O Professor Jorge
Miranda, um dos mais distintos constitucionalistas portugueses, em entrevista ao
Jornal de Notícias e à TSF, a 27 de novembro, falou da revisão constitucional
em curso.
O denominado
“pai da
Constituição da República Portuguesa” (não quer ser assim denominado e penso
que a paternidade da lei fundamental é da Assembleia Constituinte) é favorável
à alteração cirúrgica do texto constitucional apenas nas matérias da emergência
sanitária e dos metadados, mas julga errado e inoportuno a Assembleia da República (AR) e os partidos distraírem o país com
uma revisão que desvia os decisores de temas urgentes, como a crise económica,
a inflação, a situação nos hospitais,
a situação das escolas e a situação internacional com a guerra.
Crítico das propostas de aumento do mandato e dos
poderes do chefe de Estado, considera haver um excesso de itens que os partidos
querem inscrever, fazendo da Constituição da República Portuguesa (CRP) um “programa
de Governo”. Com efeito, embora vários constitucionalistas considerem que a revisão
deve ser cirúrgica, estão em agenda dezenas de propostas dos partidos, havendo margem
política para a maior revisão dos últimos 20 anos. Basta que Partido Socialista
(PS) e o Partido Social Democrata (PSD) se entendam nessas matérias.
Jorge Miranda lembra que, ao mexer em três ou quatro artigos,
acaba por se atingir o teor de muitos mais, mostrando a experiência que uma
revisão constitucional se prolonga por muito tempo. Por outro lado, esta foi
desencadeada por um partido de extrema-direita, mostrando-o nas suas propostas
de alteração.
Por temer que uma revisão mais do que cirúrgica
seja feita à pressa, o constitucionalista, entende que esta deveria cingir-se à questão sanitária e dos
confinamentos, com “regras jurídicas precisas para evitar abusos no
confinamento por razões de saúde”, e à questão dos metadados e matérias afins,
com regras relativas à digitalização.
Confrontado com a ideia do PS de haver
confinamentos fora do quadro de emergência, não a julga “inconstitucional”,
como defendem outros constitucionalistas, porque os projetos relativos a emergência sanitária “garantem
sempre uma intervenção judicial”, não havendo “nenhuma violação dos limites
materiais da Constituição”.
Ao óbice de que o tempo de decisão dos tribunais tornará
difícil a garantia da defesa dos cidadãos pela sobredita intervenção judicial,
adverte que a lentidão da Justiça é uma das questões a discutir antes de uma
revisão constitucional.
Com efeito, na questão dos metadados e na da emergência sanitária, se tem
de haver uma garantia judicial, é preciso, antes de mais, garantir que os
tribunais funcionem bem e a tempo. A Justiça tem de ser justiça rápida,
sobretudo estando em causa direitos fundamentais.
Sobre a proposta do Bloco de Esquerda (BE) de
eliminar a obrigatoriedade do referendo para a regionalização, confessa ter uma opinião duvidosa acerca da
forma como a regionalização aparece na CRP. Vê as regiões administrativas como
autarquias supramunicipais, não como autarquias autónomas e distintas dos
municípios e das freguesias. Mas não vê motivo para se pôr em causa o
referendo, observando que este “é perigoso quando é a nível nacional, sobretudo
quando se transforma em plebiscito”, mas a nível regional, municipal ou local,
não vê risco para a democracia. Contudo, para evitar que um referendo, como o
de 1998, impeça, pelas perguntas que formula, a instituição das regiões em
concreto, esclarece: “O que a Constituição exige é uma maioria favorável a nível
do país e, quanto a cada uma das regiões propostas, tem de haver uma maioria
favorável.” Ou seja, havendo 10 regiões e uma não dando voto favorável, tal não
impede a instituição das outras. Assim, manteria o preceito dos dois
referendos, devendo o voto ser favorável a nível nacional e regional.
Questionado sobre a problemática do ambiente,
insiste na minimalização da revisão, mas acha boa a preocupação ambiental e a
explicitação do direito à qualidade da água, pois faz parte do direito à
qualidade de vida. No entanto, resta saber se isso será concretizado na prática.
O drama de constituições como a portuguesa, a italiana, a espanhola ou a
brasileira, é que são muito promissoras, mas a concretização fica muito aquém do
estabelecido.
Relativamente ao bem-estar animal, não vê necessidade de alteração para ultrapassar a declaração de inconstitucionalidade
na criminalização, embora pense que são censuráveis e até devem
constituir crime os maus-tratos a animais. E sublinha que o problema se põe com
toda a gravidade quando se trata de animais que acompanham idosos ou doentes ou
crianças, pois aí põe-se em causa a dignidade da pessoa humana. Todavia,
considera que é “ir longe de mais” inscrever essa matéria na CRP.
Também se pronuncia quanto à pretensão do PS de que
os direitos do homem passem a direitos humanos, sem discriminação de género e de
que a identidade de género passe a fazer parte dos princípios da igualdade, bem
como a passagem do conceito de raça ao de etnia.
Precisa que a Declaração Universal dos Direitos do Homem (DUDH) fala em direitos do
homem, tomando o homem no sentido de homem/mulher. No entanto, para evitar que alguém
suponha, erradamente, que se restringe ao masculino, nada tem contra a mudança
para a expressão “direitos humanos”. E tem posição favorável no atinente à
questão da identidade de género. Já não vê fundamento para a substituição de “raça”
por “etnia”. Com efeito, o n.º 2 do artigo 13.º da CRP, ao inscrever causas de
discriminação ou de privilégio inadmissíveis, é uma norma aberta. Outros
fatores podem ser considerados inconstitucionais.
Pela mesma razão, não vê necessidade em alterar o
referido artigo 13.º, para inscrever especificamente a inclusão e da
tolerância, acrescentando que não se pode transformar a CRP num programa de
governo. Ademais, se forem descobertas, no futuro, novas
causas de discriminação, nessa perspetiva regularizante, ter-se-ia de abrir novo
processo de revisão. Ora, em 1976, atacavam a CRP por ser extensa e querer
regular tudo. Desta feita, importa não agravar o lastro para o ataque, tendo
“um certo comedimento”, até para observar o sentido da proporção, da
racionalidade e da razoabilidade. E é perentório a apontar: “O mais importante
é um Parlamento legislar e um Governo executar medidas efetivas de
concretização dos direitos.”
Acha que faz sentido descer a idade de voto para
16 anos. Como entre nós, a emancipação e o casamento podem dar-se aos 16 anos, “não
se compreende que uma pessoa seja considerada emancipada e não tenha direitos
políticos” – argumenta o constitucionalista.
No concernente à organização do poder político,
destaca uma proposta, a que assente, que explicita o sentido da Constituição, que é
a ideia de que “os círculos eleitorais devem ser definidos em termos de
assegurar representação eleitoral”, pois não é justo haver um círculo eleitoral
que elege dois deputados e Lisboa eleger 40. Por isso, entende que deveria
haver uma divisão razoável do território nacional. Porém discorda da proposta
do PSD de aumentar para sete anos o mandato do Presidente da República (PR),
visto que, a par de um aumento do poder do PR, isso “pode significar pôr em
causa o sistema semipresidencial ou de parlamentarismo racionalizado, que foi
consagrado na revisão constitucional de 1982”.
Com efeito, a Constituição de 1933 estipulava um mandato muito longo para o
PR e só em constituições de sentido ditatorial é que os mandatos do PR são
muito longos. Hoje, o PR é eleito por 5 anos e pode ser reeleito uma vez. E
basta. Na verdade, é salutar que os eleitores, atendendo ao desempenho do chefe
de Estado, o queiram agraciar com mais um mandato. E vinca: “É mais democrático
admitir a reeleição ao fim de um tempo razoável do que prescrever sete anos sem
a possibilidade de os cidadãos emitirem qualquer opinião e visão.”
Anota que vários projetos aumentam os poderes do PR, por exemplo pela interferência
na nomeação de membros de diversos órgãos, o que ao constitucionalista parece “extremamente
perigoso”. O PR está bem definido na CRP, independentemente da concordância com
a forma como exerce o mandato. E o sistema é suficientemente aberto e flexível
para admitir “um exercício em interdependência institucional com o Parlamento e
com o Governo e para admitir um juízo dos cidadãos eleitores ao fim de um certo
número de anos”. Assim, pensa que a proposta é “uma das mais perigosas que
foram apresentadas”.
Ao facto de, no passado, o atual PR se ter
manifestado favorável a um mandato único e mais longo e à questão se o PR pode
e deve exercer a sua magistratura de influência nos temas que têm suscitado
mais dúvidas, Jorge Miranda não está com panos quentes: “Acho que o PR tem de ter uma
autocontenção muito grande.”
Olha preocupado
o crescimento dos populismos e dos movimentos de extrema-direita. E aponta o
caso da Itália (com remotas condições de ditadura), a Polónia e a Hungria, onde
o regime é ditatorial, e a Espanha e a França, onde crescem os partidos populistas ou
nacional-populistas. Espera que os tribunais, apesar da lentidão, estejam
atentos, sobretudo o Tribunal Constitucional (TC). E, neste, destaca o grave problema
da não cooptação de juízes. Há um ou dois juízes cujo mandato terminou e não
foram cooptados os sucessores. Ora, “o TC tem de estar sempre revitalizado e
pronto a assumir as suas funções em cada momento” – vinca.
Por fim, mostra-se crítico da forma como se
desencadeou a revisão constitucional. O Chega apresentou um projeto. A partir daí, qualquer
projeto tinha de ser apresentado no prazo de 30 dias. Precludido esse prazo, qualquer
outro partido poderia desencadear o processo. Não havia necessidade de o PSD e
o PS apresentarem logo projetos de revisão e com o Chega a apresentar propostas
inadmissíveis (prisão perpétua, não limitação à inviolabilidade do domicílio,
revogação dos limites materiais de revisão constitucional…). Só é favorável a
uma proposta do Chega: a valorização da língua portuguesa. O resto é perigoso.
E os outros partidos deviam ficar de braços cruzados, deixando o Chega a falar
sozinho.
***
Por sua vez,
o Professor Vital Moreira, também constitucionalista, subscreve as objeções de
Jorge Miranda ao aumento da duração do mandato do PR e dos seus poderes,
acusando o PSD de regresso, por motivos oportunistas (maioria absoluta do PS),
ao “antigo vezo presidencialista”.
Ao invés, a
haver alterações na matéria, Vital Moreira pensa dever avançar-se para a redução de alguns dos atuais poderes
presidenciais, “incluindo uma obrigação de consulta ao Conselho de
Estado para o veto de ‘leis orgânicas’, a eliminação do veto absoluto de
tratados internacionais aprovados pela AR, a supressão da promulgação ou
assinatura de decretos regulamentares e outros decretos governamentais, um
maior condicionamento da dissolução parlamentar, a declaração do estado de
sítio/estado de emergência somente sob proposta governamental”. Mas, para
evitar melindres, entende que tais restrições não deveriam aplicar-se ao PR em
exercício.
Não sendo o
PR responsável pelos seus atos políticos, salva a “responsabilidade difusa”
ante a opinião pública, quanto maior poder tiver, maior possibilidade terá
do abuso impune.
***
Estes dois grandes académicos dão-nos boas lições, que devem ser acolhidas.
Porém, na condição de leitor, devo dizer que uma revisão constitucional não
deve olhar a quem está no exercício do poder. Ninguém isentou Ramalho Eanes da
Lei Constitucional n.º 1/82, de 30 de setembro e o atual PR tem mostrado uma
inusitada interpretação dos poderes presidenciais.
2022.12.07 – Louro de Carvalho
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