A 22 de dezembro de 2022, o jornal digital 7Margens dava conta da forte crítica de Monsenhor Luciano Paulo Guerra, antigo reitor do Santuário de Fátima, aos atuais responsáveis pela pastoral fatimita, no que julga ser uma gestão cujo “fito primário mais explícito são os intelectuais”, não deixando espaço à “dedicação aos pobres”.
Ao mesmo tempo, em contraponto, explicita a reação dos criticados, que
devolvem várias delas, aduzindo que resultam de “uma leitura pessoal” que
traduz um “alheamento do que é hoje o Santuário […] que carece de fundamentação
e revela um profundo desconhecimento da atual gestão […] e dos desafios com que
se confronta”.
Efetivamente, Paulo Guerra, que foi reitor durante 35 anos (entre 1973 e 2008),
em entrevista ao semanário Jornal de Leiria,
diz que a sua prioridade eram “os peregrinos em geral”, que “podem
considerar-se pobres, a classificação humana que mais convém aos filhos de
Deus” e que hoje isso não acontece. Assim, sustenta que “prevalece a
intelectualidade e a arte”, ficando “a grande massa de peregrinos, gente
simples pobre e humilde” em plano secundário.
Recorde-se que a Luciano Paulo Guerra, sucedeu, em 2008, o Padre Virgílio
Antunes, a quem sucedeu, em 2011, quando este foi nomeado bispo de Coimbra, o Padre
Carlos Cabecinhas.
Monsenhor Paulo Guerra critica a “esplendorosa celebração do centenário”,
em 2017, vincando: “Houve muita música e outras manifestações artísticas.
Fazem-se ainda hoje exposições maravilhosas, mas que, a meu ver, ficam
demasiado caras e, até por isso, de resultado pastoral menos evidente. O
peregrino que vem a Fátima não precisa senão de um ambiente de oração.”
Segundo o comunicado divulgado pelo Santuário, as asserções do antigo reitor
revelam “uma grande contradição entre aquela que foi a ousadia” de Monsenhor
Luciano Guerra, que, “durante 35 anos, nunca deixou que o Santuário
cristalizasse na sua ação pastoral e procurou que fosse sempre evoluindo, mas
que agora manifesta total oposição a toda a evolução verificada desde 2008”. O
mesmo se dirá da pretensa ‘intelectualização’ da pastoral do Santuário: “Luciano
Guerra foi um homem de cultura, que convidou alguns dos mais reputados artistas
nacionais, e até internacionais, a interpretar a mensagem e a materializá-la em
obras de arte e iniciou os congressos internacionais que reuniram na Cova da
Iria grande parte dos teólogos pensadores da contemporaneidade” – contributo
precioso que o Santuário não esquece, antes valoriza.
Quanto a gastos, a resposta ao antigo reitor recorda que a sua gestão foi
também objeto de muitos reparos, nomeadamente pela construção de estruturas
como a Basílica da Santíssima Trindade. Com efeito, a sua política de
investimentos “passou sobretudo pela construção de grandes espaços
celebrativos” e consome agora “grande parte dos recursos orçamentais”, devido à
necessidade de administrar, manter e conservar.
Na entrevista, o antigo reitor contesta ainda os salários altos no
Santuário: “Um padre é um padre. “Não pode, de maneira nenhuma, comparar-se a
um administrador de uma empresa, mesmo que os leigos que o sacerdote dirige
recebam salário superior.” E, na mesma linha, acrescenta: “Houve trabalhadores
que, praticamente, foram expulsos; a vários outros […] teve a instituição de
pagar altas indemnizações; outros saíram e calaram-se, com receio de
retaliações. Quase de rompante, foram admitidos mais de 130 novos funcionários,
numa casa que tinha 210. Houve uma série de pessoas que foram empurradas para
sair.”
A isto o Santuário responde que se requer uma “gestão profissional,
adaptada às exigências de hoje, sempre comprometida com o bem comum e com a
dimensão social” e que “nunca deixou de cumprir qualquer obrigação, desde logo
com os seus funcionários”. Estão equilibradas as contas e os despedimentos não
o foram, antes se tratou da adaptação do “quadro de pessoal às necessidades
pastorais resultantes do novo contexto, que obrigou a redução muito
significativa da atividade em 2020, que se prolongou no ano de 2021 e que, em
2022, começou a ser retomada.
Referindo-se às “situações ímpares, nunca antes vividas” e ao “ano mais
difícil da história da instituição”, que foi 2020, o comunicado sublinha que,
das 57 desvinculações registadas, 16 foram revogações de contrato por mútuo
acordo, iniciativa do próprio trabalhador; 20 foram cessações de contrato no
seu termo, dos quais nove eram estudantes; e, ainda, houve 17 rescisões por
iniciativa do trabalhador e quatro aposentações por velhice.
Nas suas críticas, o antigo reitor considera que se impõe “um enorme
esforço de purificação do Santuário, no sentido de o fazer voltar-se para o
público de peregrinos, que pode ser considerado de pobres”. E os responsáveis
contrapõem que o Santuário dá apoios sociais, “incrementando e intensificando o
apoio material a quem dele mais precisava e à Igreja em geral”.
***
Lamento
este despique de críticas, num espaço que deve ser de discussão no atinente à
melhoria da organização e funcionamento pluriforme do Santuário, enquanto local
de recolhimento e de peregrinação. Há um chorrilho de acusações mútuas que
desdizem da boa saúde eclesial.
Não
há dúvida de que foi Paulo Guerra, com o beneplácito do bispo Dom Alberto Cosme
do Amaral, que reformulou toda a perspetiva pastoral do Santuário de Fátima: melhoria
do acolhimento aos peregrinos, mormente os doentes e os que peregrinam a pé (serviço
que era prestado desde o início das peregrinações eclesiasticamente enquadradas);
modernização dos espaços (Capelinha das Aparições, com o confortável abrigo dos
peregrinos, Recinto de Oração, as duas Casas de formação e de apoio aos
serviços do Santuário); construção do Centro Pastoral Paulo VI; construção da Igreja
da Santíssima Trindade (hoje, basílica); melhoria organizativa dos atos de
culto e maior coerência nos atos litúrgicos; colocação de novas estátuas
icónicas de Fátima; dotação da Livraria do Santuário de receio de alta
qualidade, sem descurar a piedade popular; criação de vários parques de estacionamento;
empenho em campanhas de solidariedade (o primeiro contributo de grande impacto
foi o apoio material às vítimas do grande incêndio da Curraleira, Lisboa, em
1975); significativo reforço das ações temáticas a vários níveis, como
seminários, congressos, simpósios; disponibilidade, por vezes remunerada de algumas
instalações a entidades externas; e estabelecimento de parcerias. Mais: tentava
auscultar a opinião dos peregrinos sobre o culto e sobre as obras, através da
disponibilidade de cadernos de sugestões.
Tudo
isto a reitoria reconhece como positivo e segue. Porém, não era oportuno atirar
com o facto de a gestão de Monsenhor Guerra ter sido criticada ao tempo, a
menos que houvesse razões para isso, o que não parece. De resto, só não é
criticado quem nada faz. E é óbvio que os equipamentos, num lugar destes, nunca
são excessivos, mas importa cuidar deles, conservá-los e rentabilizá-los.
É
natural que o antigo reitor não tenha acompanhado, de forma ortodoxa, a evolução
da gestão de Fátima e tenha cometido certa injustiça em relação à probidade dos
atuais responsáveis, que não descuram a atenção e o serviço aos peregrinos e continuam,
exemplarmente, a encher a agenda do Santuário de bons momentos artísticos e
culturais, de iniciativas de reflexão e de debate, muitas delas de cunho
espiritual, de escritos históricos e teológicos. E não descuram as obras
necessárias, como o novo altar do Recinto de Oração. De resto, parece
inclemente a crítica surgida após dois anos de pandemia, tão difíceis para todos,
a fortiori, para um centro de
atividades que dispunha de tanta gente e com tão pouco que lhe dar a fazer.
Por
mim, só me pergunto por que motivo tem estado inoperacional o grande auditório
do Centro Pastoral Paulo VI e por que razão foi substituída a missa da vigília
das peregrinações aniversárias por uma Celebração da Palavra. É óbvio que a
comunidade cristã não tem de reunir só para a Eucaristia, mas haverá peregrinos
que vão a Fátima e não ficarão para a Missa Internacional do dia 13. Aí, parece
ter havido uma certa regressão.
Há,
no entanto, uma crítica de Monsenhor Guerra a ter em conta. A gestão
profissional, invocada pela reitoria, não postula que o reitor se assuma como
CEO de empresa. E este deu a entender que o era, em entrevista em que foi
questionado sobre os alegados “despedimentos”. É possível que alguns leigos, enquanto
assessores qualificados, percebam um vencimento fora do comum. Porém, os sacerdotes
devem contentar-se com um salário justo e digno, mas não excessivo. Precisa-se
de uma gestão profissionalizada, mas não vale tudo. O santuário não é uma empresa,
nem um Estado. Vive dos contributos dos peregrinos e dos devotos e dispõe
também duma panóplia de voluntários que trabalham por devoção.
***
Por
fim, são de recordar as missões do santuário, na linha da Carta Apostólica Sanctuarium in Ecclesia: incremento do papel evangelizador do santuário e incentivo da
religiosidade popular;
promoção de uma pastoral orgânica do
Santuário como centro propulsor da nova evangelização; promoção de encontros nacionais e internacionais para favorecer uma obra
comum de renovação da pastoral da piedade popular e da peregrinação rumo a
lugares de devoção; promoção da formação específica dos seus agentes e do
santuário como lugar de piedade e de devoção; zelo para se ofereça aos
peregrinos, nos lugares de passagem, assistência espiritual e eclesial concreta
que permita o maior fruto pessoal destas experiências; e valorização cultural e artística do santuário segundo a via
pulchritudinis como modalidade peculiar da evangelização da Igreja.
2022.12.27 – Louro de Carvalho
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