A
Solenidade da Imaculada Conceição da Virgem Santa Maria, para lá de celebrar um
privilégio da Mãe de Deus, constitui o ensejo para equacionarmos o modo de
resposta a dar aos desafios de Deus. Com o exemplo da donzela de Nazaré, a
liturgia insta a que aceitemos a iniciativa redentora de Deus e cooperemos com
ela, que é o sinal de esperança e a causa da alegria.
Em
1.ª leitura (Gn 3,9-15.20), deparamos
com um trecho do relato poético javista (Gn
2,4b-3,24), do século X a.C., sobre as origens da vida e do pecado, A
finalidade do autor não é científica ou histórica, mas teológica: mais do que
ensinar como o mundo e o homem apareceram, diz-nos que, na origem da vida e do
homem, está Deus, que nos talhou um destino de felicidade sem limites, e que,
na origem do pecado, está a autossuficiência do homem a querer tirar Deus da
sua vida.
Esta
longa reflexão está estruturada num esquema tripartido, com duas situações opostas
e uma realidade central que surge como charneira e em torno da qual gravitam as
outras duas.
Primeiro,
descreve-se a criação, por Deus, do paraíso e do homem. Tudo é bom e o homem
vive em total comunhão com o criador e com as outras criaturas. Depois, descreve-se
o pecado do homem e da mulher, mostrando como as opções erradas do homem introduziram
fatores de desequilíbrio e de morte na comunhão do homem com Deus e com o resto
da criação. Por fim, o homem e a mulher são confrontados com o resultado das
suas opções erradas e as consequências que daí advieram para o homem e para a
restante criação. No trecho em apreço, intervêm Deus, que passeia no jardim à
brisa do dia, Adão e Eva, escondidos de Deus entre as árvores do jardim.
Tudo
começa com a investigação de Deus, que, antes de acusar e julgar, apura os
factos.
Antes
de mais, pergunta ao homem: “Onde estás?” A resposta já configura confissão de
culpa: “Ouvi o rumor dos teus passos no jardim e, como estava nu, tive medo e
escondi-me.” A vergonha e o medo indiciam perturbação e rutura com a anterior
situação de inocência e de paz – situação a que o homem chegou desobedecendo a
Deus e seguindo rotas contrárias às que Deus lhe traçara. A seguir, Deus faz uma
pergunta meramente retórica: “Terias tu comido dessa árvore, da qual te
proibira de comer?” Essa árvore – a “árvore do conhecimento do bem e do mal” –
significa ser autossuficiente, prescindir de Deus, querer decidir por si só o
que é bem e o que é mal, pôr-se a si próprio na rota da autossuficiência em relação
a Deus.
Ao
defender-se, o homem acusa a mulher e, veladamente, o próprio Deus: “A mulher
que me deste por companheira deu-me do fruto da árvore e eu comi.” Adão (o ser feito
de barro) representa a humanidade que, imersa na autossuficiência, esquece o
dom de Deus e vê em Deus um adversário. E a sua resposta mostra uma humanidade
que britou a sua unidade e se instalou na cobardia, na falta de solidariedade,
no ódio. Daí, o ateísmo, o desprezo de Deus, o combate contra Deus, tal como as
fomes, as migrações forçadas, as guerras e a destruição do planeta.
Depois,
vem a defesa da mulher: “A serpente enganou-me e eu comi.” Entre os cananeus, a
serpente estava ligada aos rituais de fertilidade e de fecundidade. Os
israelitas deixavam-se fascinar por esses cultos e abandonavam Javé para assegurarem
a fecundidade dos campos e dos rebanhos. A serpente é, aqui, um símbolo
literário de tudo o que afastava os israelitas de Javé. A resposta da mulher
confirma tudo o que já estava sugerido: a humanidade criada por Deus prescindiu
de Deus e enveredou por outros caminhos, bem distantes dos de Deus.
A
isto Deus pouco mais acrescenta, a não ser a condenação, como falsos e
enganosos, desses cultos e dessas tentações que seduziam os israelitas e os
punham fora da dinâmica da Aliança e dos mandamentos. O teólogo javista sabe
que a serpente é um animal miserável, que passa toda a vida a morder o pó da
terra. Por isso, com este dado, o autor pinta a condenação radical de tudo o
que leva os homens a desviarem-se da rota de Deus e a enveredarem pelas da
autossuficiência.
A
inimizade e a luta entre a descendência da mulher e a descendência da serpente
constituem, para o autor javista, uma explicação etiológica (etiologia explica
o porquê de uma realidade que o autor conhece no seu tempo, a partir de um acontecimento
primordial responsável pela situação atual) para o facto de a serpente inspirar
horror aos humanos e de toda a gente lhe procurar “esmagar a cabeça”. Porém, a
interpretação judaico-cristã vê nisto uma profecia messiânica: Deus anuncia que
um filho da mulher, o Messias, acabará com as consequências do pecado e reinserirá
a humanidade na dinâmica da graça de Deus.
É
de advertir que não estamos só perante o pecado cometido nos primórdios da
humanidade pelo primeiro homem e pela primeira mulher, mas perante o pecado
cometido por todos os homens e mulheres de todos os tempo, que resolveram
afastar-se de Deus e construir o mundo a partir de critérios de egoísmo e de autossuficiência. É um quadro bem presente nestes tempos!
***
O
trecho evangélico proclamado nesta liturgia (Lc 1,26-38) pertence ao “Evangelho da Infância” na versão lucana. Os
textos do “Evangelho da Infância” pertencem à homologese, género literário que é,
sobretudo, uma catequese destinada a proclamar certas realidades salvíficas: Jesus
é o Messias, Ele vem de Deus, Ele é o “Deus connosco”.
Desenvolvendo-se
em forma de narração, recorre às técnicas do midrash haggádico (técnica de
leitura e de interpretação usada pelos rabinos judeus do tempo de Jesus). Misturam-se
tipologias – factos e pessoas do Antigo Testamento (AT) têm correspondência em
factos e pessoas do Novo Testamento (NT) e aparições apocalípticas (anjos,
aparições, sonhos) – para fazer avançar a narração e para explicitar uma
catequese sobre Jesus. O Evangelho deste dia deve, pois, ser entendido a esta
luz: não importa procurar factos históricos, mas perceber o que a catequese
cristã primitiva nos ensina, sobre Jesus, através destas narrações.
Estamos
em Nazaré, aldeia da Galileia. A Galileia, região a norte da Palestina, à volta
do Lago de Tiberíades, era tida pelos judeus como terra longínqua e estranha, em
contacto com as populações pagãs e onde se praticava uma religião contaminada pelas
tradições e costumes pagãos. Daí a convicção dos mestres judeus de Jerusalém de
que “da Galileia não pode vir nada de bom”. E Nazaré era uma aldeia pobre e
ignorada, nunca nomeada na história religiosa e, portanto, segundo a
mentalidade judaica, à margem dos caminhos de Deus e da salvação.
Maria,
que está no centro do episódio, era uma virgem desposada com José. O casamento
hebraico distribuía o compromisso matrimonial por duas etapas: os esponsais, em
que os noivos se prometiam mutuamente, mas não coabitavam; e o compromisso
definitivo, com as cerimónias do matrimónio propriamente dito. Entre uma e
outra etapa, passava um tempo mais ou menos longo, em que qualquer uma das partes
podia voltar atrás, embora sofresse uma penalidade. Durante os esponsais, embora
os noivos não vivessem em comum, o compromisso assumia caráter estável, de tal modo
que, se surgisse um filho, era considerado filho legítimo de ambos. A Lei de
Moisés considerava a infidelidade da prometida como ofensa equivalente à
infidelidade da esposa. E a união dos dois prometidos só podia dissolver-se com
a fórmula jurídica do divórcio.
Apresentado
o ambiente da cena, surge o diálogo entre Maria e o anjo. O anjo saúda Maria
com termos e expressões de ressonância veterotestamentária e de ligação a
contextos de eleição, de vocação e de missão. O termo “Ave” (em Grego, Kaîre) com que o anjo se lhe dirige é
mais do que saudação: é o eco dos anúncios de salvação à filha de Sião – figura
delicada que personifica Israel, em cuja fraqueza se apresenta e representa a
salvação de Deus, que o Povo de Israel deve testemunhar diante dos outros povos.
A expressão “cheia de graça” (em Grego, kekharitoménê)
significa que Maria é objeto da predileção de Deus. E a expressão “o Senhor contigo”
(em Grego, ho Kýrios metà soû) aparece
ligada aos relatos de vocação no AT (vocação de Moisés, vocação de Gedeão, vocação
de Jeremias) e assegura ao chamado a assistência de Deus na missão que lhe é
pedida. Estamos, portanto, ante o relato de vocação de Maria: a visita do anjo
visa apresentar à jovem uma proposta de Deus, que lhe exige uma resposta clara
e pronta.
Deus
propõe a Maria que aceite ser a mãe de um filho especial, de quem se diz que se
chamará Jesus, nome que significa “Deus salva”, que é o “Filho do Altíssimo”,
que herdará “o trono de seu pai David” e cujo reinado “não terá fim”. As palavras
do anjo levam-nos à promessa feita por Deus ao rei David através das palavras
do profeta Nathan. Esse filho é descrito nos mesmos termos em que a teologia de
Israel descrevia o messias libertador. O que é proposto a Maria é, pois, que
ela aceite ser a mãe do messias que Israel esperava, o libertador enviado por
Deus ao seu Povo para lhe oferecer a vida e a salvação definitivas.
A
resposta começa com uma objeção. A objeção faz parte dos relatos de vocação do
AT, como reação natural de um chamado, perturbado, na linha do compromisso, com
algo que o ultrapassa, e é uma forma de mostrar a grandeza e o poder de Deus
que, apesar da fragilidade e das limitações dos chamados, faz deles
instrumentos da salvação no meio dos homens e do mundo.
Face
à objeção de Maria, o anjo garante que o Espírito Santo virá sobre ela e a
cobrirá com a sua sombra. Este Espírito é o que foi derramado sobre os juízes,
os reis, os profetas e os anciãos de Israel, para que pudessem ser presença
eficaz da salvação de Deus no meio do mundo. A sombra ou nuvem levam-nos à
“coluna de nuvem” que acompanhava o Povo de Deus em marcha pelo deserto,
indicando o caminho para a Terra Prometida da liberdade e da vida nova. Assim,
apesar da fragilidade de Maria, Deus faz-Se, por ela, presente no mundo para
oferecer a salvação a todos.
O
relato termina com a resposta de Maria: “Eis a serva do Senhor; faça-se em mim
segundo a tua palavra.” Afirmar-se como serva significa, além da humildade, o
seu reconhecimento de eleita de Deus e a aceitação dessa eleição, com todas as
consequências. No AT, “servo do Senhor” é um título de glória reservado aos que
Deus escolheu, que reservou para o seu serviço e que enviou ao mundo com uma
missão (esta designação aparece, por exemplo, em Isaías, referida à figura do servo
de Javé. Assim, Maria reconhece que Deus a escolheu, aceita com disponibilidade
essa escolha e dispõe-se a cumprir, com fidelidade, o desígnio de Deus.
Ao
contrário de Eva e Adão, Maria abjurou da rota da autossuficiência, longe de Deus,
e preferiu conformar a vida, de forma radical, com o plano de Deus. Com o “sim”,
cooperou para que Deus inaugurasse, no tempo, o cumprimento da promessa messiânica
com que terminou a 1.ª leitura. Em termos desportivos, poderemos dizer que o “sim”
de Maria à encarnação do Verbo de Deus é o pontapé de saída para a redenção da
Humanidade. A este passo seguiu-se toda uma vida de Jesus, configuradora do seu
mistério pascal, com o qual Maria se conformou de forma exemplar, constituindo um
permanente apelo vivo a que todos e todas nos conformemos pelo Batismo e pela
vida cristã de discípulos, testemunhas e apóstolos – de que Maria é protótipo.
***
Em
2.ª leitura (Ef 1,3-6.11-12), temos um
trecho da síntese da teologia paulina, de quando a missão do apóstolo estava praticamente
terminada no Oriente. Éfeso, capital da Província romana da Ásia, situava-se na
costa ocidental da Ásia Menor. O porto e a numerosa população faziam dela uma
cidade florescente. Paulo passou ali na segunda viagem missionária e, durante a
terceira, lá estabeleceu o quartel-general, donde evangelizou a zona ocidental
da Ásia Menor.
A
Carta aos Efésios será um dos exemplares da circular enviada a igrejas da Ásia
Menor, através de Tíquico, estando Paulo na prisão, em Roma. Estamos por volta
dos anos 58/60.
O
trecho em apreço é parte de um hino litúrgico que circulou nas comunidades
cristãs, em que se dão graças pela ação do Pai, do Filho e do Espírito Santo
pela oferta da salvação.
O
Pai, no seu amor, elegeu-nos desde sempre (“antes da criação do mundo”), para “para
sermos santos e irrepreensíveis”. Além de nos eleger, predestinou-nos “para
sermos seus filhos adotivos” e, através de Cristo, ofereceu-nos a sua vida e
integrou-nos na sua família, graças ao seu imenso amor pelos homens – um amor gratuito,
incondicional e radical.
Assim,
o “sim” de Maria iniciou a marcha para o ato de Jesus Cristo – Paixão, Morte Ressurreição
– que nos consagrou como filhos de Deus e herdeiros da salvação, conforme o
desígnio de Deus gizado e gravado em nosso favor, desde toda a eternidade.
2022.12.08 – Louro de Carvalho
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