Volodymyr Zelensky mostra-se convicto de que a Ucrânia ganhará a guerra,
apesar dos cenários de morte e de destruição que o país apresenta. E Vladimir
Putin contraria as asserções de quem aponta o desgaste político do Kremlin, a
fragilidade do exército russo, a impreparação dos seus militares ou a condição
obsoleta do seu equipamento bélico.
Não bastando a resistência ucraniana de dez penosos meses, surpreendente
para Moscovo, o presidente da Ucrânia foi a Washington, na sua primeira viagem
ao estrangeiro desde 24 de fevereiro, agradecer o apoio financeiro e militar
dos Estados Unidos da América (EUA) e receber as garantias diretas de Joe Biden
do reforço na ajuda logística e bélica, nomeadamente pelo envio dos Patriot (sistema de mísseis projetado para
detetar, almejar e atingir um míssil que pode ter não mais que seis
metros de comprimento e voa até cinco vezes a velocidade do som), símbolo da vontade norte-americana de não desmobilizar
na causa de Kiev.
A isto Vladimir Putin, para quem a visita de Zelensky aos EUA mostra despreocupação
com a Rússia, respondeu com a ameaça do míssil balístico intercontinental com
capacidade nuclear.
Apelidado pela Organização do Tratado do Atlântico Norte (NATO) de Satan II, o RS-28 Sarmat foi projetado para transportar até 15 ogivas nucleares,
mais cinco do que o R-36M [Satan] da
era soviética. É o mais rápido e enganador dos mísseis balísticos
intercontinentais. Muito pesado e movido a combustível liquefeito, tem força para
lançar várias ogivas dispostas no veículo. Um míssil destes, que atingirá até
15 alvos próximos, está equipado para transportar munições hipersónicas na
ogiva e servir de plataforma a lançamento de mísseis de cruzeiro.
Harry Halem, analista militar que reside em Londres, não vê “prova real de
que a Rússia esteja perto de produzir o Sarmat
para quaisquer propósitos”. Aliás, a “única informação de que dispomos é o
alegado teste de abril de 2022”. Porém, Dmitry Rogozin, ex-líder da Roscosmos
(empresa estatal que supervisiona a construção do míssil), garantiu tratar-se
de uma superarma, pois, testado em abril, atingiu alvos simulados a mais de
4800 km. Putin reagiu com entusiasmo, sustentando que o Sarmat supera todas as formas de defesa antimísseis e fará qualquer
inimigo da Rússia pensar duas vezes. Há cerca de um mês, um centro de produção
de mísseis russo (Makeyev) anunciou a
sua produção em série. E o Kremlin diz que o projeto, com modificações, será um
desafio para as defesas antiaéreas dos EUA, em caso de guerra nuclear.
“A Rússia é quase certamente incapaz de produzir Sarmats em larga escala, neste momento, até porque o país produz
cerca de seis SRBMs Iskander (sistema
móvel de mísseis balísticos de curto alcance) por mês”, diz Harry Halem. O Iskander tem só uma fração do tamanho do
Sarmat (3800 kg, em comparação com
mais de 200 toneladas). E Harry Halem duvida de que o Avangard, o veículo hipersónico que o Sarmat deveria carregar, esteja a ser fabricado de forma maciça.
Mas, se tal se confirmar, o Sarmat
será irrelevante para o equilíbrio militar na Ucrânia, pois é um míssil
balístico intercontinental projetado para lançar ogivas nucleares por dezenas
de milhares de quilómetros, ou seja, para ataque nuclear de longo alcance, sobretudo
contra os EUA, não para a Ucrânia. Por isso, Shaan Shaikh, diretor do Missile
Defense Project do Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais [Center for Strategic & International
Studies], em Washington, diz que o possível alvo se encontra longe da
fronteira ucraniana.
Mick Mulroy, ex-subsecretário adjunto da Defesa norte-americano,
ex-funcionário da CIA e fuzileiro naval dos EUA, defende que a frustração russa
precipitou a ameaça, e o anúncio de Biden de envio do sistema antimísseis Patriot para a Ucrânia enraiveceu mais o
Kremlin. “Ficou claro que a Rússia sabe que não pode vencer uma luta
convencional contra os militares ucranianos. Por isso, voltou-se para o ataque
direto a civis e à infraestrutura civil, como uma forma de terror. Acredito que
foi por isso que nos sentimos compelidos a fornecer esses sistemas, e a ameaça
russa faz parte de um esforço para conter os nossos movimentos” – sustentou.
Segundo Mark Cancian, ex-conselheiro do Departamento de Defesa
norte-americano, os novos mísseis balísticos intercontinentais substituem
mísseis russos mais antigos. O míssil foi anunciado em 2014, para arrancar em
2020. Problemas com os motores atrasaram os testes, segundo a agência de
notícias russa Interfax. E o também
analista do Center for Strategic & International Studies diz que o anúncio
de Sergei Shoigu, ministro da Defesa russo, de investimento no armamento se
compatibiliza com o programa de modernização nuclear em curso.
A ameaça não se dirige à Ucrânia, mas o “uso do Sarmat ou de mísseis balísticos intercontinentais russos
semelhantes mudaria drasticamente a guerra”, admite Cedric Leighton, analista
militar da CNN e antigo responsável
dos serviços secretos da Força Aérea norte-americana. “O seu emprego
representaria uma escalada sem paralelo e certamente provocaria uma resposta
ocidental”, vincou.
Por todos os motivos, diz James A. Lewis, vice-presidente do Programa de
Tecnologia e Políticas Públicas do Centro de Estudos Estratégicos e
Internacionais, em Washington, nada inverterá a tendência da guerra: “A Rússia
perdeu, e Putin não pode admitir isso.” Será mesmo assim?
***
Os Patriot reabilitarão a
capacidade ucraniana de reagir contra mísseis balísticos e aeronaves russas em
grandes altitudes, mas uma bateria não virará o jogo. O significado simbólico –
de que os EUA estão dispostos a enviar um sistema de defesa antiaérea de primeira
linha para a Ucrânia – é mais importante do que a capacidade militar do
sistema. E a Ucrânia dá um sinal de que construirá um Exército mais próximo dos
ocidentais, esquecendo de vez o passado soviético.
Até ao inverno e dez meses após o início da guerra, Joe Biden não tinha equacionado
enviar a Zelensky o sistema de defesa antiaérea mais capaz dos EUA. Os Patriot (da expressão Phased Array Tracking to Intercept On Target)
são padrão de eficiência no abate de mísseis de cruzeiro, mísseis balísticos de
curto alcance e aeronaves num teto mais alto do que o dos restantes sistemas de
defesa antiaérea. Capazes de detetar e de apontar a seis alvos com grande
precisão e altamente móveis, assegurando a capacidade de autossobrevivência,
estes sistemas serão enviados para a Ucrânia, quando a necessidade começa a falar
mais alto aos ouvidos de Joe Biden. E os EUA enviam-nos agora, quando os
ataques russos às infraestruturas causam grande sofrimento ao povo ucraniano – e
continuarão a fazê-lo – e porque os EUA e a NATO carecem de outros sistemas,
por a maior parte da defesa antiaérea terrestre ter sido desativada no fim da
Guerra Fria.
A campanha beligerante da Rússia colocou numa situação operacional difícil a
Ucrânia, que tem poucos sistemas antiaéreos e poucas aeronaves de asa fixa para
obter superioridade aérea sobre a linha da frente numa ofensiva. O que a
campanha de ataques estratégicos da Rússia às críticas infraestruturas da
Ucrânia conseguiu foi dividir as defesas antiaéreas ucranianas entre a linha da
frente e áreas civis e de centrais elétricas. Haverá uma bateria juntamente com
dois NASAMS (sistema de defesa antiaérea baseado em terra de curto a médio
alcance). E os Patriots, se usados
de forma eficaz, podem enfraquecer a campanha de ataque estratégico da
Rússia.
Nos últimos dez meses, a Ucrânia desmitificou a superioridade aérea das
forças russas, usando sistemas de defesa antiaérea e estratificando os efeitos
de altitudes mais altas para mais baixas. O principal sistema usado para
impedir que aeronaves russas voassem em altitudes mais altas é o míssil
terra-ar S-300, da era soviética. E os países ocidentais tentaram obter mais
lançadores e mísseis dos antigos países do Pacto de Varsóvia (aliança militar do
bloco soviético, designada por Tratado de Amizade, Cooperação e Assistência Mútua).
Kelly Grieco, investigadora na área de Defesa e Segurança do ‘think tank’
norte-americano Atlantic Council diz tratar-se de uma possibilidade alarmante,
porque negar superioridade aérea à Rússia “foi fundamental para o sucesso geral
da Ucrânia nesta guerra”. Por isso, enviar o Patriot é o passo que se segue para garantir que a Ucrânia mantém
defesas antiaéreas robustas.
O sistema antimísseis de primeira linha, projetado para operar a médio
alcance, foi desenvolvido pela empresa norte-americana Raytheon. Israel, Alemanha,
Espanha, Japão ou Taiwan já recorreram ao Patriot,
cuja parte mais importante é o simbolismo. O Patriot é uma plataforma de armas icónica. Fez parte das
plataformas de armas “Big Five”, que transformaram o Exército dos EUA na década
de 1980, e que se estreou com sucesso na Primeira Guerra do Golfo.
Os EUA usaram baterias Patriot em
vários conflitos. Em janeiro, as tropas americanas na Base Aérea de Dhafra, nos
Emirados Árabes Unidos, dispararam mísseis Patriot
para intercetar mísseis direcionados à base. O alcance, precisão e velocidade do
sistema tornam-no excelente sistema de defesa, e os seus sensores e poder de
computação são inigualáveis.
A garantia é dada por James A. Lewis, vice-presidente do Programa de
Tecnologia e Políticas Públicas do Center
for Strategic & International Studies. Porém, o Patriot não vira o jogo, pois não é capaz de criar um escudo
impenetrável em torno da cidade de Kiev, muito menos de toda a Ucrânia. Para
colocar isto em perspetiva, os EUA têm duas baterias Patriot a proteger o aeroporto polaco, que é o principal centro
logístico para abastecimentos ocidentais à Ucrânia. Os sistemas de defesa aérea
ocidentais não existem em número suficiente para oferecer o tipo de proteção
que a Ucrânia procura, contra ataques aéreos e de mísseis russos. O Patriot é um dos sistemas de defesa
antiaérea mais avançados do mundo, mas isso torna-o mais complexo de operar.
Segundo os analistas, serão necessários entre 80 a 90 soldados para a tarefa, e
o treino padrão requerido para trabalhar com os lançadores demora vários meses.
O outro grande desafio logístico é a falta de mísseis de reposição. O sistema
geralmente vem fornecido com oito mísseis, mas os ucranianos podem esgotar
rapidamente essa quantidade.
Mark Cancian tem expectativas realistas quanto ao impacto dos Patriot na guerra. As dificuldades
logísticas são um fator a não ignorar. O sistema só defende uma cidade. Todavia,
Harry Halem contrapõe que os EUA e a NATO podem sustentar os Patriot com maior eficácia do que os
equipamentos soviéticos antigos. A pegada logística dos PAC-3 Patriot não é proibitiva. Não se sabe para onde os EUA enviam
PAC-2s ou PAC-3s, que serão eficazes.
O anúncio dos Patriot mostra a
estreita relação entre os EUA e a Ucrânia e reafirma ao povo ucraniano que
ambos os governos fazem os possíveis para protegê-lo de ataques aéreos, mas nenhum
sistema de armas, exceto de armas nucleares, será o verdadeiro divisor de águas
na guerra. Nada surgirá, para a Ucrânia, nem para a Rússia, como bala de prata.
Segundo Kelly Grieco, há que ver além das capacidades do equipamento. Pensamos
que a tecnologia virará o jogo, mas nenhuma tecnologia ou sistema de armas muda
o rumo de uma guerra, exceto as armas atómicas. O fraco desempenho da Rússia não
é reparável por uma bala tecnológica, que não é solução para comandantes
fracos, treino insuficiente, logística problemática e baixa motivação.
Enfim, o Satan II poderá ser um
perigo, caso os beligerantes enveredem pela guerra nuclear. Só os mísseis Patriot e os que se lhe oponham, como os
mísseis Scud (mísseis balísticos
móveis, de origem soviética, com curto alcance), não mudam o curso da guerra.
2022.12.28 – Louro de Carvalho
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