Ao início da noite de 27 de abril de 2021, um Boeing 737 de
carga ficou a 300 metros na horizontal e a 150 metros na vertical da viatura
aeroportuária Follow Me, quando
descolava do aeroporto do Porto (Aeroporto Francisco Sá Carneiro) rumo à
Bélgica.
Cerca de um ano depois, na manhã de 13 de maio de 2022, o aeroporto
de Ponta Delgada (Aeroporto João Paulo II) foi cenário de um episódio
semelhante. Um Airbus 321 da TAP foi autorizado a aterrar quando um Follow Me estava na linha direita da
pista. Os pilotos foram obrigados a “borregar”. Avião e viatura ficaram
separados por 280 metros.
São
duas falhas graves no controlo aéreo de Portugal, que por pouco não resultaram
em acidentes, no espaço de pouco mais de um ano. Parafraseando um engenheiro de
construção que me dizia, em tempos, que o betão armado é o melhor amigo do
homem, dados os erros que se cometem com este material, admito que o acaso é o
melhor salva-vidas, vistas as negligências que impendem sobre a vida das
pessoas, por ação, por omissão, por negligência, por falta de aplicação.
Em ambos os incidentes só havia um controlador na torre de
controlo, quando, segundo a escala e as regras de segurança, deveriam estar ao
serviço mais quatro elementos no Porto e outros dois em Ponta Delgada. Os
operacionais efetivamente em serviço, também supervisores, assinavam as presenças
fictícias no local de trabalho dos ausentes, que eram, depois, remuneradas como
se tivessem sido presenças reais.
Este comportamento é inadmissível em qualquer caso, mas por
maioria de razão num serviço em que está em causa a segurança vital das pessoas
que depositam a sua confiança em quem tem a missão de zelar pelas suas vidas,
bem como de velar pela integridade do património fixo e do património
circulante. É uma questão de honestidade e de competência. E estes trabalhadores
não se podem queixar do seu estatuto remuneratório em comparação com outros,
pois um controlador recebe, em média, 15 mil euros líquidos mensais.
Os dois factos relatados, constantes do relatório do Gabinete
de Prevenção e Investigação de Acidentes com Aeronaves e Acidentes Ferroviários
(GPIAAF), fazem “despenhar” a segurança do controlo de tráfego aéreo em
Portugal. Mais de 100 páginas, ainda sob sigilo, mas cujo conteúdo essencial
foi revelado a 16 de dezembro, põem em causa o serviço assegurado pela Navegação
Aérea (NAV) Portugal, cuja missão é o controlo do tráfego aéreo, os
equipamentos garantidos pela ANA Portugal (integrada na Vinci), gestora dos
aeroportos nacionais, e a própria supervisão da Autoridade Nacional da Aviação
Civil (ANAC). “Em cada situação, o acidente apenas foi evitado por acasos
excecionais” – conclui o relatório.
Nos termos do relatório, o controlador no Porto “estava na
posição há aproximadamente quatro horas sem terem sido observados os tempos de
descanso obrigatórios; o quarto membro da equipa, embora na escala de serviço,
foi dispensado pelo controlador (supervisor) sob a sua prerrogativa e a
premissa de que, ao residir nas proximidades, poderia, se necessário, ser
chamado a qualquer momento”. Em Ponta Delgada, a controladora, sozinha por ter
dispensado um elemento e por o outro estar no gozo do seu período de descanso,
estava ocupada a atualizar o ATIS (um sistema informático de informação), a
analisar reservas de espaço aéreo, etc. e cada vez mais preocupada com duas
aeronaves com trajetórias de aproximação convergentes, pelo que se esqueceu de
sinalizar que a pista estava ocupada pela equipa de manutenção e pelo seu
veículo.
Os supervisores gerem a composição das suas equipas,
independentemente das dotações estabelecidas para o período para o qual foram
escalados. Tal prática era sistémica na torre do Porto e, pelo menos, em Ponta
Delgada, sendo feito um arranjo de conveniência para todos os envolvidos. Os
registos de posição foram manipulados num sistema configurado para permitir tal
prática. E o texto do relatório prossegue: “Tais registos mostraram um
cumprimento impecável dos períodos máximos de serviço, dos intervalos, bem como
da assiduidade e pontualidade, que não correspondiam à realidade. Tais
informações deturpadas foram alimentadas no banco de dados central que gere as
horas de trabalho realizadas pelos controladores e pressupõe a anuência dos
controladores e da própria gestão das torres do Porto e Ponta Delgada, bem como
a sua aceitação pela organização, anotada e aprovada nos seus procedimentos
internos.”
Também são criticados os próprios “manuais” da NAV. “A
maioria dos conteúdos está na versão original publicada em 2006, com
referências a regulamentações e organizações obsoletas. Políticas, processos e
procedimentos potencialmente desatualizados que foram estabelecidos há mais de
15 anos, levando a um ciclo cruzado de regulamentos e procedimentos, por vezes
com informações contraditórias.” Nestes termos, o texto do relatório vinca: “Os
manuais de operação para o Porto, Lisboa e Faro são todos diferentes entre si
no que diz respeito ao tipo de informação, nível de detalhe e disposição dos
documentos.” E tais diferenças não são conformes com os aspetos específicos de
cada aeródromo, mas com as instruções organizacionais e operacionais.
Quanto às inspeções às pistas, desrespeitam-se “as
recomendações para a realização no sentido contrário da pista em uso, o uso do
inglês aeronáutico, de uma frequência comum para comunicações associadas às
operações de pista e o uso permanente de stop
bars como meio adicional de proteção da pista”. Enfim, “nenhuma destas
medidas estava ativa à data do evento”.
Segundo os investigadores, “o controlo de tráfego aéreo é uma
atividade crítica de segurança, com paralelo na operação de uma aeronave”.
Porém, é descurada a concentração necessária. No Porto, o controlador não
segregou o telemóvel e havia uma TV na torre para ajudar a passar o tempo.
Aliás, são comuns, nos vários aeroportos, os elementos de distração na sala de
controlo, que vão desde os telemóveis pessoais e TV a micro-ondas e máquina de
café, como num espaço de convívio de qualquer associação ou clube.
Os peritos consideram que a NAV não respeita a política de
cultura justa para incentivar os reportes obrigatórios e voluntários dos
incidentes. Não imputam culpas ou responsabilidades às denúncias”, mas
penalizam os dois controladores. Aliás, no caso do Porto, o supervisor deturpou
o incidente para o minimizar.
Até ao final da semana que termina em 24 de dezembro, o
relatório está na fase de recolha dos comentários das partes. Fonte do GPIAAF
referiu que o documento não é definitivo e que será o relatório final que fará
fé, o qual será publicado antes do fim do ano.
***
O
ministro das Infraestruturas e Habitação, Pedro Nuno Santos – em declarações aos
jornalistas, em Sines, no distrito de Setúbal, à margem da cerimónia da
assinatura do memorando de entendimento entre os parceiros que integram o Projeto
H2Sines.RDAM, de desenvolvimento de um corredor logístico de Hidrogénio Verde
que ligará, por via marítima, os portos de Sines e de Roterdão – considerou
“graves os incidentes” identificados no relatório, vincando que as falhas estão
a ser corrigidas. Disse o governante: “Claro que os incidentes que
aconteceram são graves e sobre isso não há a menor duvida. A NAV está a tomar
ações para as corrigir e garantir que no futuro não continuamos a ter esse tipo
de falhas.” E acrescentou: “Essa é uma preocupação muito grande da NAV
e que está identificada no relatório, mas obviamente a própria NAV, quando os
incidentes ocorreram, começou logo a adotar ações para corrigir e garantir que
isso não aconteça.”
Segundo
o ministro, além do relatório do GPIAAF, que “está ainda sob consulta de várias
entidades” e cujas conclusões serão conhecidas “nas próximas semanas”, a NAV
adotou um conjunto de ações, entre elas disciplinares.
“Além do relatório, que faz este apuramento
do que aconteceu, a própria NAV já foi adotando, desde os incidentes, um
conjunto de ações, desde logo disciplinares, com a demissão do chefe da Torre,
com um processo disciplinar ao supervisor, mas também com alteração de
procedimentos e contratação de tecnologia que vai permitir um melhor controlo
da assiduidade dos controladores de tráfego aéreo”, sublinhou Pedro Nuno
Santos. No
entanto, ressalvou que, para o Governo, “matéria de segurança é sagrada” e que
o relatório “é muito importante” para “avaliar exatamente o que aconteceu” e para
ver “se os procedimentos, que entretanto foram dotados pela NAV, são
suficientes ou não”. No entanto, frisou que é preciso deixar uma palavra de
confiança, porque temos uma empresa de gestão de controlo de tráfego aéreo
altamente respeitada e conceituada na Europa e no mundo, mas que não
desvalorizamos, antes pelo contrário, que “os incidentes têm de ter
consequência na forma como a NAV trabalha”.
O
Partido Social Democrata (PSD) quer chamar ao Parlamento responsáveis da (ANAC),
da (NAV e do GPIAAF pelas falhas no controlo de tráfego. Com efeito, segundo o
requerimento do PSD, a informação veiculada pela comunicação social aponta
graves falhas no controlo de tráfego aéreo, que, por mais de uma ocasião e no
período de um ano apenas, “poderão ter posto em risco a segurança geral em dois
aeroportos, nomeadamente a integridade de passageiros e trabalhadores dos
aeroportos em questão”.
O
Expresso, de 16 de dezembro, sintetiza
as ditas falhas de segurança assim: serviço de tráfego aéreo com posição de
torre e aproximação unificadas prestado por um único controlador, sem supervisão,
em sessão contínua e prolongada; sistema auxiliar de memória arcaico, ineficaz
e totalmente dependente de ação humana para prevenir a utilização simultânea de
pista por veículos e por aeronaves; ausência de procedimentos de stop bars 24
horas ou outra iluminação equivalente em todas as posições de espera de pista;
inexistência de um ambiente “estéril”, pois há dispositivos móveis,
televisores, micro-ondas, frigoríficos ou máquinas de café nas salas de
controlo; deficiente cultura organizacional na NAV, resultando em registos de presenças
no local de trabalho não correspondentes à realidade; método não-padronizado de
realizar as inspeções de pista; baixa fiabilidade dos radio scanners instalados pela ANA nas viaturas Follow Me no Porto, de operação complexa
e sem ter sido dada formação aos operadores; e deficiências na supervisão do
regulador, a ANAC.
Esperemos
que, dada a gravidade dos incidentes, a maioria parlamentar não impeça a
audição requerida, visto que à população e, em especial, aos reais e potenciais
passageiros dos transportes aéreos assiste o direito de saber o que se está a
passar da parte dos responsáveis pela segurança aérea, que devem prestar contas
da sua gestão aos nossos legítimos representantes.
2022.12.19 – Louro de Carvalho
Sem comentários:
Enviar um comentário