De acordo com o jornal Correio da Manhã (CM), depois de ter ligado para a linha SNS24, no
dia 11 de agosto, uma mulher entrou em trabalho de parto e deu à luz na rua, em
cima de um passeio, no Carregado, uma vila do Concelho de Alenquer. Os
bombeiros, após alerta, dizem ter prestado todos os cuidados possíveis, mas,
quando chegaram, o bebé já tinha nascido. O Ministério da Saúde (MS) pretende que
a Inspeção-Geral de Atividades em Saúde (IGAS) investigue o que se passou. E a
Ordem dos Médicos (OM) classificou a situação de “inadmissível” e
considerou “fundamental” perceber em que circunstâncias ela ocorreu”.
António Carapeto, inspetor-geral das Atividades em
Saúde, já determinou o procedimento investigativo para apurar os factos
relativos à assistência prestada pela Linha SNS24 e pelo Centro de Orientação
de Doentes Urgentes (CODU), no momento da ocorrência, bem como à assistência
prestada pela Unidade Local de Saúde do Estuário do Tejo à grávida, durante o
percurso.
Recorde-se que, de acordo com as
medidas aplicadas pelo governo, a Linha SNS24 é a principal porta de entrada no
acesso dos cuidados às grávidas e aos utentes em geral. São muitas as mensagens
e os apelos feitos pelos governantes para que os utentes liguem, antes de se dirigirem,
a uma urgência. O slogan é mesmo: “Ligue
Antes, Salve Vidas.”
Além do processo de inquérito aberto pela IGAS, também
os Serviços Partilhados do Ministério da Saúde (SPMS), que tem a seu cargo a
gestão da linha SNS24, “abriu uma
averiguação interna, a fim de aferir o sucedido”.
Segundo declarações da mãe da grávida à RTP, a mulher de 28 anos e sem um rim,
sendo à partida uma situação de gravidez de risco, e com uma gravidez já de 40
semanas e cinco dias, terá entrado em trabalho de parto, quando estava na rua,
e fez uma chamada para a linha SNS24, que lhe terá dito para se deslocar a um
hospital, pelos próprios meios, não acionando o CODU. “Liguei para saúde 24,
disseram que o hospital para onde ela [filha] ia era o Beatriz Ângelo, em
Loures. Perguntei se não devia ir
de ambulância, porque ela estava aos gritos, mas o SNS24 disse que não, para ir
de carro. Fiquei um bocado aflita”, disse Isabel Moreira, avó da bebé,
ao relatar os acontecimentos.
Foi, então, segundo o Expresso, que a mãe da grávida ligou para o 112, mas, quando os
bombeiros chegaram ao local, o bebé já tinha nascido com a ajuda da avó e do
avô da criança. “Fizemos o parto
da melhor forma que soubemos. Graças a Deus, correu bem, mas podia ter corrido
muito mal”, disse a mãe da grávida, relatando ainda que a filha acabou
por ter assistência de uma enfermeira e de um médico que estavam perto do
local. A mulher foi, depois,
transferida para o Hospital de Santarém, onde ficou internada. Segundo a família, bebé e
criança estão bem. Porém,
antes, houve um novo percalço. A
ambulância teve um furo no pneu e precisaram de chamar outra ambulância.
No total, a mãe da grávida aponta para cerca de 45 minutos de espera, até a
filha ser encaminhada para o hospital, já com a sua bebé.
Entretanto, os Bombeiros Voluntários (BV) de Alenquer
divulgaram a fita do tempo, que mostra que o primeiro alerta veio de um
operacional daquela associação às 10h28 e, um minuto depois, foi acionada uma
ambulância para o local. Só depois disto, às 10h30, receberam o contacto do
CODU, feito após a chamada da mãe da grávida.
Os bombeiros chegaram ao local às 10h38, já o bebé
tinha nascido, há seis minutos. E, devido a um “problema técnico” com a
primeira ambulância, foi acionada uma segunda, às 10h44, que chegou 11 minutos
depois. Nesse compasso de espera, os bombeiros fizeram um “contacto com CODU
Lisboa, para orientação e encaminhamento hospitalar, visto o serviço de Ginecologia
e Obstetrícia do Hospital de Vila Franca de Xira estar encerrado”. Só meia hora depois, chegou a Viatura Médica de Emergência e
Reanimação (VMER) de
Torres Vedras que tem na sua equipa pessoal médico e que, então, assistiu a
mulher e o recém-nascido, acompanhando o transporte para o Hospital de Santarém.
A mãe e o bebé chegaram ao hospital às 12h06, uma hora e meia depois do
primeiro alerta para os bombeiros.
Os bombeiros de Alenquer dizem que o caso foi “acompanhado
pelas equipas competentes, que prestaram toda a assistência necessária à
gestante e ao recém-nascido, garantindo segurança e atendimento adequado
durante todo o processo”. No entanto, de facto, quando lá chegaram, o bebé já
tinha nascido, na rua.
De acordo com o CM e com o Diário de Notícias (DN),
Soraia, a grávida, estava a ser seguida no centro de saúde de Alenquer, mas
tinha pedido para ser acompanhada na Maternidade Alfredo da Costa, em Lisboa, o
que lhe terá sido recusado. “A médica ligou à minha filha, há umas duas
semanas, a dizer que o pedido tinha sido recusado, que não sabia o que fazer,
porque tinha muitas grávidas em fim de gestação e não tinha para onde as
mandar. Os serviços ou estão fechados ou a recusar mais grávidas”, indicou Isabel
Moreira.
Segundo o DN, que contactou o gabinete de comunicação do Instituto Nacional de
Emergência Médica (INEM) para saber o que teria acontecido e se esta entidade
iria abrir um inquérito, a resposta indica a linha do tempo da situação: “A Central 112
encaminhou a chamada de socorro, tendo a mesma sido atendida pelo Centro de
Orientação de Doentes Urgentes (CODU), às 10h29. Durante a triagem da situação,
foi possível perceber que o parto já teria ocorrido. O CODU ativou, para o
local, uma ambulância dos BV Alenquer, às 10h33, e a Viatura Médica de
Emergência e Reanimação (VMER) de Torres Vedras, às 10h37, dado que a VMER
de Vila Franca de Xira estava empenhada noutra ocorrência. E, às 10h46, depois
de prestar os primeiros cuidados, a tripulação da ambulância contactou o CODU
para transmissão dos dados clínicos, acabando a mãe e a bebé [por terem] sido
transportadas para o Hospital de Santarém, com acompanhamento do médico da VMER.”
Também a OM decidiu pronunciar-se, publicamente, sobre
o assunto. O bastonário, Carlos Cortes, classificou a situação de “inadmissível” e
considerou “fundamental” perceber, “exatamente, em que circunstâncias ocorreu”.
“O propósito da Ordem dos Médicos é garantir que, no futuro, situações
semelhantes possam ser prevenidas. Para
isso, é indispensável conhecer todos os factos e circunstâncias que estiveram
na sua origem”, lê-se no comunicado de imprensa enviado às redações.
A OM avança ainda que já foram “solicitados esclarecimentos” ao MS, à
Direção-Executiva do Serviço Nacional de Saúde (DE-SNS) e ao INEM, para “apurar,
em detalhe, as circunstâncias que conduziram a este desfecho e de avaliar
eventuais falhas ou necessidades de melhoria no acesso e na capacidade de
resposta da linha SNS 24 e dos serviços de saúde”.
A entidade que regula a prática médica em Portugal
relembra que a “segurança e a dignidade das pessoas, das grávidas e [dos] seus
filhos” têm de estar sempre em primeiro lugar e compromete-se em “promover soluções”
que garantam cuidados seguros e atempados, de forma a prevenir que “ocorrências
desta natureza se repitam, independentemente das causas”.
***
A mulher grávida que teve o bebé na rua, no Carregado, ligou para
a Linha SNS Grávida às 10h16 de 11 de agosto, relatando que estava com
contrações de três em três minutos acompanhadas de dores na zona lombar, como apurou
o Expresso.
Nestes casos, com contrações com intervalos iguais ou inferiores a
cinco minutos a grávida tem de ser enviada para um hospital com urgência de Obstetrícia
pelos serviços de emergência médica. Por isso, quando ligou para o SNS24 com
este relato, o que deveria ter acontecido era um encaminhamento da linha para o
CODU. Porém, a mulher foi aconselhada a deslocar-se pelos seus próprios meios
para o Hospital Beatriz Ângelo, a cerca de 30 quilómetros de carro do Carregado,
onde se encontrava.
Apesar de o Expresso ter
enviado perguntas à SPMS, entidade que gere a linha, acerca desta informação
prestada pela grávida, no momento do contacto, não obteve resposta, mas,
entretanto, num comunicado, a SPMS aponta um erro humano: “De acordo com
averiguação preliminar solicitada pela SPMS ao operador privado da Linha SNS
24, existiu um erro humano na aplicação do algoritmo de triagem e no
encaminhamento, levando a que a chamada não tivesse sido transferida para o
INEM – Instituto Nacional de Emergência Médica.”
“A SPMS solicitou uma averiguação ao operador privado do SNS 24, a
fim de aferir o sucedido na chamada para a Linha SNS 24 da utente grávida do
Carregado. Auditado o sistema da Linha SNS 24, regista-se uma chamada da utente
para a opção ‘Linha SNS Grávida’, às 10h16, de 11 de agosto de 2025. A chamada
foi atendida, por um enfermeiro, no espaço de 17 segundos. O processo de
triagem durou cerca de 4 [quatro] minutos, tendo a utente sido encaminhada para
um Serviço de Urgência Obstétrico. Naquele momento, e para a área de
abrangência geográfica, o prestador de saúde disponível no sistema de
informação era o Hospital Beatriz Ângelo – Loures”, revela a SPMS.
Perante um caso de contrações com intervalos de três minutos, a
resposta prevista é direta e precisa, mas, por alguma razão, o que foi dito à
mulher foi que se encaminhasse pelos seus próprios meios para o Hospital
Beatriz Ângelo, em Loures, que fica sensivelmente a meia hora de distância de
carro do Carregado.
O médico Caldas Afonso,
responsável pelo grupo que redesenhou o atendimento urgente em Ginecologia e Obstetrícia
e que criou este modelo em que as grávidas são instadas a ligar para a
linha SNS24, antes de se dirigirem a qualquer urgência, mostra-se perplexo
com o sucedido. “A ser verdade esta informação, que também me foi transmitida [de que
a mulher relatou contrações de três em três minutos], há aqui uma má
interpretação dos fluxos”, diz Caldas Afonso vincando que, “se a linha não
funcionar bem, põe tudo em causa” e que se está a matar “a galinha dos ovos de ouro”.
Considerando
impossível fazer qualquer reforma, quando o serviço onde tudo começa não tem a
confiança necessária, o médico apela à ministra da Saúde, sustentando que ela “tem
de tomar uma decisão” e que, a confirmar-se
o que aconteceu, “não tem condições
para não demitir os responsáveis pela
Linha SNS24”. Já quanto a mais responsabilidades de Ana Paula Martins,
aduz que a governante “não está no gabinete a ler os algoritmos da linha”.
O presidente
da comissão criada para reorganizar as urgências obstétricas esclarece
que a sua equipa esteve sempre disponível um acompanhamento, mais de perto,
junto dos profissionais da linha SNS Grávida, e que se disponibilizou para dar
mais formação aos técnicos, mas eles não a quiseram. Por isso, o responsável
pela linha não tem condições para continuar.
***
Falta
saber a que conclusões vai chegar a IGAS, o que levará o seu tempo. Ora, dificilmente
deduzirá apuramento inequívoco de responsabilidades, dado que o erro humano
será facilmente justificável e a multiplicidade de intervenientes torna mais
complexo o apuramento dos factos.
Porém,
a verdade é só uma e os governos não a assumem e, por mais propaganda que o
atual governo faça do ótimo estado do SNS, os sintomas mostram que está cada
vez pior. A comunicação social, que pode não ser exata na revelação dos factos (os
meios são escassos e a pressa de informar urge), não inventa (a não ser que a grávida
“deu à luz no meio da rua” – o que era impossível –, mas isso ocorreu no
passeio). E, muito frequentemente, traz ao de cima notícias de falhas (algumas
graves) no SNS, no INEM, na linha SNS24, nas urgências, nos centros de saúde,
nas consultas e cirurgias over booking.
Está
visto. O país está cada vez mais envelhecido e com gente cada vez mais doente (em
doenças e em número de doentes – e muitos pouco pacientes). Por isso, os
governos têm de fazer escolhas. Ou robustecem o SNS, com quadros de pessoal suficiente
e com instalações para dar resposta a todos ou aceitam que os prestadores
privados (que servem, em função da fatura, quem tem dinheiro, por si ou com
seguros de saúde) se apoderem do sistema de saúde. Para tanto, a carreira de
médicos do SNS tem de ser atraente e bem remunerada, tal como a dos enfermeiros
e as dos demais trabalhadores do SNS, nomeadamente, dos auxiliares de saúde, os
que estão em contacto com o doente, durante mais tempo.
Não
pode continuar a transferência massiva de médios e de enfermeiros, formados pelo
sistema de ensino público português, para o estrangeiro e para o setor privado;
não pode continuar o espetáculo de encerramento de urgências; não pode continuar
o recurso do SNS aos privados, cujo principal escopo é o lucro; embora as horas
extraordinárias seja uma inevitabilidade, tal como o recurso a médicos e enfermeiros
não pertencentes aos quadros, não pode continuar a ser um recurso useiro e vezeiro;
e não podemos estar dependentes da boa vontade de quem encontramos na Unidades
Locais de Saúde (graças a Deus, ainda lá trabalham muito boas pessoas).
É
necessário criar mecanismos de agilidade, de eficácia e de prioridades.
Contudo, deve existir a noção de que não são infalíveis. E, quando há falha,
não se pode tapar o Sol com a peneira.
Haver
um caso de suspeita de AVC em frente de um hospital e, para este prestar o
atendimento ao doentes, ter de se ligar ao 112, não lembraria ao diabo. Chegar
uma pessoa em estado crítico a um hospital e obrigá-la a telefonar para a linha
SNS24 pode ser desumano. Obrigar grávidas e crianças a correr Ceca e Meca é
pior que na Idade Média.
Aliás,
é de questionar o motivo por que o Estado gasta rios de dinheiro em horas
extraordinárias, no regime de tarefeiros e no recurso a privados. Não fica
mesmo mais caro? Porque não investe em pessoal dos quadros? É a União Europeia (UE)
que manda a contenção nas despesas fixas e a liberalidade nas despesas extra?
Então que mande bem. Aliás, o que é a UE? É o Parlamento, a Comissão, o Conselho,
o Tribunal de Justiça?
A
UE e os governos não podem continuar a defraudar os direitos e as necessidades
dos cidadãos.
2025.08.12 – Louro de Carvalho
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