A 17 de
dezembro, o diário espanhol ABC publicou, por antecipação, dados de uma
entrevista concedida pelo Papa Francisco e que foi publicada, na íntegra, no
dia 18, sob a assinatura de Julian Quiros, diretor do periódico, e de Javier
Martinez Brocal, vaticanista.
Entretanto,
no dia da publicação integral da entrevista, a comunicação social, mesmo a
vaticana, fixa-se na carta de eventual renúncia ao Pontificado entregue ao
secretário de Estado, logo em 2013, ano da sua eleição para Bispo de Roma,
válida para o caso de, por indicação médica, Francisco ficar impedido de
exercer o Sumo Pontificado.
Sem
desmerecer da notícia e da atitude papal de Francisco, entendo que a
entrevista, pela sua abrangência de assuntos, merece uma atenção mais cuidada.
Desde logo,
importa atender ao que foi publicado por antecipação.
***
À questão como está o joelho do Papa, a resposta foi que está caminhando
e que a decisão certa foi a de não operar. Entre risos, anuiu que já está na
idade em que alguém pode dizer a outra pessoa que “está com bom aspeto”. E a
quem pensava que a cadeira de rodas imporia diminuição da agenda (que, afinal,
triplicou), retorquiu com a sua proverbial maturidade: “Governa-se com a
cabeça, não com o joelho.” É o que todos os governantes deviam saber e fazer –
digo eu.
Observa que, se a sua eleição papal, a 13 de março de 2013 (fará dez anos
em 2023), apanhou todos de surpresa, também o surpreendeu a ele, que “tinha
reservado meu bilhete de volta a Buenos Aires a tempo para o Domingo de Ramos”.
Não sabe se aprendeu ou não a ser Papa e diz que a história nos colhe
onde nós estamos.
O que acha mais difícil em ser Papa “é não poder andar nas ruas, não poder
sair”, já que, em Buenos Aires, era muito livre, usava o transporte público,
pois “gostava de ver como as pessoas se moviam”. E, admitindo que “ainda vê muita
gente”, sustenta que o contacto
com as pessoas o recarrega, pelo que não cancelou “nem mesmo uma audiência de
quarta-feira”. Porém, insiste em dizer que sente falta de sair, “porque agora o
contacto é funcional”: vêm “para ver o Papa”, na sua função. Quando saía pela
rua, em Buenos Aires, nem sabiam quem era o cardeal.
Concorda que, em Santa Marta, vê muitas pessoas, mas lamenta que muitos
queiram tirar proveito disso e “fingir ser amigos do Papa para seus próprios
interesses”. E, a este respeito, contou que, tendo vindo à Missa, há uns anos, um candidato argentino,
tiraram aos dois uma fotografia fora da sacristia. E o Papa solicitou que não a
usassem “politicamente”. Porém, apesar de lhe terem garantido toda a discrição,
uma semana mais tarde, Buenos Aires foi atarantada com aquela foto, “adulterada
para fazer parecer que se tratava de uma audiência pessoal”. E conclui: “Sim,
às vezes, eles usam-me. Mas nós usamos Deus muito mais, então eu fico quieto e vou
em frente.”
À dificuldade de ser calibrada toda a palavra que o Papa profere, reage:
“Às vezes
fazem-no com uma hermenêutica prévia ao que eu disse, para me levarem para onde
eles querem que eu vá. ‘O Papa disse isto’. Sim, mas disse-o em determinado
contexto. Se se retira do contexto, significa outra coisa.” E à
verificação de que nenhum Papa jamais fez conferências de imprensa ou deu entrevistas,
falando tão livremente, retorquiu:
“Os tempos mudam.”
Por fim, o presente que pediria para este Natal era a “paz no mundo”.
Lamenta as guerras todas que há no mundo. E são tantas. E adverte: “A da
Ucrânia toca-nos mais de perto, mas pensemos também em Mianmar, no Iémen, na Síria,
onde se combate há treze anos...”
***
Em relação
ao corpo da entrevista integral, é de destacar a revelação feita pelo próprio de
que, em 2013, no início do Pontificado, há quase 10 anos, entregou ao cardeal
Tarcisio Bertone, então secretário de Estado, uma carta em que declara renunciar,
no caso de impedimentos graves e permanentes ligados à saúde (ou seja, “em caso
de impedimento por razões médicas”) que o impossibilitassem de exercer o seu
papel de Bispo de Roma e pastor da Igreja universal.
Nesta
revelação, importa atender à atitude de cuidado, de simplicidade e de liberdade
pessoal perante a responsabilidade de governar a Igreja universal com zelo e competência.
Não
obstante, na conversa com Julián Quirós e Javier Martínez-Brocal, o Papa aborda
numerosos tópicos sobre os acontecimentos atuais na Igreja e no mundo, inclusive
a guerra na Ucrânia, de que o Pontífice diz não ver “um fim a curto prazo,
porque é uma guerra mundial”, os casos de abusos sexuais de menores, o papel
das mulheres na Cúria Romana, Lula da Silva e a questão da Catalunha, a
renúncia de Bento XVI em 2013 e a sua própria eventual renúncia.
Sobre a
carta de renúncia, Francisco revela: “Eu já assinei a minha renúncia. Foi
quando Tarcisio Bertone era secretário de Estado. Assinei a renúncia e disse-lhe:
‘em caso de impedimento médico ou o que quer que seja, aqui está a minha
renúncia. O senhor tem-a.’ Não sei a quem Bertone a deu, mas eu dei-lha quando
ele era secretário de Estado.”
E à pergunta
se queria que isso seja conhecido, respondeu que era por isso que lho estava a
dizer. E lembrou que Paulo VI também deixou a sua demissão por escrito, no caso
de um impedimento, e que provavelmente Pio XII também o terá feito. Aliás,
sabe-se que Pio XII entregou a carta de renúncia para o caso em que as forças
hitlerianas invadissem o Vaticano e aprisionassem o Pontífice. No dizer de Pio
XII, “só levariam o cardeal Pacelli”.
Diz o Papa
que é a primeira vez que faz esta revelação, mas que não é lícito alguém exigir
a carta a Bertone, pois Francisco entregou-lha na qualidade de secretário de
Estado, pelo que ele a terá passado ao seu sucessor na Secretaria de Estado.
Na entrevista
não falta a reflexão sobre o conflito na Ucrânia, contra o qual o Papa inúmeras
vezes se pronunciou. E, agora, afirma sem meios-termos: “O que está a acontecer
na Ucrânia é aterrorizante. Há uma enorme crueldade. É muito sério...”. Não se
vê “um fim a curto prazo”, pois, “trata-se de uma guerra mundial”, visto que “já
há várias mãos envolvidas na guerra”. E pensa o Bispo de Roma que “uma guerra é
travada quando um império começa a enfraquecer-se e quando há armas para usar,
vender e testar”. Há, pois, “muitos interesses envolvidos”. O Pontífice faz o
que pode, mas “não o ouvem”. E confirma que recebe e escuta a todos: “Agora
Volodymir Zelensky enviou-me um dos seus conselheiros religiosos pela terceira
vez. Estou em contacto, recebo, ajudo...”
O Papa move-se
em sincronia com o trabalho diplomático da Santa Sé. E questionado porque é o
Vaticano tão cauteloso a falar contra regimes totalitários como o de Ortega, na
Nicarágua, ou o de Maduro, na Venezuela, responde: “A Santa Sé sempre procura
salvar os povos. A sua arma é o diálogo e a diplomacia. A Santa Sé nunca sai
por conta própria. É expulsa. Ela sempre procura salvar as relações
diplomáticas e salvar o que pode ser salvo com paciência e diálogo.”
Não há,
porém, qualquer diplomacia, da parte do Papa, para estigmatizar casos de abusos
do clero: “é muito doloroso”, diz ele em referência aos encontros com as
vítimas que marcaram o seu pontificado. São pessoas destruídas pelos que
deveriam tê-las ajudado a amadurecer e a crescer. Mesmo que fosse apenas um
caso… “É monstruoso que a pessoa que deveria levar a outra a Deus a destrua ao
longo do caminho. E nenhuma negociação é possível sobre isso” – sustenta.
Quanto a um
possível papel de ápice para uma mulher na Cúria Romana, Francisco diz ter em
mente uma para um Dicastério que ficará vago dentro de dois anos. Com efeito,
não há óbice a que uma mulher lidere um Dicastério onde um leigo pode ser
prefeito. Só um Dicastério de natureza sacramental é que tem de ser presidido
por um sacerdote ou por um bispo.
No atinente
a futuros conclaves, Francisco amortece as polémicas de que os trabalhos dos
futuros conclaves podem ser dificultados pela falta de conhecimento entre os cardeais
que ele criou, que vêm de lugares diferentes e distantes. Poderia haver
problemas “do ponto de vista humano”, mas “é o Espírito Santo que trabalha no
Conclave”. E o Papa, sobre a proposta de um cardeal alemão, nos encontros de
agosto sobre a Praedicate Evangelium, de que na eleição do novo
Papa só participassem os cardeais que vivem em Roma, pergunta: “É esta a universalidade
da Igreja?”
Do seu
predecessor Bento XVI, diz que é “um santo” e “um homem de alta vida
espiritual”. Visita-o com frequência e sente-se sempre “edificado” pelo seu
olhar transparente. Tem um bom sentido de humor, está lúcido, muito vivo, fala
suavemente, mas segue a conversa.
E, por outro
lado, Francisco diz não ter intenção de definir o status jurídico do Papa emérito: “Tenho a sensação de que o
Espírito Santo não tem interesse em que eu me ocupe dessas coisas.”
Sobre a Igreja
na Alemanha, cujo processo sinodal despertou e ainda desperta várias reações,
inclusive negativas, Francisco recorda a carta que escreveu em junho de 2019: “Eu
escrevi-a sozinho. Levei um mês. Era uma carta como que para dizer: ‘Irmãos,
reflitam sobre isto’.”
Bergoglio
refere que está nos seus planos uma viagem a Marselha, para o Encontro
Mediterrâneo, especificando que não é uma viagem à França e que a prioridade das
suas viagens apostólicas é visitar os países menores da Europa. Interpelado
sobre a questão da Catalunha, disse que “cada país deve encontrar o seu próprio
caminho histórico para resolver estes problemas”, pois “não há uma solução
única”. E cita os casos da Macedónia do Norte ou do Alto Adige, na Itália, com
o seu próprio status. Quanto ao papel
que a Igreja deve manter neste assunto, enfatiza: “O que a Igreja não pode é
fazer propaganda para um lado ou para o outro, mas acompanhar o povo, para que
ele possa encontrar uma solução definitiva.” E, na mesma linha, entende que um
sacerdote não se deve intrometer na política, já que “o padre é um pastor”. Por
isso, “deve ajudar as pessoas a fazerem boas escolhas: acompanhá-las”. Se um
padre quer fazer política, deixe o sacerdócio e torne-se um político.
À pergunta
sobre a releitura negativa do descobrimento da América, o Papa convida a
interpretar um acontecimento histórico com a hermenêutica do tempo e não do
momento atual. As pessoas foram mortas, houve exploração, mas os índios também
se mataram uns aos outros. A atmosfera de guerra não foi exportada pelos
espanhóis. E a conquista pertencia a todos.
Francisco
distingue entre colonização e conquista. Não diz que a Espanha simplesmente
“conquistou”: “É discutível, quanto quiserem, mas colonizou.”
Outro caso
que chamou a atenção do Papa é o do recém-eleito presidente do Brasil, Inácio
Lula. É paradigmático, porque o julgamento do líder político (condenado por
corrupção passiva, durante 580 dias na prisão, impedido de concorrer nas
eleições presidenciais de 2018, até 2021, quando o Supremo Tribunal anulou todas
as sentenças) começou com fake news.
Estas “criaram uma atmosfera que favoreceu o julgamento”. O problema das
notícias falsas de líderes políticos e sociais é sério. Podem destruir uma
pessoa. O caso de Lula, segundo o Papa, não teve “um julgamento à altura”. É
preciso cuidado com quem cria a atmosfera para um julgamento. Fazem-no através
dos media para influenciar os que
devem julgar e decidir. Um julgamento deve ser o mais limpo possível, com
tribunais que não tenham outro interesse que manter limpa a justiça.
Por fim, uma
menção ao Motu Proprio Ad Charisma tuendum, de julho, sobre o Opus Dei. “Alguns”, comenta o Papa,
“disseram: ‘Finalmente o Papa bateu no Opus
Dei...!’ Eu não bati em ninguém.” É só uma recolocação. Não é correto
exagerar, nem os fazer de vítimas, nem os culpar. Francisco diz-se amigo do Opus Dei, que trabalha bem na Igreja e o
bem que faz “é muito grande”.
***
Uma
entrevista que vale pelo seu tom multicolor.
2022.12.18 – Louro de Carvalho
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