sociais-democratas (53%). O mesmo acontece com os mandatos do Presidente da
República. Entre as prioridades do PSD para esta revisão, está a ideia de
reduzir de dois mandatos para um, embora alargando a sua extensão de cinco para
sete anos. A ideia não colhe entre os portugueses: 40% estão contra (entre os
eleitores sociais-democratas são 42%) e apenas 32% apoiam essa mudança.
***
Ouvidos
sobre a matéria os líderes do PSD (Miguel Albuquerque e José Manuel Bolieiro) e
os do PS (Sérgio Gonçalves e Vasco Cordeiro) das duas Regiões Autónomas,
Madeira e Açores, verifica-se o seguinte:
Os
líderes regionais do PSD (e presidentes dos governos das duas regiões
autónomas) pretendem que os poderes autonómicos, incluindo o poder legislativo
próprio, deixem de ser olhados pelo prisma de um “quase complexo” temor
separatista e passem a ser vistos como oportunidade para ensaios de outras
opções de governação e de outras soluções mais criativas e inovadoras de desenvolvimento.
E julgam imperativa a clarificação dos aspetos relacionados com a gestão
partilhada dos recursos naturais, nomeadamente o mar. Por isso, não pode
subsistir a forma como o TC aprecia as matérias que lhe são presentes, quase
fazendo crer que o modelo constitucional saído de 2004 é idêntico ao anterior,
com forte condicionalismo e com leitura restritiva dos poderes autonómicos e
dos seus graus de liberdade.
E,
em concreto, propõem: a extinção do representante da República, com a
transferência constitucional das respetivas competências para o Presidente da
República; a clarificação das competências regionais quanto à gestão das zonas
marítimas de cada Região Autónoma, no quadro da gestão conjunta e partilhada; a
atribuição aos Estatutos Político-Administrativos dos Açores e da Madeira, de
modo expresso, do estatuto de leis de valor reforçado; a execução da declaração
do estado de emergência assegurada nas Regiões Autónomas pelo Governo Regional;
o alargamento dos poderes legislativos e a substituição da designação de
decretos legislativos regionais por “leis regionais”; a participação dos
presidentes dos Governos Regionais em, pelo menos, duas reuniões anuais do
Conselho de Ministros, para discussão de questões respeitantes às Regiões
Autónomas; o reforço da participação dos representantes das Regiões Autónomas
no processo de construção europeia, nomeadamente quanto à pronúncia sobre
questões e decisões que lhes digam respeito e ao seu envolvimento nas
instituições regionais e organismos do Estado na União Europeia e nas
delegações nacionais envolvidas em processos de decisão europeia; e a
possibilidade de os emigrantes votarem nas eleições regionais quando tenham
dupla residência – numa Região Autónoma e no estrangeiro.
Referem
que os dois arquipélagos reconhecem os constrangimentos colocados pela presente
Constituição e estão alinhados na necessidade de possuir mais graus de
liberdade para melhor responder aos legítimos anseios do mais de meio milhão de
portugueses que vivem no Atlântico.
Por
sua vez, os líderes regionais do PS, na oposição, também defendem: a extinção
do cargo do representante da República, reatribuindo os seus poderes e
competências aos órgãos regionais; o reforço das competências das Assembleias
Legislativas Regionais, a necessidade de clarificação das competências das
Regiões Autónomas na gestão do território marítimo; a participação dos
presidentes dos Governos Regionais no Conselho de Ministros; a possibilidade de
eleição de juízes para o TC indicados pelas Assembleias Legislativas; e o
reforço dos poderes das Regiões Autónomas na gestão do mar. E o PS Açores ainda
propõe: a extinção da proibição de partidos regionais; a eliminação da
possibilidade de veto político na promulgação dos diplomas regionais; a
atribuição ao Parlamento dos Açores do poder de eleger o presidente do Governo
Regional; a criação de provedores setoriais regionais; e o estabelecimento do
uso conjunto de símbolos regionais e da República nos respetivos territórios.
Porém,
os líderes regionais do PS entendem que a revisão que inclua estas matérias
teria de esperar a conclusão, nas respetivas Assembleias Legislativas, do
trabalho das comissões eventuais de aprofundamento da autonomia. Por outro
lado, o PS nacional, com assentimento das estruturas das regiões autónomas,
optou por uma revisão atingente apenas aos direitos fundamentais.
***
Por
conseguinte, a revisão é necessária, pois há bastante matéria a rever, mas
precisa de maiores reflexão e tempo para amadurecimento das propostas a
apresentar, de modo que a CRP não olvide as questões fundamentais – tanto em
direitos, liberdades e garantias, como na organização do poder político –, mas
não seja muito extensa e não se sirva de minucioso programa de governo.
2022.12.10 – Louro de Carvalho
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