sexta-feira, 15 de agosto de 2025

Praga incendiária não cessa de fazer estragos

 

Estamos em pleno verão e há incêndios florestais e agrícolas por todo o lado, em Portugal, aliás como em vários países do Sul da Europa.
Eclodem grandes incêndios e surgem novas ignições, de dia e de noite, o que dificulta as operações de rescaldo. Quando o incêndio fica controlado, grande parte dos meios são retirados para outras ocorrências e não se consegue garantir que alguém fique para trás a vigiar o terreno, pois os meios humanos são insuficientes e não aguentam, e os meios logísticos (viaturas, helicópteros, aviões, etc.) são sempre escassos. E é preciso socorrer os bombeiros e outros agentes que ficam feridos.
A nossa floresta é, maioritariamente, constituída por espécies resinosas, com extensas manchas de pinheiro bravo ou de eucalipto, bem como de acácias, além da existência de largas zonas de mato rasteiro e arbustivo. A acrescentar à constituição da floresta e a agravar o combate às labaredas, junta-se o excesso de material combustível nas matas e florestas que está na origem dos grandes fogos registados, desde o princípio do mês de agosto e que seria de queimar aquando do advento das primeiras chuvas.
Depois, não é fácil separar totalmente um fogo florestal de um fogo agrícola, porque, não raro, áreas agrícolas incultas coexistem com áreas florestais. E, nestas, é difícil separar a mata da moita e, para complicar, abunda o material rasteiro e arbustivo.
Um grande elemento potenciador do fogo florestal é o excesso de calor, que tem, nos últimos anos ultrapassado as marcas tradicionais. Como todos sabemos, para haver incêndio, têm de conjugar-se três fatores: comburente (oxigénio), combustível e calor (secundado pela crassa falta de humidade). A estes junta-se o vento que, mudando, repentinamente de direção, pode descontrolar o combate, fazer alastrar a frente de incêndio e criar novas frentes.       
“O grande paradoxo reside na redução do número de ignições, que deixaram muito material combustível nas florestas. Quando esta massa ultrapassa 10 toneladas, os fogos tornam-se numa terrível espera entre proteger bens e pessoas e encontrar uma janela para extinguir o fogo”, considera Abílio Pereira Pacheco, investigador da Universidade do Porto, alertando que “a proteção civil tem sido o grande desígnio, que é comprometido pela gestão florestal que falha”, pelo que “é preciso começar a reduzir a massa florestal com o uso de fogo técnico já no outono”.
E lembra que o país “passou de 30 mil ignições, em 2010, para uma média de nove mil fogos, por ano, o que foi brilhante, mas permitiu aumento do combustível florestal que está na origem dos grandes fogos”.
José Martino, agrónomo e produtor florestal, diz que é preciso “respeitar os ecossistemas de elevado valor natural e usar o fogo técnico para queimar, pelo menos, 600 mil hectares”.
Vila Real arde há duas semanas. Celorico de Basto, Terras de Bouro, Moimenta da Beira (onde houve um tornado de fogo, a 8 de agosto) e Trancoso levam mais de uma semana de atividade. Arouca, Cinfães, Oliveira de Azeméis, Arganil, Oliveira do Hospital, a Serra da Lousã, com Pedrogão, Castanheira de Pera, Coimbra, Sernancelhe, Aguiar da Beira, Sátão e Vila Nova de Paiva enchem os noticiários das rádios e as reportagens dos diversos canais de televisão. Estão em risco povoações, casas, carros, instrumentos agrícolas e pessoas. E há zonas de incêndio aonde nenhum meio de socorro acede, ficando o combate entregue a populares e à sua intuição.
No Gerês, o incêndio em Arcos de Valdevez foi controlado com recurso a equipas locais experientes, que utilizaram bulldozers, ferramentas manuais e conhecimento do terreno. “São os primeiros a chegar e os últimos a sair, mal pagos e, muitas vezes, com mais chefes do que meios”, sublinha o investigador espanhol Juan Picos Martín.
Houve aldeias evacuadas, nomeadamente, Piódão e outas aldeias de xisto; e, em outros países do Sul da Europa há milhares de pessoas deslocadas e já se registam mortes.       
Muitos dos meios envolvidos nestes fogos foram deslocados para novas ignições, para “fogos nascentes, que, se não forem resolvidos e consolidados, em tempo útil, originam o aumento rápido dos perímetros e da área ardida”, de acordo Pereira Pacheco, que reforça: “Os outros fogos ficaram desfalcados de meios e é preciso que quem começa o trabalho o acabe, porque sabe onde estão os pontos quentes.” Isto é, segundo o investigador, são necessárias forças “a combater o fogo, defendendo pes­soas e casas; e, no final, os operacionais deviam ficar no terreno a consolidar o rescaldo”.
Ficam no terreno, mas, como alerta Paulo Fernandes, do Laboratório do Fogo da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD), “não há reforço de rescaldo, não o fazem por displicência e ninguém responde, porque não há consequências”. A proteção civil não explicou como decorrem as operações pós-fogo, mas supõe-se que decorrem de forma precária, visto que o pessoal fica exausto, os meios são escassos e as ignições sucedem-se.
Todavia, segundo Pereira Pacheco, “há incêndios que não podemos apagar, indiscriminadamente, há ecossistemas que precisam do fogo, para diminuir a carga combustível”. E esse é um dos problemas: “Em muitos locais, há 30 toneladas de combustível, por hectare, quando sabemos que, a partir de 10 toneladas, os fogos não se conseguem combater, até que seja criada uma janela de oportunidade, meteorológica ou com abertura de aceiros”, observa o investigador.
José Martino defende a criação de “blocos sem massa combustível, para que, quando arder um bloco com material lenhoso, o fogo possa ser combatido pelos bombeiros e parado em segurança”
Nuno Delicado, oficial bombeiro, sustenta que são estes mosaicos que permitem travar os grandes fogos. E Paulo Fernandes considera que o fogo tático, ou contrafogo, “é excelente para consolidar perímetros entre o queimado e as estradas ou linhas de ferramenta manual ou bulldozer”.

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Nos primeiros 14 dias de agosto, a área perdida, em Portugal, já ultrapassou a do mês de julho inteiro. No total, de acordo com dados provisórios do Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF), Portugal registou uma área ardida acumulada de 74931 hectares. Em 2025, a soma dos incêndios de julho e de agosto representa 90% da área total ardida, tendo sido, em julho, consumidos 29472 hectares e, em agosto, até à data, 37827 hectares, o valor mais elevado do ano até agora. Nos restantes meses do ano, a área ardida acumulada foi de 7632 hectares, o equivalente a 10,2% do total anual. No total, registaram-se 5996 ocorrências, desde o início do ano.
A distribuição da área ardida, por tipo de ocupação do solo, corresponde 50% a matos, 40% a povoamentos florestais e 10% a áreas agrícolas.
Em comparação com os anos anteriores, 2025 já apresenta uma área ardida superior à registada em 2023 (27756 hectares) e em 2024 (7477 hectares), sendo, atualmente, o terceiro pior ano da última década, apenas atrás de 2022 (91428 hectares) e de 2017 (200894 hectares).
Em 2017, Portugal foi atingido por vários incêndios de grande dimensão, nomeadamente, o de Pedrógão Grande e de concelhos limítrofes, e os de Viseu, Vouzela e Oliveira de Frades.
A maioria dos incêndios ocorre em dias de perigo meteorológico elevado ou superior. Cerca de 31% das ignições registaram-se em dias de risco “muito elevado”, 26% em dias de risco “máximo” e 6% em dias de risco “extremo”. Apenas 1% ocorreu em dias classificados como de risco “excecional”.

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É recorrente a ideia de que os incêndios florestais, no verão, são causados por trovoadas secas ou por outros fenómenos meteorológicos, como a incidência de raios solares sobre material transparente, designadamente, vidro ou plástico, perdido nas matas. No entanto, isto não explica as deflagrações em tempo em que não há trovoada, nem as que ocorrem durante a noite.  
A conclusão mais consensual é que o fator humano é determinante na maioria dos casos.
Assim, o Relatório de Atividades do SGIFR (Sistema de Gestão Integrada de Fogos Rurais) conclui que 2024 registou o menor número de incêndios, desde que há registo, embora tenham ardido cerca de 138 mil hectares, com um impacto estimado de 67 milhões de euros em perdas florestais. Porém, as estatísticas oficiais da Agência para a Gestão Integrada de Fogos Rurais (AGIF), baseadas nas causas apuradas pelos órgãos competentes, revelam que “as ações de incendiarismo foram responsáveis por 84 % da área ardida com causa conhecida”.
O Relatório do Estado do Ambiente de 2022, da Agência Portuguesa do Ambiente (APA), conclui que, nesse ano, houve 10 390 incêndios rurais, tendo sido investigados 10052, dos quais 6287 tiveram causa atribuída. As causas mais frequentes foram o incendiarismo (28 %) e as queimadas agrícolas ou florestais (19 %), representando, juntas, 47 % das causas apuradas. O fogo posto (incendiarismo) ultrapassou, frequentemente, os 20-30 % dos incêndios apurados.
Já o portal Florestas.pt, referindo dados do ICNF, sustenta que cerca de 80 % dos incêndios rurais têm causa apurada, e entre essas, predominam a negligência ou uso indevido do fogo, bem como o incendiarismo. A negligência (incluindo queimadas fora do controlo) corresponde a cerca de 50‑60 % dos incêndios, enquanto o incêndio doloso representa entre 20‑30 % das ocorrências, mas provocando entre 40‑50 % da área ardida.
Também a Guarda Nacional Republica (GNR), através do seu Serviço de Proteção da Natureza e do Ambiente (SEPNA), investiga as causas dos incêndios florestais, analisando padrões de comportamento do fogo e indicadores – um trabalho é crucial para identificar as causas e para prevenir futuros incêndios. Ora, segundo a GNR, as causas mais comuns de incêndios florestais incluem negligência, como a queima descontrolada de restos de vegetação e fogueiras, o incendiarismo e atividades, como a utilização de máquinas que geram faíscas e o lançamento descuidado de pontas de cigarro. 
Nestes termos, as causas mais frequentes apontadas pela GNR/SEPNA, são:
* O incendiarismo, ou seja, atos intencionais de colocar fogo, muitas vezes, por motivos desconhecidos ou com objetivos criminosos; 
* As queimadas e as queimas, isto é, a queima de restos de vegetação (sobrantes florestais ou agrícolas) e as fogueiras mal controladas, que podem facilmente alastrar; 
* A negligência, caraterizada por ações humanas descuidadas, que podem dar origem a incêndios, como atirar pontas de cigarro ou abandonar fogueiras mal apagadas; 
* As fagulhas de máquinas, ou seja, faíscas produzidas por máquinas, como locomotivas ou equipamentos agrícolas, especialmente, quando utilizadas em áreas secas. 
Joana Parente, investigadora no Centro de Investigação e Tecnologias Agroambientais e Biológicas da UTAD, num estudo pulicado em 2018, concluiu que cerca de 99 % das ignições com causa conhecida são resultantes de atividade humana, sejam negligentes ou intencionais, com menos de 1 % atribuível a causas naturais, como trovoadas.
Uma pesquisa liderada pelo historiador e engenheiro ambiental Miguel Carmo, sobre os incêndios, em Portugal, entre 1980 e 2018, publicada, em 2022, no International Journal of Climatology, conclui que os meses de julho a setembro concentram 81,3 % da área ardida e que o aquecimento, secas e défice de pressão de vapor potencializam o risco, mas não são causas diretas das ignições. Com efeito, a maioria dos fogos iniciais resulta da ação humana combinada com vegetação acumulada e com o abandono rural.
Em 2024, um estudo do CESAM – Centro de Estudos do Ambiente e do Mar da Universidade de Aveiro, baseado em dados do ICNF, entre 2001 e 2022, mostra que mais de 60 % das ignições humano-causadas ocorrem em zonas onde a probabilidade humana excede os 70 %, sobretudo, em áreas florestais próximas de vias rurais ou de zonas residenciais, confirmando-se que a distribuição espacial das ignições está correlacionada com a atividade humana.
Ou seja, a maioria dos incêndios florestais, no verão, não são causados por fenómenos naturais em termos de ignição. O calor, vento e vegetação seca funcionam como propulsores do fogo, mas a sua origem é quase sempre humana – por negligência ou intencionalmente, tal como o comprovam os dados oficiais e os estudos académicos.
Por isso, a conscientização e a adoção de práticas responsáveis são fundamentais para a prevenção de incêndios. Por outro lado, a vigilância e a dissuasão do crime e da negligência são necessárias, por parte das autoridades e dos cidadãos. Isto, sem falar do reordenamento florestal e agrícola.

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Não se compreende como o governo demora a ativar o Mecanismo Europeu de Proteção Civil. Todavia, como revelou a Euronews, a 15 de agosto, Portugal ativou-o, para solicitar o apoio de aviões Canadair, até ao dia 16. A decisão foi tomada, devido às dificuldades em controlar as chamas, na madrugada de 14 para 15, de acordo com o anúncio, ao início da tarde, do comandante da Autoridade Nacional de Emergência e Proteção Civil (ANEPC), Mário Silvestre, que indicou, sobretudo, as dificuldades em controlar as chamas na Lousã.

A mesma Euronews referia, no dia 14, que os incêndios florestais se intensificaram, em todo o Sul da Europa, no dia 13, com uma batalha ininterrupta para proteger a terceira maior cidade da Grécia e com, pelo menos, três mortes na Espanha, na Turquia e Albânia.

Nos arredores da cidade grega de Patras, os bombeiros lutavam para proteger casas e instalações agrícolas, enquanto as chamas devastavam florestas de pinheiros e olivais. Altas colunas de chamas subiam atrás de blocos de apartamentos e dezenas de veículos incendiavam-se, quando as chamas varriam um pátio. Pelo menos, 15 bombeiros foram hospitalizados ou foram tratados por queimaduras, inalação de fumo ou exaustão.

Os recursos ficaram esgotados em muitos países, que lutam contra vários fogos, após semanas de ondas de calor e de picos de temperatura, em toda a região mediterrânica. Na ilha grega de Chios, bombeiros exaustos dormiam à beira da estrada, após um turno que durou toda a noite. Moradores de quatro aldeias foram retirados no centro da Albânia, perto de um depósito de munições. No distrito de Korca, no Sul, perto da fronteira com a Grécia, houve explosões de projéteis de artilharia enterrados da I Guerra Mundial. Na Turquia, um trabalhador florestal morreu, enquanto respondia a um incêndio florestal numa região do Sul. E a autoridades policiais da Macedónia do Norte citaram indícios de incêndio criminoso, por promotores imobiliários desonestos.

O primeiro-ministro espanhol, Pedro Sánchez, expressou as suas condolências após a morte de um bombeiro voluntário na região de Castela e Leão, a Norte da capital, Madrid, onde milhares de pessoas tiveram de abandonar as suas casas.

A União Europeia (UE) enviou ajuda aos países atingidos pelos incêndios, incluindo países não membros, com equipas terrestres e aeronaves para lançamento de água, pois as catástrofes naturais não escolhem território.

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Até quando teremos de conviver com a praga incendiária? Se este for o novo normal, não serve.

2025.08.15 – Louro de Carvalho

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