Assim, de acordo com a BBC News, pela primeira vez, a fome foi oficialmente confirmada em Gaza, segundo um relatório do Integrated Food Security Phase Classification (IPC) – em Português, Quadro Integrado de Classificação da Segurança Alimentar –, mecanismo apoiado por agências da ONU, por organizações humanitárias e por governos, que monitoriza a segurança alimentar a nível global.
De acordo com
um relatório tornado público, durante uma conferência de imprensa, em Genebra,
cerca de 500 mil pessoas (há quem fale em 641 mil) encontram-se em situação catastrófica.
As condições
no Norte de Gaza são consideradas tão graves como na cidade de Gaza, ou até
piores. Todavia, a falta de dados impediu qualquer classificação segundo a
escala IPC, pelo que é sublinhada a urgência de acesso a informação.
Israel está a bloquear a entrada da maior parte da ajuda humanitária da ONU e dos seus parceiros, tendo confiado a distribuição de alimentos à Gaza Relief Foundation, uma organização israelo-americana, muito criticada pelas suas práticas. Desde julho, as entregas de alimentos e a ajuda humanitária, em Gaza, aumentaram ligeiramente, mas continuam muito insuficientes, irregulares e inacessíveis, face às necessidades existentes.
De acordo com o documento de 59 páginas, publicado no dia 22, a situação no Governatorato de Gaza, que inclui a cidade e áreas circundantes, foi elevada para a fase 5, o nível mais grave da escala de insegurança alimentar aguda. “Não deve restar qualquer dúvida de que é necessária uma resposta imediata e em larga escala”, considera o relatório.
O IPC descreve a fome em Gaza como “inteiramente provocada pelo homem”, mas sustenta que pode ainda ser “travada e revertida”, se houver uma ação rápida. “O tempo para debate e hesitação já passou, a fome está presente e a espalhar-se rapidamente”, acentua o organismo.
A análise prevê ainda, como foi referido, que as condições “catastróficas” poderão estender-se a outras zonas, incluindo Deir al-Balah e Khan Younis, até ao final de setembro. E avisa que “qualquer atraso adicional, mesmo de apenas alguns dias, resultará numa escalada inaceitável da mortalidade associada à fome”.
Embora o IPC não declare, formalmente, a existência de fome, a sua análise é a base usada pela comunidade internacional para o reconhecimento oficial da situação e para orientar respostas humanitárias.
Várias
agências da ONU destacaram, de forma coletiva e sistemática, a extrema urgência
de uma resposta humanitária imediata e em larga escala, tendo em conta o
aumento das mortes relacionadas com a fome, a rápida degradação dos níveis de
desnutrição aguda e o colapso acentuado do consumo alimentar, com centenas de
milhares de pessoas a passarem vários dias sem comer absolutamente nada.
A desnutrição
entre as crianças em Gaza está a agravar-se “a um ritmo catastrófico”,
segundo as agências das Nações Unidas, que sublinham que, só no mês de julho,
mais de 12 mil crianças foram
identificadas como sofrendo de desnutrição aguda – o número mensal mais elevado
jamais registado e seis vezes superior ao
do início do ano.
“Isto não é
um mistério, é uma catástrofe provocada pelo ser humano, uma condenação moral e
um fracasso da própria humanidade. A fome não diz apenas respeito à comida. Trata-se
do colapso deliberado dos sistemas essenciais à sobrevivência humana. As
pessoas estão a morrer de fome. As crianças estão a morrer. E quem tem o dever
de agir está a falhar no seu dever”, declarou o Secretário-Geral da ONU, António
Guterres, em comunicado, acrescentando: “Enquanto potência ocupante, Israel tem
obrigações inquestionáveis, ao abrigo do direito internacional, incluindo a de
garantir o fornecimento de alimentos e cuidados médicos à população. Não
podemos permitir que esta situação continue impunemente.”
“Esta é uma
fome que poderíamos ter evitado, se nos tivessem deixado. No entanto, os
alimentos acumulam-se nas fronteiras, devido à obstrução sistemática por parte
de Israel”, afirmou Tom Fletcher, responsável pela Coordenação das Assuntos
Humanitários das Nações Unidas.
“Não há mais desculpas. Não é
amanhã que temos de agir, é agora. Precisamos de um cessar-fogo imediato, da
libertação imediata de todos os reféns e de acesso
humanitário total e sem entraves”, declarou António Guterres.
A ONU define
uma situação de fome com
base nos seguintes critérios: pelo menos, 20% dos agregados
familiares enfrentam escassez extrema de alimentos; pelo
menos, 30% das crianças com menos de cinco anos sofrem
de desnutrição aguda; e, pelo menos, duas pessoas em cada 10
mil morrem de fome, por dia.
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O IPC “acaba de publicar um relatório feito à medida para a falsa campanha do Hamas”, disse a diplomacia de Israel, num comunicado citado pela agência de notícias France-Presse.
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De acordo com
o portal de informação do Vaticano, Vatican
News, a expansão militar israelita continua conforme o planeado, segundo anunciou
o chefe do Estado-Maior do Exército, Eyal Zamir. Atualmente, as Forças de
Defesa de Israel (IDF) estão nos arredores da cidade de Gaza, mas a entrada no
centro da cidade, segundo os media
israelitas, deve começar em meados de setembro, depois de os 60 mil reservistas
recém-convocados se apresentarem ao serviço. Enquanto isso, o milhão de
residentes será chamado para evacuação, já a 24 de agosto.
A cidade de
Gaza continuou a ser alvo de ataques aéreos e, no subúrbio de Sheikh Radwan, foi
atingida uma escola que abrigava desabrigados. Até ao momento, mais de 30
pessoas terão morrido nos ataques israelitas, entre elas, pessoas que buscavam
ajuda alimentar e várias crianças.
A oferta da fação
palestiniana de proceder à libertação dos reféns, em duas etapas, parece ter
sido rejeitada pelo primeiro-ministro israelita, Benjamin Netanyahu, que
ordenou o início imediato das negociações para a libertação de todos os
sequestrados – os cerca de 20 ainda vivos e os 30 corpos dos que morreram.
Segundo os media israelitas, Israel
deve enviar negociadores para retomar as conversações sobre o cessar-fogo, nos
próximos dias. Já estarão em andamento negociações para definir a data e o
local das negociações, paralisadas desde que Israel e os Estados Unidos da
América (EUA) retiraram os seus mediadores de Doha, em julho. Mais do que
proposta de negociação, o que Israel expressou soa a ultimato, sobretudo, após
a dura declaração do ministro da Defesa Katz, que prometeu arrasar Gaza, se as
condições de Israel não forem aceites.
Enquanto
isso, de acordo com o relatório da ONU, pelo menos 132 mil crianças menores de
cinco anos correm risco de desnutrição, devido à fome na Faixa de Gaza causada
pelo bloqueio da ajuda humanitária imposto por Israel, que nega a acusação,
definindo-a como orquestrada pelo Hamas.
O gabinete do primeiro-ministro definiu o relatório como uma
“mentira descarada”, enquanto o COGAT, órgão militar responsável pela ajuda
humanitária, afirmou que se trata de “dados parciais” e “informações
superficiais”. Contudo, o relatório da ONU é compartilhado pela maioria das
organizações humanitárias internacionais. A FAO, a UNICEF, o PAM e a OMS pedem
um cessar-fogo e o tão esperado fornecimento de alimentos e medicamentos. A ONG
ActionAid (uma organização não-governamental) lança um alerta adicional: “Famílias
palestinianas e também funcionários da organização humanitária estão a morrer
de fome!”
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O portal Esquerda.net considera a declaração da ONU de que mais de meio milhão de
palestinianos vive com fome, em Gaza, constitui mais um elemento a usar nos
processos contra o governo de Israel, por crimes de guerra e de genocídio.
Depois, tendo
em conta os critérios (acima especificados) para se considerar que existe fome
numa região, sublinha que o relatório do IPC concluiu que mais de meio milhão
de pessoas em Gaza se encontram em situação de fome, sendo previsível que esse
número suba para 641 mil no mês de setembro. Até agora, o IPC só tinha
identificado a situação de fome com estes critérios na Somália, no Sudão e no Sudão
do Sul.
Como
habitualmente, o governo israelita negou as conclusões do relatório e voltou a
acusar a ONU de se basear em “mentiras do Hamas” propagadas por ONG que lhe
seriam próximas. O embaixador de Israel em Portugal disse à SIC Notícias que “nunca houve fome e
ninguém morreu de fome em Gaza”; e, se vemos crianças magras, “é porque são
doentes graves”.
A este
respeito, o advogado internacional François Roux, antigo chefe do gabinete de
defesa do tribunal especial para o Líbano (2009-2018), criado para julgar, à
revelia, os responsáveis pelo assassinato de Rafic Hariri, antigo
primeiro-ministro libanês, afirmou ao Le
Monde que “este relatório dará argumentos adicionais ao procurador, para
fundamentar as suas acusações” e para “fazer com que os autores destes
documentos testemunhem em eventual ação judicial”.
Mais de 250 pessoas morreram de desnutrição, desde outubro de 2023, e cerca de metade eram crianças. Não é só a fome que mata: desde 27 de maio, mais de dois mil civis foram mortos pelas tropas israelitas, ao tentarem obter comida nos pontos de distribuição de alimentos, e cerca de 14 mil ficaram feridos. E, enquanto a fome e a desnutrição alastram, a ofensiva militar israelita prossegue a ferro e fogo. O foco, agora, é o centro urbano de Gaza, mas o plano militar prevê a deslocação forçada de cerca de um milhão de palestinianos e o exército já controla 75% de todo o enclave, não havendo zonas seguras para os civis se refugiarem.
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Enfim, há
fome em Gaza, como declarou, excecionalmente, a ONU. A causa e fator da fome é
a mão humana, que a usa como arma de guerra. Como se esperava, Israel nega a situação,
descredibilizando a ONU e as suas agências, por suposta parcialidade, em prol
do Hamas.
As chancelarias
internacionais, no geral, fizeram-se surdas ao flagelo. Advogam a solução de
dois Estados; já acusam Israel de exagerar nos ataques aos Palestinianos e de
querer ocupar Gaza, a todo o custo, mas ignoram o violento recrudescimento dos colonatos
na Cisjordânia, que inviabilizam a solução de dois Estados; e alguns governos
já reconheceram ao Estado da Palestina e outros preparam-se para o fazerem, mas
a fome a alastrar não lhes faz mossa. É o campeonato da hipocrisia, da
indiferença e de alguns interesses estratégicos, em que a dignidade humana e o
direito dos povos todos a território e a um Estado livre são ignorados ou passam
para segundo ou último plano.
2025.08.23 – Louro de Carvalho
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