Desde o
princípio da Cristandade a Igreja tem-se confrontado com os falsos ensinamentos
ou heresias. É natural, pois qualquer ideário ou projeto coletivo conhece tanto
os seus agentes de aprofundamento, dilatação e divulgação como os detratores,
que induzem contrafação e desvio.
No caso dos
seguidores de Cristo, a previsão ficou plasmada no discurso escatológico de
Cristo:
“Tomai cuidado, não vos deixeis enganar! Pois muitos virão em
meu nome, dizendo: ‘Sou eu’ e ‘O tempo está próximo’. Não vades atrás deles.
Quando ouvirdes falar de guerras e de rebeliões, não fiqueis
aterrorizados; é necessário que estas coisas aconteçam primeiro, mas não será
imediatamente o fim.” (Lc 21, 8-9) E o Apóstolo Paulo avisou o seu discípulo Timóteo:
“Virão tempos em que o ensinamento salutar não será aceite, mas as pessoas
acumularão mestres que lhes encham os ouvidos, de acordo com os próprios
desejos. Desviarão os ouvidos da verdade e divagarão ao sabor das fábulas.” (2Tm 4,3-4).
Se olharmos os
catálogos telefónicos, toparemos, em qualquer cidade, uma denominação religiosa
que diz o que gostamos de ouvir. Ensinam que Jesus não é Deus ou que é a única
pessoa da Trindade, que há muitos deuses (três dos quais são o Pai, o Filho e o
Espírito Santo), que nos podemos tornar deuses, que uma pessoa, uma vez salva,
jamais perderá a salvação, que não há inferno nem diabo, ou que o
homossexualismo é uma expressão da sexualidade humana, portanto um estilo de vida
aceitável para um cristão – para lá de qualquer outro tipo de ensinamento.
Antes de olhar
as grandes heresias da História da Igreja, cumpre esclarecer a natureza da
heresia, pois o termo em si carrega forte peso emocional e é, frequentemente,
mal utilizado. Heresia não significa incredulidade, cisma, apostasia ou outra
postura contra a fé. O Catecismo da
Igreja Católica (CIC) explana: “A incredulidade é o desprezo da verdade revelada ou a recusa voluntária de
lhe prestar assentimento. A heresia
é a negação pertinaz, depois de recebido o Batismo, de
alguma verdade que se deve crer com fé divina e católica ou, ainda, a dúvida
pertinaz acerca da mesma; apostasia é o repúdio total da fé
cristã; cisma é a recusa da sujeição ao Sumo Pontífice ou da
comunhão com os membros da Igreja que lhe estão sujeitos.” (CIC 2089).
Para ser
culpada de heresia, a pessoa deve estar obstinada (incorrigível) no erro. Quem
está aberto à correção ou não tem consciência de que o que diz é contrário ao
ensinamento da Igreja não pode ser considerado herege. Por outro lado, a dúvida
ou negação envolvida na heresia deve ser pós-batismal. Para ser acusada de
heresia, a pessoa deve ser, antes de tudo, um batizado. Isso significa que os
movimentos que surgiram da divisão do Cristianismo ou que foram influenciados
por ele, mas que não ministram o Batismo ou que não batizam validamente, não são
heresias, mas religiões separadas (por exemplo, os Muçulmanos, que não possuem o Batismo, e as Testemunhas de Jeová, que não batizam validamente). E a dúvida ou
negação envolvidas na heresia devem estar conexas com matéria que deve ser
crida com fé católica e divina, ou seja, algo definido solenemente pela Igreja
como verdade revelada, por exemplo, a Trindade, a Encarnação, a Presença Real
de Cristo na Eucaristia, o Sacrifício da Missa, a Infalibilidade Papal, a
Imaculada Conceição e a Assunção de Nossa Senhora. É importante distinguir
heresia de cisma e apostasia. No cisma, a pessoa ou grupo separa-se da Igreja
Católica sem repudiar doutrina definida. Já na apostasia, a pessoa repudia
totalmente a fé cristã e não mais se considera cristã.
Vistas as
diferenças, revisitam-se as grandes heresias da História da Igreja (até ao
século VIII).
A judaização, no século I, resume-se no
seguinte: “Alguns, que tinham descido da Judeia, ensinavam aos irmãos: ‘Se não
vos circuncidardes de harmonia com o uso herdado de Moisés, não podereis ser
salvos’.” (At 15,1) Muitos dos primeiros cristãos eram judeus e trouxeram para
a fé cristã as práticas judaicas. Reconheciam em Jesus Cristo o Messias
anunciado pelos profetas, mas, como a circuncisão era obrigatória no Antigo
Testamento (AT) para a participação na Aliança com Deus, pensavam que também era
necessária para a participação na Nova Aliança que Jesus inaugurou. Portanto,
acreditavam que era necessário o homem ser circuncidado e guardar os preceitos
mosaicos para se tornar um verdadeiro cristão.
Já o ebionismo era
a seita cristã que ensinava que Jesus era o Messias, um homem comum que se
tornou divino na ocasião do Batismo. Os ebionitas insistiam na necessidade
de seguir as leis e os ritos judaicos, que interpretavam à luz dos
ensinamentos de Jesus, utilizando apenas o evangelho judaico-cristão e
rejeitando as epístolas paulinas, cujo autor consideravam apóstata da Lei.
Parente do ebionismo era o adocionismo, também
chamado monarquianismo dinâmico, que é uma visão não
trinitária do cristianismo primitivo, que professa
que Jesus nasceu apenas humano, tornando-se divino por ocasião
do Batismo, quando foi adotado como filho de Deus.
Entretanto,
surge o gnosticismo (séculos I e II)
sob o lema “A matéria é má”, ideia tomada emprestada de alguns filósofos
gregos, o que vai contra o ensinamento católico, pois contradiz Génesis 1,31 (“Deus,
vendo toda a sua obra, considerou-a muito boa”), bem como outras partes da
Sagrada Escritura, e nega a própria Encarnação. Se a matéria fosse má, Jesus
não poderia ser verdadeiro Deus e verdadeiro homem. Porém, em Cristo não há
nada que seja mau. Assim, muitos gnósticos negavam a Encarnação, alegando que Jesus
Cristo apenas “parecia” como homem, mas essa sua humanidade era ilusória.
Alguns gnósticos,
reconhecendo que o AT ensina que Deus criou a matéria, alegavam que o Deus dos
Judeus era uma divindade maligna diferente do Deus de Jesus Cristo, do Novo Testamento.
E sustentavam a crença em muitos seres divinos, conhecidos como “aiônes” que
servem de mediadores entre o homem e um Deus inatingível. O mais baixo de todos
esses “aiônes” que estava em contacto direto com os homens era Jesus Cristo.
Antecedente do gnosticismo e concomitante com ele é o docetismo (do Grego dokéô, pareço), que é doutrina considerada herética pela
Igreja primitiva. Os docetas acreditavam que o corpo de Cristo era ilusão
e que a sua crucificação fora apenas aparente. Não existiam “docetas” enquanto
seita ou religião, mas como uma corrente de pensamento que atravessou diversos
estratos da Igreja. O docetismo acreditava que Jesus Cristo era um espectro,
pelo que, apesar de ter uma aparência humana, não possuía carne e nem sangue. Foi
refutado com base no Evangelho de João, que afirma: “O Verbo Se fez carne.”
(Jo 1,14) Autores cristãos,
como Inácio de Antioquia e Ireneu de Lião deram os
contributos teológicos mais importantes para a erradicação deste pensamento, em
especial o último que, na obra Adversus
Haereses, defendeu as principais ideias que contrariavam o docetismo,
ou seja, a teologia do cristocentrismo, a recapitulação em Cristo do
homem caído em pecado e a união entre a criação, o pecado e a redenção.
O docetismo é
parente de correntes gnósticas para as quais o mundo material é mau e
corrompido e que tentavam aliar, de forma racional,
a Revelação disposta nas escrituras com a Filosofia grega. Esta
doutrina foi condenada como heresia no Concílio Ecuménico de Calcedónia
(ano 451).
No final do século II, surgiu o montanismo
pela mão de Montanus,
que iniciou a sua carreira pregando o retorno à penitência e ao fervor.
Todavia, alegava que os seus ensinamentos estavam acima dos ensinamentos da
Igreja, porque ele era diretamente inspirado pelo Espírito Santo. Na sua cidade
natal na Frígia, começou a ensinar sobre uma eminente volta de Cristo. E o
movimento enfatizava sobretudo a continuidade dos dons extraordinários como
falar línguas e profetizar.
No início do século III, o sabelianismo
ou modalismo ensinava que Jesus Cristo e Deus Pai não eram pessoas
distintas, mas dois aspetos ou operações da única pessoa. Assim, as três pessoas
da Trindade existem só em referência à relação de Deus com o homem, não como
realidade objetiva.
O novacianismo, no século III, e o donatismo, no início do século IV,
ensinavam que a Igreja não devia incluir os pecadores, mormente os que haviam
negado a fé.
O século IV produziu o arianismo,
uma das maiores heresias com que a
Igreja se debateu. Arius ensinava que Cristo não era Deus, mas criatura de
Deus. Disfarçando a heresia com terminologia ortodoxa ou semiortodoxa, semeou a
confusão na Igreja, conquistando o apoio de muitos bispos e a rejeição de
alguns. O arianismo foi solenemente condenado, no ano 325, pelo Concílio de
Niceia I, que definiu a divindade de Cristo e, no ano 381, pelo Concílio de
Constantinopla I, que definiu a divindade do Espírito Santo. Esses dois
Concílios deram origem ao Credo Niceno-Constantinoplitano que os católicos
recitam na missa dominical.
Também no século
IV se difundiu o priscilianismo (dualista) pregado por Prisciliano, com base nos ideais de
austeridade e pobreza. Derivado de doutrinas gnóstico-maniqueístas ensinadas
por Marcus, um egípcio de Mênfis. Ensinava que de Deus emanaram seres
espirituais, incluindo Cristo (que não tinha corpo) e que a matéria derivara do
demónio e era fonte de pecado.
No século V, surge o pelagianismo
pela mão de Pelagius,
monge gaulês, que negava termos herdado o pecado de Adão e alegava que nos
tornámos pessoalmente pecadores, só porque nascemos em solidariedade com uma
comunidade pecadora que nos dá maus exemplos. Negava que herdámos a santidade
ou justiça como resultado da morte de Cristo na cruz, dizendo que nos tornamos
pessoalmente justos pela instrução e pela imitação da comunidade cristã,
seguindo o exemplo de Cristo. E declarava que o homem nasce moralmente neutro,
podendo chegar ao céu pelos próprios esforços. Assim, a graça de Deus não é necessária,
só facilita a tarefa da santidade.
No século V, o nestorianismo,
pela mão de Nestorius,
bispo de Constantinopla, que negava a Maria o título de Theotókos (“Mãe de Deus”), aduzindo que Maria deu origem apenas à
pessoa humana de Cristo em seu útero e chegou a propor como alternativa o
título Khristotókos (“Mãe de
Cristo”). Os teólogos católicos reconheceram que a teoria de Nestorius dividia
Cristo em duas pessoas distintas (uma humana e outra divina, unidos por uma
espécie de “elo perdido”), sendo que apenas uma estava no útero de Maria. A
Igreja reagiu no ano 431 com o Concílio de Éfeso, definindo que Maria é Mãe de
Deus, não como anterior a Deus ou, seja, como fonte de Deus, mas no sentido de
que O que Ela trouxe no ventre é, de facto, o Deus Encarnado.
Em contraponto, surge o monofisismo. Os monofisistas, liderados
por Eutyches, ficaram horrorizados pela implicação nestoriana de que Cristo era
duas pessoas e duas naturezas (divina e humana). Então, partiram para o outro
extremo, alegando que Cristo era uma pessoa com uma só natureza (fundindo
elementos divinos e humanos). Eram conhecidos como monofisistas devido à
alegação de que Cristo possuía apenas uma natureza (em Grego: móno = um; phýsis =
natureza). Os teólogos católicos reconheceram que o monofisismo era tão
pernicioso como o nestorianismo, porque esse negava tanto a completa humanidade
como a completa divindade de Cristo. Ora, se Cristo não possuísse a natureza
humana na plenitude, não poderia ser verdadeiro homem; e, se não possuía a
natureza divina na plenitude, não era verdadeiro Deus.
E os séculos VII e VIII foram fustigados pela iconoclastia, que irrompeu quando surgiu um grupo conhecido como “os iconoclastas”
(literalmente, destruidores de ícones). Esses alegavam que era pecaminoso fazer
estátuas ou pinturas de Cristo e dos Santos, apesar de exemplos bíblicos que
provam que Deus mandou que se fizessem estátuas religiosas (por exemplo, Ex 25,18-20 e 1Cr 28,18-19), inclusive representações simbólicas de Cristo (Nm 21,8-9 e Jo 3,14).
É, ainda, de
referir o milenarismo, doutrina muito
difundida entre os primitivos cristãos, segundo a qual Cristo reinaria sobre a
Terra durante mil anos, antes do dia do Juízo Final, mantida nos primeiros séculos
do cristianismo, dizendo que o fim do mundo seria no ano 1000.
Obviamente
não se esgota a lista, mas estas surgem como tais ou recauchutadas com
formulação atualizada e até com outras designações, fazendo escola em seitas e em
confissões cristãs, ao longo do tempo e hoje de forma subtil, de modo a
responder às aspirações das pessoas, quando a Igreja institucional não se
mostra capaz de o fazer.
Por outro
lado, há atitudes que raiam a heresia: o excesso de angelismo, ou seja, virar
as costas ao mundo, para evitar contágio, pois Deus salva os que merecem, desde
que se cuidem espiritualmente; e o excesso de ação, confiando que a salvação
depende do nossa Capacidade de planeamento e da nossa atividade, como se fôssemos
insubstituíveis e como se Deus não quisesse agir ou não fosse capaz sem nós. Haja
fé, esperança e equilíbrio!
2022.12.03 – Louro de Carvalho
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