terça-feira, 21 de janeiro de 2025

Donald Trump, sem surpresa, mostrou claramente ao que vem

 

Após a prestação de juramento, com a mão direita levantada e a esquerda sobre a Bíblia, e com a subsequente tomada de posse, no Capitólio, em Washington DC, Donald Trump regressou oficialmente ao poder, a 20 de janeiro, tornando-se o 47.º presidente dos Estados Unidos da América (EUA) – já tinha sido o 45.º presente –, o que sustentou ser um “regresso político histórico”.

Seguindo o teleponto e sem introduzir os habituais improvisos, num discurso de cerca de 30 minutos, curto para os seus padrões, prometeu que a América será grande, novamente, “propôs uma revolução do senso comum” e apresentou os principais objetivos para o quadriénio. Porém, não mencionou os manifestantes condenados por haverem atacado o Capitólio dos EUA, a 6 de janeiro de 2021, uma relevante omissão, dado já ter dito que planeava perdoar a muitos deles, logo no primeiro dia de governação.

Como peças basilares da sua intervenção oratória, apontam-se as seguintes:

* A garantia do retorno da “liberdade de expressão”, acabando com a censura do governo, numa provável referência a um apoio às principais redes sociais e empresas de tecnologia. Com efeito, durante o discurso, sentaram-se na fila à frente do novo governo líderes de empresas tecnológicas, como Elon Musk, Mark Zuckerberg e Jeff Bezos.

Elon Musk terá a seu cargo um ambicioso projeto de reforma do Estado, o acesso direto aos vários departamentos governativos e um gabinete nas imediações da Casa Branca.

O impacto deste apoio nas tentativas da União Europeia (UE) de regulamentar os gigantes da tecnologia será uma questão fundamental nos tempos mais próximos.

* O apelo a uma “emergência energética nacional”, para permitir o aumento da produção. Por conseguinte, após o discurso, a Casa Branca anunciou que os EUA vão retirar-se do Acordo de Paris sobre o Clima, sendo esta a segunda vez que Donald Trump se retira do acordo voluntário para reduzir as emissões de gases com efeito de estufa (GEE).

É uma medida política que gera ansiedade entre os responsáveis da UE para o Pacto Ecológico.

* Expansão do território norte-americano, em aparente referência ao plano de colonização de Marte. Todavia, o presidente também repetiu planos de política externa, mencionando a guerra entre Israel e o Hamas e afirmando que “a China está a explorar o Canal do Panamá”, mas que “vamos recuperá-lo”. Já, no início do mês, se recusou a excluir a possibilidade de recorrer à força militar, para assumir o controlo desta via estratégica de navegação.

O presidente sugeriu planos para reverter as políticas de diversidade, de equidade e de inclusão do ex-presidente Joe Biden, dizendo que o seu governo vai reconhecer apenas dois géneros – masculino e feminino – e vai interromper as tentativas de “manipular, socialmente, raça e género, em todos os aspetos da vida pública e privada”.

* Trump prometeu elevar a posição dos EUA na cena mundial, afirmando que “o declínio da América acabou”, e elogiou o seu regresso à Sala Oval, como “prova de que nunca se deve acreditar que algo é impossível na América”.

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“A idade de ouro dos Estados Unidos da América começa agora. Vamos ser a inveja de toda a gente e não vamos permitir mais que se aproveitem de nós. A nossa soberania vai ser reposta”, assegurou, num tom inflamado.

Arrancando aplausos no Capitólio, atacou o governo cessante, acusando-o de não conseguir gerir crises internas e externas, e criticou o atual estado dos serviços públicos norte-americanos. “Vamos reverter, completa e totalmente, uma traição e devolver a fé, a riqueza, a democracia e a liberdade às pessoas. A partir de aqui, o declínio da América acabou”, prometeu.

“Aqueles que querem parar a nossa causa tentaram tirar-me a minha liberdade e a minha vida”, afirmou, referindo-se ao atentado em Butler, durante um comício no ano passado. “Acredito que a minha vida foi salva por uma razão. Deus salvou-me. Sobrevivi, para tornar a América grande outra vez”, continuou, recordando o slogan que popularizou a campanha de 2016: “Make America Great Again” ou MAGA. É uma tirada providencialista na política, como as de Valdimir Putin ou de Oliveira Salazar.

Enumerando, ainda, as ordens executivas que prometera assinar no proprio dia da tomada de posse, adiantou que a primeira será a declaração de uma “emergência nacional na fronteira Sul. “Todas as entradas ilegais serão paradas e começaremos o processo de devolver imigrantes ilegais aos sítios de onde vieram”, especificou, garantindo que vai declarar cartéis mexicanos como “organizações terroristas estrangeiras” e autorizar as forças federais e estaduais a utilizarem “todo o seu poder e força”, para erradicar “gangues criminosos” nos EUA.

No âmbito da declaração de emergência energética, confirmou uma série de medidas já esperadas: a expansão da exploração petrolífera nacional e o fim dos subsídios aos carros elétricos, além de pesadas tarifas aduaneiras a países que, no seu entender, promovem práticas comerciais injustas e lesivas para com o país. “Voltaremos a ser uma nação rica e é o ouro líquido [o petróleo] que temos debaixo dos pés que nos ajudará a consegui-lo [...] Vamos acabar com o ‘Green New Deal’ [projeto de políticas públicas para abordar as mudanças climáticas e atingir outros objetivos sociais, como criação de empregos, crescimento económico e redução da desigualdade económica] e revogar o mandato dos veículos elétricos, salvando a nossa indústria automóvel”, garantiu. 

Já no final da intervenção, Trump reafirmou querer renomear o Golfo do México como “Golfo da América” e querer o Canal do Panamá de regresso ao controlo norte-americano, acusando o Panamá de incumprir acordos, de lesar os interesses comerciais dos EUA e de privilegiar a China.

“Vamos tomá-lo de volta”, ameaçou, momentos depois de se autodenominar como um “fazedor de paz” e de reclamar créditos pelo cessar-fogo no Médio Oriente, que permitiu o reinício da libertação de reféns pelo Hamas, em Gaza, a restituição de prisioneiros detidos por Israel

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Após as proclamações discursivas, o presidente assinou ordens executivas prioritárias, como:

* A retirada dos EUA do Acordo de Paris sobre o Clima, que pretende limitar o aquecimento global a 1,5 graus Celsius (1,5º C), relativamente à era pré-industrial, tal como fez durante a sua primeira presidência (2016-2020).

* A retirada dos EUA da Organização Mundial da Saúde (OMS). Até agora, os EUA eram o principal doador e parceiro da OMS. O seu contributo representava 20% do orçamento da OMS.

* A confirmou a intenção de impor tarifas de 25% sobre os produtos do Canadá e México, já a partir do dia 1 de fevereiro;

* O decreto de perdão às cerca de 1500 de pessoas condenadas pelo ataque de 6 de fevereiro de 2021 ao Capitólio (sede do Congresso norte-americano), incitado pelo próprio Donald Trump depois de ter perdido as eleições de 2020 contra Joe Biden;

* A convocação do presidente da Rússia, Vladimir Putin, para encontrarem um acordo de paz com a Ucrânia, de modo a pôr fim à guerra em larga escala que dura desde fevereiro de 2022;

* O adiamento temporário da proibição federal da rede social TikTok (durante, pelo menos, 75 dias), detida pela empresa-mãe chinesa ByteDance;

* A revogação da ordem executiva, emitida por Joe Biden, que punia os colonos israelitas acusados de violência contra os palestinianos na Cisjordânia ocupada;

* A renomeação do Serviço Digital, que passa a chamar-se Departamento de Eficiência Governamental (DOGE, como o nome da criptomoeda), liderado por Elon Musk, para reduzir burocracias e custos nos cofres do Estado;

* O memorando que dá instruções ao Secretário do Tesouro para informar a Organização de Cooperação e de Desenvolvimento Económico (OCDE) de que o acordo fiscal global não será aplicado nos EUA;

* A eliminação do portal governamental sobre o aborto criado em 2022, no mandato de Biden (já não está acessível o site “ReproductiveRights.gov”, que surgiu após o Supremo Tribunal dos EUA ter revertido a decisão que protegia o direito à interrupção voluntária da gravidez, conhecida como “Roe versus Wade”);

* A revogação da habilitação de segurança de, pelo menos, 51 antigos funcionários dos serviços secretos (incluindo cinco antigos diretores da CIA), acusando-os de tentar “influenciar as eleições americanas”;

* O encerramento da aplicação CBP One, que permitia a marcação de entrevistas a imigrantes que queriam entrar no país (os pedidos para serem ouvidos pelo Departamento de Imigração e todos os horários de entrevistas que já tinham sido atribuídos foram cancelados).

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Em suma, em termos ideológicos, o governo federal reconhece apenas dois géneros – masculino e feminino –, revertendo os esforços do governo de Biden para ampliar as designações de identidade de género. É declarada a “emergência nacional” na fronteira do Sul, com o México, restabelecendo a política ‘permanecer no México’ [‘remain in Mexico’], acabando com a prática de captura e de libertação [‘catch and release’] e enviando tropas para a fronteira sul “para repelir a desastrosa invasão do país”, como prometeu o presidente, no discurso da tomada de posse. São interrompidas “todas as entradas ilegais” de pessoas e inicia-se o “processo de ‘devolução’ de milhões e milhões de estrangeiros criminosos aos locais de onde vieram”. Deixa de se reconhecer, automaticamente, como cidadãos norte-americanos os filhos de imigrantes e requerentes de asilo nascidos no país, ou seja, acaba-se com a cidadania por nascimento, garantida pela 14.ª Emenda, para os filhos de imigrantes sem documentos. E designam-se cartéis e gangues de drogas como organizações terroristas estrangeiras, invocando a Lei dos Inimigos Estrangeiros, de 1798, para que se “utilize o pleno e imenso poder da aplicação da lei federal e estadual”, a fim de eliminar a presença de todos os gangues estrangeiros e das redes criminosas que trazem crimes devastadores para o solo dos EUA.

A nível estratégico, os EUA assumirão o controlo do Canal do Panamá, que está, alegadamente, nas mãos da China, e mudarão o nome de “Golfo do México” para “Golfo da América”. Declaram “emergência energética”, para aumentar a produção e exploração de petróleo e de gás natural, a fim de baixar os preços da energia, encher as reservas estratégicas e exportar energia americana “para todo o Mundo”. Iniciam a revisão do sistema comercial norte-americano, para “proteger os trabalhadores e as famílias americanas”, impondo tarifas e tributando países estrangeiros para enriquecer os cidadãos americanos. Acabarão com a censura e voltarão a impor o discurso livre. E colocarão a bandeira dos Estados Unidos da América no planeta Marte, com a ajuda de Elon Musk, diretor executivo da empresa aeroespacial SpaceX e membro da sua administração.

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É de assinalar – no discurso, nas medidas postas em vigor e nas anunciadas – o inqualificável surto de retrocesso civilizacional no atual concerto das nações. Os EUA estão a fechar-se. A propalada recuperação da liberdade de expressão é uma falácia. Exprime-se quem tem dinheiro. E as questões de género, bem como negacionismo climático e epidemiológico, limitam a liberdade de opinião e de expressão – liberdades que não se coartam, nem se impõem.

Só não acontecerá o reenvio em massa de imigrantes aos países de origem, pela dificuldade logística que isso acarreta e pelo horizonte temporal de quatro anos. Porém, a mão-de-obra escasseará, no país, e muita gente sofrerá.

A tarifação de produtos do exterior torná-los-á mais caros, terá a resposta recíproca dos demais países e constituirá, sob um falso protecionismo, a negação do comércio livre.

Enfim, a UE, que diz relacionar-se, formalmente, com a nova administração norte-americana, poderá ficar refém da guerra EUA-China e perder a sua participação no controlo do Ártico, em benefício do consórcio EUA-Rússia. Oxalá estes quatro anos passem depressa!

2025.01.21 – Louro de Carvalho

segunda-feira, 20 de janeiro de 2025

O binómio “falta” e “superabundância” na relação homem-Deus

 

A Palavra de Deus que a liturgia do 2.º domingo do Tempo Comum, no Ano C, nos oferece recorre à metáfora do casamento para marcar a relação de amor e de comunhão entre Deus e o seu Povo.

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Na primeira leitura (Is 62,1-5), um profeta anónimo garante a Jerusalém, cidade em ruínas, que Deus a ama com infindo amor, que a regenerará, recriando-a e transformando-a em encantadora e resplandecente noiva. A cidade-esposa encherá de orgulho e de alegria o coração do seu marido.

O trecho em apreço é parte de um poema (Is 62,1-9) que canta Jerusalém como a “esposa de Javé”, a cidade que Deus ama, apesar das suas infidelidades. Uma poderosa e irresistível força interior impele o profeta a cantar a glória de Jerusalém, a proclamar o amor nunca desmentido de Deus pela sua cidade e pelo seu Povo. E fá-lo como uma imagem que a reflexão profética, desde Oseias, consagrou: o casamento entre homem e mulher.

Jerusalém, a esposa de Javé, abandonou o marido e correu por outros deuses. As suas erradas opções resultaram na invasão por tropas estrangeiras, na derrota e na devastação. O Templo, o lugar onde Javé residia, foi destruído e Deus afastou-Se da cidade; e os habitantes de Jerusalém foram levados para o cativeiro na Babilónia.  

Todavia, Jerusalém não ficou abandonada. O profeta anuncia que Deus vai desposar a sua amada Jerusalém. Não é uma reconciliação entre marido e esposa desavindos, mas são novas núpcias, é algo novo. O amor sempre fiel de Deus mantém-se e regenera a sua amada. Jerusalém, transformada e recriada por esse amor, será totalmente outra, uma “mulher” nova que terá novo nome, dado pelo seu amado. A noiva de Deus, bela e intensamente amada por Deus, será “coroa esplendorosa”, “diadema real” que brilha nas mãos do rei / Deus. Jamais será vista como mulher “abandonada”, triste e desolada para se apresentar aos olhos de todos como jovem noiva, cheia de frescura e de encanto, a quem chamarão “predileta” de Deus, “desposada” com Deus. As faltas de Jerusalém não se repetirão; Jerusalém, a jovem esposa cheia de encanto que Deus ama com amor incondicional, será a alegria do seu marido. É bela esta nota sobre a alegria de Deus quando encontra, em nós, o acolhimento do seu amor e da sua oferta de comunhão.

À nossa falta empobrecedora, Deus responde com a enriquecedora superabundância do dom, da graça, do amor, não para a aprisionarmos, mas para a partilharmos no dinamismo da fraternidade, porque a relação amorosa de Deus é com a comunidade e com cada pessoa na comunidade.

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Evangelho (Jo 2,1-11) faz-nos ver Jesus no cenário da festa de casamento de um jovem casal de Caná da Galileia, onde apresenta o programa que se propõe concretizar: trazer à relação entre Deus e os homens o “vinho bom”, o vinho da alegria e do amor. Desta oferta de Jesus, ilustrada pelas suas palavras, consolidada com os seus gestos e realizada no seu amor até ao extremo, nascerá a comunidade da nova aliança, que vive e testemunha o amor de e a Deus.

O Papa acentua que este Evangelho nos fala do primeiro sinal de Jesus: a conversão da água em vinho, numas bodas, em Caná da Galileia. É um episódio que antecipa e sintetiza toda a missão de Jesus: no dia da vinda do Messias – como disseram os profetas – “o Senhor preparará um banquete de vinhos excelentes” (Is 25,6) e “as montanhas destilarão o vinho novo” (Am 9,13). Ora, Jesus é o Esposo que traz o “vinho novo”.

Torna-se evidente o binómio “falta” e “superabundância”. Faltou o vinho e Maria disse ao Filho: “Não têm vinho!” A falta atinge as pessoas, as comunidades. Porém (recordo eu), à recomendação de Maria, face à resposta aparentemente desconcertante de Jesus, aos serventes “Fazei tudo o que Ele vos disser”, Jesus intervém, mandando encher seis grandes ânforas e o vinho é tão abundante e de tão alta qualidade que o arquitriclino pergunta ao noivo porque o guardou para o final. Assim, infere o Pontífice, o nosso selo é a “falta” e sempre o selo de Deus é a “superabundância”. E a superabundância de Caná é o sinal de Deus. Em suma, Deus responde à falta do ser humano com a superabundância. Deus não é mesquinho. Quando dá, dá muito. Não te dá um pedacito, dá-te muito. Às nossas faltas o Senhor responde com a sua superabundância.

No banquete da nossa vida, às vezes, sentimos que falta o vinho: faltam forças e muitas coisas, ou seja, afligem-nos as preocupações, assaltam-nos os temores e as forças perturbadoras do mal tiram-nos o sabor da vida, a ebriedade da alegria e o sabor da esperança. Prestemos atenção: ante a falta, o Senhor dá a superabundância. Parece contradição: quanta mais falta há em nós, mais superabundância há da parte do Senhor, porque Ele quer fazer connosco a festa que não terá fim.  

É claro que Francisco sabe que as duas últimas frases conhecidas de Maria nos Evangelhos são: “Não têm vinho!” “Fazei tudo o que Ele vos disser!” – ambas em prol da comunidade e de alto valor, como o casamento. Talvez também por isso o Papa nos esteja a recomendar que rezemos à Virgem Maria, para que Ela, a “Mulher do vinho novo” interceda por nós e, neste ano jubilar, nos ajude a redescobrir a alegria do encontro com Jesus.

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O relato de João sobre aquele casamento não se perde em pormenores: identidade dos noivos; causa da falta do vinho e razão da excecional importância dessa falha; motivo da presença de Maria e do seu interesse pelo sucesso da festa; razão da existência, naquela casa, de invulgar número de descomunais talhas de pedra para os rituais de purificação; ligação de Jesus com aquele casamento; maior protagonismo do chefe de mesa e dos serventes do que o dos noivos; e o porquê da alusão misteriosa, que ninguém entende, à sua “hora”.

Porém, é o primeiro “sinal” de Jesus: transformar água em vinho. E a falta de vinho, acidente humano, faz sobressair a superabundância de Deus no tempo do Messias. Para surgir a epifania de Jesus aos discípulos, tinha de estar presente a Mãe, como esteve na epifania aos gentios (através dos magos). E o vinho abundante e de alta qualidade é sinal da superabundância e da excelência de Deus. Depois, a Mãe é protótipo da solicitude e da perspicácia cristãs; e os serventes, que, sob a recomendação de Maria, a Mãe, fazem o que Ele manda, são, ao mesmo tempo, espelho de Jesus, que faz a vontade do Pai, e protótipo dos discípulos, que estão para servir.

Por outro lado, aquele cenário de casamento evoca uma outra realidade, que ultrapassa a simples festa nupcial de um casal; é a metáfora da “aliança” de amor entre Deus e o seu Povo.

João começa por vincar a presença da “mãe de Jesus”, de Jesus e dos discípulos. Porém, distingue entre a presença da mãe de Jesus e a de Jesus e dos discípulos. A mãe de Jesus “estava lá”, como se pertencesse à festa por direito. Faz parte da comunidade da antiga “aliança”. Representa o Israel fiel, a parte da comunidade israelita que não se conformava com a deterioração da “aliança” e esperava que o Messias viesse dar novo sentido à História de amor que unia Deus e o Povo. Em contraponto, Jesus e os discípulos são apenas “convidados” nesse casamento. Têm um papel a desempenhar, mas só integram aquela comunidade como “convidados”, pois o lugar deles é na outra comunidade, a comunidade da nova “aliança”. No entanto, Maria faz a ponte entre as duas épocas e intervém na nova realidade (acabando por deixar a antiga), com um aviso e com uma recomendação.

A mãe de Jesus, figura do Israel fiel que espera o Messias, interpela Jesus: “Eles não têm vinho!” O vinho, na cultura veterotestamentária, era sinal de alegria e de festa, bem como símbolo do amor que une esposo e esposa. Na saga da relação entre Deus e o seu Povo, a certa altura “faltou o vinho”: o Povo (a esposa) não amava Deus (o marido) e não encontrava alegria nem sentido numa relação mediatizada por rituais externos e regulada por leis estéreis. A “aliança” entre Deus e o Povo era realidade seca e vazia, compromisso formal, forçado, ritualista, onde não entrava o coração. O Povo vivia na tristeza, repetia uma série de rituais religiosos que não satisfaziam a sua sede de vida e de felicidade. Esta realidade de “aliança” estéril e falida é representada pelas “seis talhas de pedra destinadas à purificação dos judeus”, que “estavam ali” vazias, integrando o cenário. O número seis evoca a imperfeição, o incompleto; a pedra evoca as tábuas de pedra da Lei do Sinai e os corações de pedra dos Israelitas, duros e insensíveis, incapazes de amar, de que falava Ezequiel; a referência à purificação evoca os ritos e exigências da antiga Lei que revelavam um Deus suscetível, zeloso, impositivo, que guarda distâncias: ora, um Deus assim pode-se temer, mas não amar. As talhas estão “vazias”, porque todo este aparato era inútil e ineficaz: não servia para aproximar o homem de Deus, mas para o afastar desse Deus difícil e distante.

A interpelação da “mãe” provoca estranha resposta de Jesus: “Mulher, que temos nós com isso? Ainda não chegou a minha hora!” Jesus distancia-se daquela realidade: aquela aliança está morta e não é revitalizável. A obra de Jesus não se apoiará nas antigas instituições, nem na Lei de Moisés, mundo que não lhe interessa. Ele prepara-se para apresentar uma novidade radical, em rutura com as instituições velhas da religião judaica. Porém, essa novidade radical, que se inicia ali, só se manifestará plenamente na cruz, no momento em que Ele der a vida até ao extremo e fizer nascer, do seu sangue derramado, o Homem novo, capaz de amar a Deus e os irmãos. Essa será a “hora” de Jesus, a “hora” em que nascerá a comunidade da nova “aliança”.

João põe a mãe de Jesus a intervir outra vez. Ela dirige-se aos “serventes” e diz-lhes: “fazei tudo o que Ele vos disser”. A frase reproduz a dita pelo Povo no Sinai, no contexto da celebração da velha “aliança”: “Tudo o que o Senhor disse, nós o faremos” (Ex 19,8). Aqueles “serventes” são os colaboradores do Messias na obra que Ele vai realizar. A “mãe” propõe-lhes que trabalhem com Ele para que a nova “aliança” seja uma realidade. E Jesus manda encher as talhas de água. Cada uma delas levava entre 80 e 120 litros.

É grandioso, excessivo o dom que Jesus Se prepara para oferecer. O gesto que Jesus vai realizar, apesar de não ter ainda chegado a sua hora, não é a concretização da nova “aliança”; é um gesto que anuncia a obra que Ele, por mandato de Deus, vai realizar: trazer à relação de Deus com os homens o “vinho novo e bom” da nova “aliança”.

Por indicação de Jesus, os “serventes” levaram o conteúdo das talhas ao “chefe da mesa”, que é o responsável pela organização do banquete e, aqui, representa os líderes judaicos que presidiam às instituições da antiga “aliança”. Não se aperceberam de que o sistema religioso a que presidem é estéril e não traz vida ao Povo de Deus. Para esta casta de privilegiados, tudo vai bem; o que interessa é manter a sua situação de privilégio.

O “chefe da mesa” provou a água transformada em vinho, mas não sabia de onde viera o vinho. Verifica a sua superioridade sobre o anterior e manifesta a sua surpresa por o vinho melhor aparecer no final. Para ele, o “vinho” velho era definitivo, não esperava nada melhor. Considera que o sistema religioso está bem como está, pelo que não manifesta qualquer interesse em saber de onde ele vem aquele “vinho” melhor. Os líderes judaicos nunca reconhecerão que Jesus trouxe o “vinho novo”, o “vinho bom” da nova “aliança”; nunca reconhecerão Jesus como o Messias que vem trazer a salvação que Israel esperava.

João termina o relato dizendo que este foi o primeiro dos “sinais” de Jesus. Com ele, Jesus “manifestou a sua glória”, como Deus tinha manifestado ao Povo a sua glória no monte Sinai, aquando da celebração da primeira “aliança”. Jesus mostrou que vinha de Deus para trazer o amor e a alegria à relação entre Deus e os homens. Ele irá, ao longo do seu ministério, realizando esse programa. A obra ficará completa na cruz (na “hora” de Jesus). Aí, mostrará aos homens a grandeza do amor de Deus e convidá-los-á a deixarem-se envolver por esse amor. Nascerá, então, a comunidade da nova “aliança”.

O gesto de Jesus em Caná tornou claro, para os discípulos, o programa que o Pai Lhe confiou. E, ao tomarem conhecimento desse projeto, creram em Jesus e dispuseram-se a segui-Lo.

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Na segunda leitura (1Cor 12,4-11), Paulo lembra aos cristãos de Corinto que os carismas, enquanto sinais do amor de Deus, se destinam ao bem de todos, ao bem comum. Não servem para uso exclusivo de alguns, nem podem ser fator de divisão ou de tensão comunitária. Na partilha comunitária dos dons de Deus manifesta-se o amor que une o Pai, o Filho e o Espírito Santo.

Assim, o apóstolo procura ajudar os Coríntios a enquadrar os carismas de forma adequada, não apenas na dimensão da vida pessoal, mas, sobretudo, no contexto comunitário. Lembra-lhes que, apesar da diversidade de dons espirituais, é o mesmo (um só) Espírito que atua em todos; apesar da diversidade de funções, é o mesmo Senhor Jesus que está presente em todos; apesar da diversidade de ações, é o mesmo Deus que age em todos. Todos os carismas, por diversos que sejam, unificam-se no mesmo Deus uno e trino. Por isso, não dividem nem podem ser usados para dividir a comunidade. Unem os membros da comunidade à volta do mesmo Deus, do mesmo Senhor Jesus, do mesmo Espírito, da mesma experiência de fé. Um suposto carisma que não seja fator de unidade é carisma falso, isto é, não é carisma, é arremedilho de carisma.

Ao mesmo tempo, Paulo garante que os dons que o Espírito concede “a cada um” são “para o bem comum”, para benefício de todos, não para regalo individual. Não podem, portanto, ser aprisionados, pelo uso para benefício próprio, para a promoção de si próprio, para melhoria da própria posição ou do próprio “ego”; são concedidos a este/a ou àquele/a para o bem de toda a comunidade e só fazem sentido enquanto são colocados ao serviço da comunidade.

Depois, o apóstolo apresenta uma lista de nove carismas: a sabedoria, que ajuda a escolher Deus e a viver de acordo com o seu desígnio; a ciência, que permite compreender as verdades da fé; a fé, que é capaz de servir de alicerce a uma vida segundo Deus; dom de curar e de levar vida nova a quem sofre; o dom de realizar gestos poderosos; o dom de falar em nome de Deus; o dom de discernir os diversos carismas; o dom de falar de forma que todos entendam; o dom de interpretar, de forma apropriada, o que foi dito de modo pouco inteligível. Tratar-se-á dos carismas mais apreciados na comunidade cristã de Corinto, mas são sempre em prol da unidade pela diversidade.

A concluir, Paulo reafirma que todos esses carismas, embora diferentes, brotam do mesmo Espírito; e é o Espírito que os distribui de forma apropriada, pois Ele sabe bem do que precisa a comunidade para a sua edificação.

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Por tantas e tão boas coisas de Deus, é bom cantar com o salmista em torno do estribilho “Anunciai, em todos os povos as maravilhas do Senhor”.

“Cantai ao Senhor um cântico novo, / cantai ao Senhor, terra inteira,

Cantai ao Senhor, bendizei o seu nome.

Anunciai dia a dia a sua salvação, / publicai entre as nações a sua glória,

Em todos os povos as suas maravilhas.

Dai, ó Senhor, ó família dos povos, / dai ao Senhor glória e poder,

Dai ao Senhor a glória do seu nome.

Adorai o senhor com ornamentos sagrados, / trema diante d’Ele a terra inteira;

Dizei entre as nações: ‘O Senhor é Rei, governa os povos com equidade’.”

2025.01.19 – Louro de Carvalho

domingo, 19 de janeiro de 2025

Hamas libertou três reféns na primeira fase do cessar-fogo

 

A 19 de janeiro, dia da entrada em vigor do acordo de cessar-fogo entre Israel e o Hamas, foram entregues às autoridades israelitas, através da Cruz Vermelha Internacional (CVI), três mulheres israelitas mantidas reféns pelo Hamas, durante 15 meses (471 dias). As mães estavam à sua espera para as receberem.

O Comité Internacional da Cruz Vermelha (CICV) recebeu as reféns do Hamas, poucas horas após o início do cessar-fogo, entre Israel e o Hamas, num local de recolha combinado e que, depois, seriam (e foram) transportadas para território israelita num helicóptero das Forças de Defesa Israelita (FDI).

Os meios de comunicação social israelitas, com imagens em direto da Al Jazeera, sediada no Qatar, mostraram as três mulheres a caminhar até aos veículos da CVI, enquanto o seu comboio automóvel atravessava a cidade de Gaza, acompanhado por homens armados que usavam fitas verdes do Hamas e lutavam para proteger os carros de uma multidão indisciplinada que chegava aos milhares.

De acordo com as FDI, as três mulheres – Romi Gonen, Emily Damari e Doron Steinbrecher, que estiveram detidas em Gaza, durante 15 meses (471 dias) – foram entregues à CVI que, por sua vez, as passou às forças especiais da Israel Securities Authority (ISA). E, assim que chegassem a Telavive, seriam submetidas a exames médicos, segundo indicaram as FDI.

Emily Damari, que tem dupla nacionalidade (britânica e israelita), e Doron Steinbrecher foram capturadas por homens armados do Hamas, no kibutz de Kfar Aza, onde viviam. Damari foi baleada no momento do rapto. E Romi Gonen, de 24 anos, que foi raptada durante o Festival de Música Nova, em 7 de outubro de 2023, tentou fugir mas foi baleada enquanto era feita refém.

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Depois de terem surgido algumas dúvidas sobre se o acordo seria aprovado pelo governo israelita (Israel acusava o Hamas de fazer exigências de última hora, enquanto o Hamas dizia não perdoar a Israel todo o sofrimento infligido a Gaza), o gabinete de segurança de Israel recomendou, a 17 de janeiro, ao Conselho de Ministros a aprovação de um acordo de cessar-fogo que interromperia os combates em Gaza e trocaria dezenas de reféns detidos pelo Hamas por prisioneiros palestinianos em Israel. A recomendação foi feita “depois de examinados todos os aspetos diplomáticos” do acordo, referiu o gabinete do primeiro-ministro de Israel.

A seguir, o acordo, que tem sido adiado após vários atrasos, foi submetido à aprovação final do Conselho de Ministros. De acordo com a agência Reuters, 24 dos ministros do executivo votaram a favor e oito contra.

A aprovação surge após um atraso que provocou receios de que divergências de última hora entre o Hamas e Israel pudessem travar o acordo. Por outro lado, o primeiro-ministro israelita, Benjamin Netanyahu, enfrentou a oposição de membros da linha dura do seu governo de coligação, que ameaçaram demitir-se, devido à proposta.

Está previsto que o Supremo Tribunal de Israel ouça petições contra diferentes aspetos do acordo, mas não se espera que intervenha. 

Nos termos do acordo, o Hamas deverá libertar 33 reféns, em troca de centenas de Palestinianos detidos em Israel. No final da primeira fase, todos os reféns vivos, mulheres, crianças e idosos, detidos pelo grupo militante, deverão ser libertados.

No primeiro dia oficial do cessar-fogo, o Hamas deverá libertar três reféns, seguindo-se outros quatro no sétimo dia. Depois disso, as libertações serão semanais.

Os restantes, incluindo os soldados, deverão ser libertados numa segunda fase, que será negociada durante a primeira. O Hamas afirmou que não libertará os restantes prisioneiros, sem um cessar-fogo duradouro e uma retirada total de Israel.

A primeira fase do cessar-fogo, com início no domingo, 19 de janeiro, deverá durar seis semanas (42 dias): inclui a retirada gradual das forças israelitas do centro de Gaza e o regresso dos Palestinianos deslocados ao Norte de Gaza. Prevê-se, igualmente, que Israel liberte cerca de dois mil prisioneiros detidos nas suas prisões.

Segundo o acordo, seiscentos camiões carregados de ajuda humanitária serão autorizados a entrar em Gaza em cada dia do cessar-fogo, cinquenta deverão transportar combustível e trezentos destinam-se ao Norte da Faixa de Gaza. A Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina no Próximo Oriente (UNRWA) já anunciou que quatro mil camiões aguardam autorização para entrar ali.

Segundo o governo português, pelo menos um cidadão com nacionalidade portuguesa e dois com ligações ou eventuais ligações a Portugal, feitos reféns em Gaza desde outubro de 2023, poderiam ser libertados no dia 19. “Até este momento, com a informação disponível, temos um cidadão com nacionalidade portuguesa e dois com ligações ou eventuais ligações a Portugal confirmados na lista de reféns”, adiantara uma fonte do Ministério dos Negócios Estrangeiros (MNE) à Lusa, ressalvando que, no entanto, que estas informações estavam “sujeitas a eventual retificação”.

Na verdade, tal libertação não aconteceu no primeiro dia.

Ofer Kalderon, que tem nacionalidade portuguesa, Or Levy e Tsahi Idan, que têm eventuais ligações a Portugal, serão os três reféns em causa. Há, ainda, três homens que terão ligações a Portugal que permanecem reféns em Gaza.

No dia 15, o presidente dos Estados Unidos da América (EUA), Joe Biden, e o mediador principal, o Qatar, anunciaram as tréguas, que levaram meses de negociações meticulosas. Se for aplicado, o acordo constituirá, pelo menos, uma pausa temporária nos combates que mataram dezenas de pessoas e devastaram a Faixa de Gaza.

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Entretanto, o ministro da Segurança Nacional de Israel, Itamar Ben-Gvir, de extrema-direita, e dois outros ministros do partido religioso Poder Judaico demitiram-se.

O partido do ministro da Segurança Nacional de Israel afirma que os seus ministros apresentaram a sua demissão do governo, em oposição ao acordo de cessar-fogo em Gaza. A saída do partido Poder Judaico do governo do primeiro-ministro israelita, Benjamin Netanyahu, não faz cair a coligação, nem afeta o cessar-fogo, mas a saída de Ben-Gvir desestabiliza a coligação.

O acontecimento ocorreu pouco antes de o Hamas ter indicado os três reféns que tencionava libertar no domingo, dia 19, abrindo assim caminho para o cessar-fogo em Gaza.

Já no domingo, Israel tinha dito que não iria avançar com o cessar-fogo, uma vez que não tinha recebido os nomes dos reféns – facto que ajudou ao atraso, por horas, da vigência do cessar-fogo.

O início da vigência estava previsto para as 6h30, mas foi protelado para as 9h30.

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O cessar-fogo na Faixa de Gaza (frágil, segundo alguns) entrou em vigor e o Hamas libertou as três primeiras mulheres reféns que manteve durante os 15 meses da guerra devastadora com Israel. Vários líderes mundiais, incluindo Joe Biden, reagiram à trégua.

O ainda presidente dos EUA, Joe Biden, durante uma visita a uma igreja em North Charleston, Carolina do Sul, afirmou que “as armas em Gaza se calaram”, no âmbito de um acordo de cessar-fogo que delineou em maio.

Falando das reféns que estavam a ser libertadas ao abrigo do cessar-fogo, Joe Biden disse que tinha acabado de receber uma chamada a dizer que as três estavam a ser libertadas, acrescentando que “parecem estar de boa saúde”.

Joe Biden disse caber, agora, à administração Trump ajudar a implementar o acordo. “Fiquei satisfeito por a nossa equipa ter falado a uma só voz, nos últimos dias. Foi necessário, eficaz e sem precedentes”, afirmou Biden, acrescentando que “o sucesso vai exigir persistência e apoio contínuo aos nossos amigos, na região, e a crença na diplomacia apoiada pela dissuasão”.

O presidente eleito, Donald Trump, congratulou-se com a libertação das três reféns detidas por militantes em Gaza, no âmbito de um acordo de cessar-fogo com Israel que teve início no domingo. “Os reféns começam a sair hoje! Três jovens mulheres maravilhosas serão as primeiras”, escreveu Trump, numa publicação na plataforma de redes sociais Truth Social.

Também o presidente Conselho Europeu demonstra “alívio” com a libertação dos reféns. “É com alívio que vejo, finalmente, os primeiros reféns a serem libertados e a ajuda humanitária a entrar, à medida que o cessar-fogo entra em vigor em Gaza. O acordo traz um vislumbre de esperança muito necessário para a região. Todas as partes devem aderir ao acordo. A paz é o único caminho a seguir”, escreveu António Costa, na rede X.  

A presidente da Comissão Europeia também manifestou esperança ao ver a libertação das três reféns, no domingo, à tarde: “Romi Gonen, Emily Damari e Doron Steinbrecher são livres. Outros devem seguir-se. Ver o reencontro dos reféns com as suas famílias enche-nos o coração de esperança. Que este seja o início de um novo capítulo, para Israel e para o povo palestiniano. O cessar-fogo deve manter-se. A Europa apoiá-lo-á”, escreveu von der Leyen, na rede X.

O Papa Francisco expressou a sua gratidão pelo cessar-fogo, em Gaza, e elogiou o papel dos mediadores.

Francisco agradeceu a todos os envolvidos que trabalharam para tornar o acordo possível, rezando para que todos os reféns possam regressar a casa e abraçar, novamente, os seus entes queridos.

O Sumo Pontífice referiu que continua a rezar para que o que foi acordado “seja respeitado”.

Francisco também rezou para que a tão necessária ajuda humanitária possa chegar a Gaza, o mais rapidamente possível, e para que a comunidade internacional continue a ajudar ambas as partes a melhor promover “o diálogo, a esperança e a paz”. “Tanto os Israelitas como os Palestinianos necessitam de sinais claros de esperança: espero que as autoridades políticas de ambos, com a ajuda da comunidade internacional, possam alcançar a solução adequada para os dois Estados. Que todos possam dizer ‘sim’ ao diálogo, ‘sim’ à reconciliação, ‘sim’ à paz. E rezemos por isso: pelo diálogo, pela reconciliação e pela paz”, pode ler-se no Boletim da Sala de Imprensa da Santa Sé, de 19 de janeiro, que recolhe as palavras do Papa por ocasião da recitação do Angelus.

E o presidente francês, Emmanuel Macron, afirma que a França tenciona trabalhar com outras nações para garantir “a plena implementação” do cessar-fogo em Gaza.

Emmanuel Macron “congratula-se com o facto de o Conselho de Ministros israelita ter aprovado o acordo de cessar-fogo” e “agradece, calorosamente, aos mediadores egípcios, do Qatar e americanos que contribuíram para esse acordo”.

O seu gabinete disse que Macron falou, no dia 18, por telefone, com as famílias de dois reféns franco-israelitas ainda em cativeiro, Ofer Kalderon e Ohad Yahalomi.

O comunicado refere que as suas famílias “vivem, há 15 meses, numa angústia que toda a nação francesa partilha. ... Ohad e Ofer estão agora na primeira lista de reféns a serem libertados”.

O presidente francês afirmou que os dois fazem parte da lista de 33 reféns a libertar na primeira fase do acordo de cessar-fogo.

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Enfim, calaram-se as armas, esperamos que para sempre. Isto só revela que, se os decisores optarem pelo diálogo, em vez do conflito, a paz está sempre ao alcance de todos. Não havia necessidade de tanto sofrimento, de tanta destruição, de tantas mortes, mas são os caprichos da guerra, que deixa tudo em cacos. Oxalá que a paz dure e seja saborosa, pela reconstrução do território e pela construção de uma convivência saudável!

2025.01.19 – Louro de Carvalho

Human Rights Watch acusa vários países de violação dos direitos humanos

 

No relatório global referente a 2024, publicado a 16 de janeiro, a Human Rights Watch (HRW) acusa Israel de “limpeza étnica”, na Faixa de Gaza; descreve o “clima de medo”, imposto pela Rússia, em território ocupado da Ucrânia; denuncia o aumento do racismo na União Europeia (UE); e identifica, em Portugal, a permissão legal da esterilização forçada de mulheres portadoras de deficiência.

Tirana Hassan, diretora executiva da HRW, observou, em comunicado, que “as democracias liberais nem sempre são defensoras de confiança ​​dos direitos humanos, a nível doméstico ou no exterior”. Num ano marcado por conflitos armados e crises humanitárias, o aumento da repressão autoritária alimentou a mobilização cívica pelo Mundo, de que são exemplos os protestos contra a corrupção no Bangladesh, na Venezuela, por causa da contagem de votos, e na Coreia do Sul, pela imposição (de curta duração) da lei marcial.

Além disso, Hassan alerta que, “quando os governos falham em agir para proteger civis em grave risco, não só os abandonam à morte e ao sofrimento, mas também enfraquecem a proteção das pessoas em todo o Mundo, o que leva a uma situação em que todos saem a perder”.

Efetivamente, o relatório, de 554 páginas, aponta a deteção de violações de direitos humanos por todo o Mundo – desde a proibição de ser ouvida, fora de casa, a voz da mulher, no Afeganistão, à dissolução de 53 partidos políticos (e colocação de 54 sob vigilância), na Guiné-Conacri. E esta análise da situação de direitos humanos em mais de 100 países critica também a UE e países com proximidade diplomática com ela, como os Estados Unidos da América (EUA).

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Sobre a dicotomia entre palavras e ação, na UE, o relatório mostra que o fosso é acentuado no atinente à migração e a políticas de asilo, no combate ao racismo e na proteção do estado de direito, assim como denuncia que o pacto da migração e asilo da UE permite que países terceiros rejeitem a entrada de pessoas, com base em termos vagos, como a “instrumentalização” da migração, encorajando estados-membros a enviarem pessoas, de novo, para países onde “podem enfrentar abusos ou repulsão em cadeia”. “A UE falhou largamente em falar contra violações de direitos dos migrantes em países com que tem tais parcerias”, considera o documento, referindo-se a acordos com países, como a Líbia, a Tunísia, o Líbano, o Egito, a Mauritânia e Marrocos. A par disso, “numerosos países da UE expressaram interesse ou apoiaram medidas para colocar a responsabilidade de requerentes de asilo fora das suas fronteiras”.

A HRW sustenta que o ambiente político antes das eleições europeias foi acompanhado do “aumento da generalização do racismo, da islamofobia, da antimigração e de narrativas de extrema-direita”, no contexto da existência de quase 95 milhões de pessoas em risco de pobreza e exclusão social, e de “provas crescentes de restrições ao espaço cívico”. Em alguns países europeus, as autoridades restringiram, de forma desproporcional, la liberdade de expressão e de reunião de manifestantes pró-Palestina e climáticos.

A esterilização forçada afeta mulheres e raparigas portadoras de deficiência e é legal, pelo menos, em 12 estados-membros da UE, incluindo a Bulgária, a Dinamarca e Portugal.

Portugal é mencionado na violência contra mulheres e na violência doméstica. Há cerca de um ano, 20 associações enviaram carta aberta aos partidos concorrentes às eleições legislativas, a pedir a criminalização da esterilização forçada de pessoas portadoras de deficiência. Já em 2025, o Bloco de Esquerda (BE) pretende criminalizar a prática, como noticiou o Diário de Notícias (DN), a 4 de janeiro, tendo avançado com um projeto de lei para criminalizar a prática de “esterilização forçada de pessoas com deficiência”, sustentando que configura “uma decisão absolutamente irreversível para o resto da vida”, que incide, principalmente, sobre menores do sexo feminino. A ideia é, “seguindo práticas de vários países europeus, como a França, a Itália, a Alemanha ou a Espanha”, impedir “a esterilização forçada de pessoas com deficiência, sem garantir que existe uma forma de aferir a sua vontade”, o que passa por garantir que há “um processo clínico acompanhado por uma equipa multidisciplinar, capaz de assegurar o envolvimento da pessoa maior na tomada da decisão”.

Questionado sobre se temos registo desta prática, o bloquista José Soeiro remete para a carta aberta da associação Voz do Autista, subscrita por 20 entidades, como o movimento SOS Racismo, a ILGA Portugal ou o Núcleo Feminista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, que, por sua vez, remete para o relatório do Fórum Europeu da Deficiência.

De acordo com o documento da Voz do Autista, “os dados relativos à esterilização forçada são inexistentes, desatualizados ou não estão desagregados”, pelo que é necessária investigação para avaliar o número de pessoas submetidas a esterilização forçada, em Portugal, e o contexto onde esta prática acontece. Por isso, a associação apela “à execução do estudo nacional sobre violência contra raparigas e mulheres com deficiência, que inclui o estudo sobre as práticas de esterilização forçada, aprovado no Orçamento de Estado para 2023”.

No respeitante à esterilização voluntária, o BE entende “que se deve garantir que há equipas multidisciplinares que acompanham as pessoas com deficiência”, na tomada de uma decisão pessoal, livre e informada e que, sempre que isso for impossível, não se devem utilizar métodos de esterilização irreversíveis, mas outro tipo de método terapêutico.

A discussão em torno deste projeto de lei será ainda agendada e concretizada.

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Na “terra da liberdade”, a HRW detetou políticas fronteiriças abusivas – como a suspensão, por parte do presidente Joe Biden, do direito de imigrantes que entram pela fronteira sul, sem autorização, a pedirem asilo – que “violam as obrigações dos EUA” com o direito internacional. Também destaca a expansão de restrições aos direitos reprodutivos, as “novas ameaças” aos direitos LGBT, as restrições ao direito de voto e os abusos que, frequentemente, têm como alvo as comunidades de cor ou que nelas mais se sentem. Mais: a administração de Biden “enviou ajuda militar a governos que violaram o direito internacional, como o Egito e Israel, vendeu armas a governos autocráticos, como o da Arábia Saudita, e enviou “munições de fragmentação indiscriminadas e minas antipessoais para a Ucrânia”. Porém, há nota positiva nas sanções dos EUA, por exemplo, a responsáveis do Uganda e a líderes das Forças de Apoio Rápido do Sudão.

São antecipados problemas com a vitória de Donald Trump nas eleições presidenciais. “O seu histórico anterior no cargo e promessas de campanha explícitas geram várias preocupações sobre as ameaças que o seu segundo mandato como presidente podem colocar a um amplo leque de direitos humanos e a instituições democráticas encarregadas de os defender”, escreve a HRW.

Ao longo de 2024, as violações de direitos humanos imputados à Síria traduziram-se em detenções arbitrárias, em desaparecimentos, em insegurança generalizada. Na ótica da HRW, a queda de Bashar al-Assad assinala “uma nova oportunidade de responsabilização”. Apesar disso, grupos envolvidos na queda do governo também foram responsáveis por abusos de direitos humanos e por crimes de guerra; e as condições no país continuam a não permitir o “regresso seguro e digno” de refugiados sírios, até pela escolha de alguns países em deportar milhares de Sírios ou pela colocação em pausa dos pedidos de asilo.

Tirana Hassan defendeu que quem assumir a liderança do país deve “romper totalmente com a repressão e impunidade do passado”, pois até as autocracias de longa data podem ser muito frágeis. “Autocratas que dependem de outros governos para manter o seu regime repressivo estão sujeitos às mudanças de cálculos políticos dos seus estados parceiros”, como se vê pelo desvio de fundos da Rússia do apoio à Síria, no seguimento da invasão da Ucrânia.

Sobre o ano em que Vladimir Putin assegurou um quinto mandato, ao vencer as eleições presidenciais na Rússia, a HRW afirma que as autoridades “intensificaram a sua repressão da sociedade civil e dissidência”. De acordo com o relatório, os ataques não se limitaram à esfera política, mas foram também direcionados aos direitos reprodutivos, com pressão sobre clínicas para deixarem de realizar abortos. E, pelo menos, 44 pessoas foram alvo de condenações administrativas, por terem exibido símbolos do movimento LGBT, por exemplo, ao publicarem a bandeira arco-íris online. Foi expandida legislação e usada como ferramenta para “abafar vozes a denunciar a guerra”, para manter as restrições à liberdade de reunião do tempo da pandemia (houve 1185 detenções em manifestações), e escalou a “retórica antimigração”.

As críticas a violações de direitos humanos, por parte da Rússia, surgem também no capítulo da Ucrânia, com a HRW a dizer que as forças russas “cometeram crimes de guerra generalizados e outros abusos e mantiveram um clima de medo nas áreas da Ucrânia ocupadas pela Rússia”. Sobressaem os ataques a áreas com elevada densidade populacional, o uso de minas terrestres e de munições de fragmentação – estas últimas também usadas por forças ucranianas –, o assédio para cidadãos em zonas ocupadas pedirem passaporte russo e a rejeição de cuidados médicos adequados a pessoas detidas sob acusações por motivações políticas.

A descrição dos danos infligidos na Faixa de Gaza é acompanhada de números: 44 mil mortos (de acordo com Ministério da Saúde de Gaza), o aumento de 300% dos abortos espontâneos ou o bloqueio da entrada de 83% de apoio alimentar, a partir de setembro.Os ataques israelitas e as demolições por engenhos de combate e por escavadoras militares destruíram ou danificaram 63% dos edifícios de Gaza, tornando muita da Faixa [de Gaza] inabitável, constituindo clara limpeza étnica em algumas áreas e violando o direito dos Palestinianos a regressarem”.

Israel cometeu “crime contra a Humanidade de extermínio e genocídio”, ao vedar à população palestiniana, em Gaza, o acesso a água, privação imposta através da restrição de água canalizada, de cortes de eletricidade e de bloqueio a combustível necessário para geradores, levando ao encerramento de instalações para dessalinização e tratamento de águas.

Do lado oposto, grupos armados” na Faixa de Gaza mantinham 101 reféns e uma missão das Nações Unidas encontrou indícios de que alguns reféns foram sujeitos a violência sexual.

A HRW destaca que, ao longo de mais de uma década do presidente Xi Jinping no poder, houve um aumento da repressão na China. Aponta o dedo às ameaças a que Tibetanos e Uigures são sujeitos, bem como a restrições de liberdades em Hong Kong. Temas anteriormente tolerados ficaram fora de limites”. É o caso do desaparecimento do economista que criticou políticas económicas, num grupo privado do WeChat, ou a detenção do artista cujo trabalho criticava o legado de Mao Zedong. O controlo reforçado da informação, da parte do governo chinês, tem implicações internacionais”, pois atingiu críticos da China que se exilaram e estrangeiros no exterior. E, no atinente a Xinjiang, as palavras são duras: “O governo chinês cometeu crimes contra a Humanidade, contra uigures e outros muçulmanos turcos, como parte da abusiva ‘campanha contra o terrorismo violento. […] Houve recurso a “detenções arbitrárias, a vigilância em massa, a trabalho forçado, a perseguição religiosa e cultural e a separação de famílias.”

Em 2024, entrou em vigor uma nova Lei da Segurança Nacional, em Hong Kong, ao abrigo da qual as autoridades detiveram, pelo menos, 304 pessoas. E o ano sofreu a “continuidade do declínio da liberdade de imprensa”, a decisão da Justiça em considerar legal o bloqueio governamental da música “glória a Hong Kong” e o maior julgamento de segurança nacional na cidade, com 14 ativistas e ex-deputados condenados por “conspiração para cometer subversão”.

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Israel e a Rússia, agressores das duas guerras mais mediáticas da atualidade, promoveram crimes contra a Humanidade, ao atacarem, deliberadamente, civis e infraestruturas, como hospitais, e provocando cortes de eletricidade, falta de água e fome.

Israel matou, deixou passar fome, forçou deslocações, destruiu casas, escolas e hospitais, numa escala sem precedentes, na História recente. Vários líderes – como o primeiro-ministro e o ex-ministro da Defesa israelitas e os responsáveis militares e políticos do Hamas – têm mandados de detenção internacional por crimes de guerra e contra a Humanidade, mas continuam impunes. A par do balanço de dezenas de milhares de mortos e feridos, “quase todos os Palestinianos, em Gaza, foram deslocados à força e todos enfrentaram uma grave insegurança alimentar ou fome”.

Também a Rússia recorreu, regularmente, a ataques à rede energética, aos hospitais e à segurança da Ucrânia, além de tentar, nas áreas ocupadas, “à força e metodicamente, apagar a identidade ucraniana”, incluindo pela imposição do currículo e da língua russos nas escolas. Porém, a HRW vinca a “intensificação da repressão” interna, sobretudo, através de rótulos “punitivos e estigmatizantes” como “agente”, “indesejável” e “extremista”, que resultam em multas pesadas e em longas penas de prisão. E destaca a morte na prisão do líder da oposição Alexei Navalny, quando cumpria “uma pena draconiana”, assim como a vitória de Vladimir Putin numas eleições onde a oposição foi eliminada, tendo, em outubro, o Conselho dos Direitos Humanos da ONU assinalado “a deterioração significativa e contínua” dos direitos humanos no país.

Em 2024, Moscovo reforçou a lei de censura de guerra promulgada após a invasão da Ucrânia e permitiu o confisco de bens de pessoas condenadas sob uma série de acusações sem fundamento. E continuou a usar a legislação sobre “agentes estrangeiros” para atingir os media, os defensores dos direitos humanos e outros críticos, tendo designado 64 organizações como “indesejáveis”.

A HRW destaca o aumento dos ataques feitos pelas autoridades a migrantes da Ásia Central e a outras pessoas com aparência não eslava, bem como a retórica antimigrante e o “regime de deportação” especial para os estrangeiros que não tenham documentos de identidade válidos ou autorização para permanecer na Rússia. Tais pessoas são colocadas num registo público de “pessoas controladas”, proibidas de conduzir, de casar, de mudar de residência, sem permissão, de abrir contas bancárias ou de fazer transações financeiras, e podendo ser vigiadas digitalmente.

A HRW criticou o uso reiterado do veto russo no Conselho de Segurança da ONU para impedir a responsabilização dos seus líderes por crimes de guerra.

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Estados, como os Países Baixos, o Canadá e o Reino Unido suspenderam transferências de armas para Israel, devido ao claro risco de serem utilizadas em violações graves de direito internacional, mas os EUA aprovaram mais de 100 vendas de armas e forneceram a Israel uma quantia sem precedentes de 17,9 mil milhões de dólares em assistência de segurança.

Embora muitos governos da UE e os EUA tenham dito querer justiça pelos crimes graves cometidos pelas forças russas e pelos exageros de Israel, a responsabilização é lenta e suave.

2025.01.18 – Louro de Carvalho