sábado, 23 de agosto de 2025

ONU, pela primeira vez, declara oficialmente fome em Gaza

 

A Organização das Nações Unidas (ONU) confirmou, a 22 de agosto, que está em curso uma grave situação de fome, em Gaza, e que deverá alargar-se a outra zonas, como Deir Al-Balah e Khan Younès, até ao final de setembro.
Assim, de acordo com a BBC News, pela primeira vez, a fome foi oficialmente confirmada em Gaza, segundo um relatório do Integrated Food Security Phase Classification (IPC) – em Português, Quadro Integrado de Classificação da Segurança Alimentar, mecanismo apoiado por agências da ONU, por organizações humanitárias e por governos, que monitoriza a segurança alimentar a nível global.
As agências das Nações Unidas envolvidas incluem a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), o Programa Alimentar Mundial (PAM) e a Organização Mundial da Saúde (OMS).

De acordo com um relatório tornado público, durante uma conferência de imprensa, em Genebra, cerca de 500 mil pessoas (há quem fale em 641 mil) encontram-se em situação catastrófica.

As condições no Norte de Gaza são consideradas tão graves como na cidade de Gaza, ou até piores. Todavia, a falta de dados impediu qualquer classificação segundo a escala IPC, pelo que é sublinhada a urgência de acesso a informação.

Israel está a bloquear a entrada da maior parte da ajuda humanitária da ONU e dos seus parceiros, tendo confiado a distribuição de alimentos à Gaza Relief Foundation, uma organização israelo-americana, muito criticada pelas suas práticas. Desde julho, as entregas de alimentos e a ajuda humanitária, em Gaza, aumentaram ligeiramente, mas continuam muito insuficientes, irregulares e inacessíveis, face às necessidades existentes.

De acordo com o documento de 59 páginas, publicado no dia 22, a situação no Governatorato de Gaza, que inclui a cidade e áreas circundantes, foi elevada para a fase 5, o nível mais grave da escala de insegurança alimentar aguda. “Não deve restar qualquer dúvida de que é necessária uma resposta imediata e em larga escala”, considera o relatório.

O IPC descreve a fome em Gaza como “inteiramente provocada pelo homem”, mas sustenta que pode ainda ser “travada e revertida”, se houver uma ação rápida. “O tempo para debate e hesitação já passou, a fome está presente e a espalhar-se rapidamente”, acentua o organismo.

A análise prevê ainda, como foi referido,  que as condições “catastróficas” poderão estender-se a outras zonas, incluindo Deir al-Balah e Khan Younis, até ao final de setembro. E avisa que “qualquer atraso adicional, mesmo de apenas alguns dias, resultará numa escalada inaceitável da mortalidade associada à fome”.

Embora o IPC não declare, formalmente, a existência de fome, a sua análise é a base usada pela comunidade internacional para o reconhecimento oficial da situação e para orientar respostas humanitárias.

Várias agências da ONU destacaram, de forma coletiva e sistemática, a extrema urgência de uma resposta humanitária imediata e em larga escala, tendo em conta o aumento das mortes relacionadas com a fome, a rápida degradação dos níveis de desnutrição aguda e o colapso acentuado do consumo alimentar, com centenas de milhares de pessoas a passarem vários dias sem comer absolutamente nada.

A desnutrição entre as crianças em Gaza está a agravar-se “a um ritmo catastrófico”, segundo as agências das Nações Unidas, que sublinham que, só no mês de julho, mais de 12 mil crianças foram identificadas como sofrendo de desnutrição aguda – o número mensal mais elevado jamais registado e seis vezes superior ao do início do ano.

“Isto não é um mistério, é uma catástrofe provocada pelo ser humano, uma condenação moral e um fracasso da própria humanidade. A fome não diz apenas respeito à comida. Trata-se do colapso deliberado dos sistemas essenciais à sobrevivência humana. As pessoas estão a morrer de fome. As crianças estão a morrer. E quem tem o dever de agir está a falhar no seu dever”, declarou o Secretário-Geral da ONU, António Guterres, em comunicado, acrescentando: “Enquanto potência ocupante, Israel tem obrigações inquestionáveis, ao abrigo do direito internacional, incluindo a de garantir o fornecimento de alimentos e cuidados médicos à população. Não podemos permitir que esta situação continue impunemente.”

“Esta é uma fome que poderíamos ter evitado, se nos tivessem deixado. No entanto, os alimentos acumulam-se nas fronteiras, devido à obstrução sistemática por parte de Israel”, afirmou Tom Fletcher, responsável pela Coordenação das Assuntos Humanitários das Nações Unidas.

“Não há mais desculpas. Não é amanhã que temos de agir, é agora. Precisamos de um cessar-fogo imediato, da libertação imediata de todos os reféns e de acesso humanitário total e sem entraves, declarou António Guterres.

A ONU define uma situação de fome com base nos seguintes critérios: pelo menos, 20% dos agregados familiares enfrentam escassez extrema de alimentos; pelo menos, 30% das crianças com menos de cinco anos sofrem de desnutrição aguda; e, pelo menos, duas pessoas em cada 10 mil morrem de fome, por dia.

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Não obstante, Israel nega fome em Gaza e acusa a ONU de ouvir “mentiras do Hamas”. “Não há fome em Gaza”, afirmou, segundo a agência Lusa, o Ministério dos Negócios Estrangeiros (MNE) israelita, num comunicado, reagindo à declaração oficial do IPC, organismo da ONU com sede em Roma.
O IPC “acaba de publicar um relatório feito à medida para a falsa campanha do Hamas”, disse a diplomacia de Israel, num comunicado citado pela agência de notícias France-Presse.
Para Israel, que acusou o IPC de ter ignorado as próprias regras e critérios, o relatório baseia-se “nas mentiras do Hamas, branqueadas por organizações com interesses particulares”, pois, alegadamente, nas últimas semanas, a Faixa de Gaza “foi inundada por um afluxo maciço de ajuda em bens de primeira necessidade, o que provocou uma forte queda de preços”.
“Todas as previsões feitas pelo IPC sobre Gaza, durante a guerra, revelaram-se infundadas e totalmente falsas”, salientou o MNE israelita, prometendo: “Esta avaliação também será deitada no lixo dos documentos políticos desprezíveis.”
A Coordenação das Atividades Governamentais nos Territórios (COGAT), órgão do Ministério da Defesa israelita que supervisiona os assuntos civis nos Territórios Palestinos Ocupados, também denunciou o relatório do IPC, como “falso e tendencioso”.
Num comunicado, o COGAT rejeitou, “veementemente, a afirmação de fome na Faixa de Gaza e, em particular, na cidade de Gaza”. “Os relatórios e avaliações [...] do IPC [...] não refletem a realidade no terreno”, disse o COGAT.
Para os militares israelitas, o relatório não leva em conta os esforços envidados, nas últimas semanas, para “estabilizar a situação humanitária na Faixa de Gaza”, nem as informações transmitidas aos autores do documento pelo COGAT.

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De acordo com o portal de informação do Vaticano, Vatican News, a expansão militar israelita continua conforme o planeado, segundo anunciou o chefe do Estado-Maior do Exército, Eyal Zamir. Atualmente, as Forças de Defesa de Israel (IDF) estão nos arredores da cidade de Gaza, mas a entrada no centro da cidade, segundo os media israelitas, deve começar em meados de setembro, depois de os 60 mil reservistas recém-convocados se apresentarem ao serviço. Enquanto isso, o milhão de residentes será chamado para evacuação, já a 24 de agosto.

A cidade de Gaza continuou a ser alvo de ataques aéreos e, no subúrbio de Sheikh Radwan, foi atingida uma escola que abrigava desabrigados. Até ao momento, mais de 30 pessoas terão morrido nos ataques israelitas, entre elas, pessoas que buscavam ajuda alimentar e várias crianças.

A oferta da fação palestiniana de proceder à libertação dos reféns, em duas etapas, parece ter sido rejeitada pelo primeiro-ministro israelita, Benjamin Netanyahu, que ordenou o início imediato das negociações para a libertação de todos os sequestrados – os cerca de 20 ainda vivos e os 30 corpos dos que morreram. Segundo os media israelitas, Israel deve enviar negociadores para retomar as conversações sobre o cessar-fogo, nos próximos dias. Já estarão em andamento negociações para definir a data e o local das negociações, paralisadas desde que Israel e os Estados Unidos da América (EUA) retiraram os seus mediadores de Doha, em julho. Mais do que proposta de negociação, o que Israel expressou soa a ultimato, sobretudo, após a dura declaração do ministro da Defesa Katz, que prometeu arrasar Gaza, se as condições de Israel não forem aceites.

Enquanto isso, de acordo com o relatório da ONU, pelo menos 132 mil crianças menores de cinco anos correm risco de desnutrição, devido à fome na Faixa de Gaza causada pelo bloqueio da ajuda humanitária imposto por Israel, que nega a acusação, definindo-a como orquestrada pelo Hamas.

O gabinete do primeiro-ministro definiu o relatório como uma “mentira descarada”, enquanto o COGAT, órgão militar responsável pela ajuda humanitária, afirmou que se trata de “dados parciais” e “informações superficiais”. Contudo, o relatório da ONU é compartilhado pela maioria das organizações humanitárias internacionais. A FAO, a UNICEF, o PAM e a OMS pedem um cessar-fogo e o tão esperado fornecimento de alimentos e medicamentos. A ONG ActionAid (uma organização não-governamental) lança um alerta adicional: “Famílias palestinianas e também funcionários da organização humanitária estão a morrer de fome!”

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O portal Esquerda.net considera a declaração da ONU de que mais de meio milhão de palestinianos vive com fome, em Gaza, constitui mais um elemento a usar nos processos contra o governo de Israel, por crimes de guerra e de genocídio.

Depois, tendo em conta os critérios (acima especificados) para se considerar que existe fome numa região, sublinha que o relatório do IPC concluiu que mais de meio milhão de pessoas em Gaza se encontram em situação de fome, sendo previsível que esse número suba para 641 mil no mês de setembro. Até agora, o IPC só tinha identificado a situação de fome com estes critérios na Somália, no Sudão e no Sudão do Sul.

Como habitualmente, o governo israelita negou as conclusões do relatório e voltou a acusar a ONU de se basear em “mentiras do Hamas” propagadas por ONG que lhe seriam próximas. O embaixador de Israel em Portugal disse à SIC Notícias que “nunca houve fome e ninguém morreu de fome em Gaza”; e, se vemos crianças magras, “é porque são doentes graves”.

Ora, apesar de as conclusões do IPC não terem provocado muitas reações diplomáticas nas chancelarias internacionais, não há dúvida de que serão usadas pelos procuradores do TPI na acusação por crimes de guerra e por crimes contra a Humanidade que visam Benjamin Netanyahu e Yoav Gallant, seu antigo ministro da Defesa.

A este respeito, o advogado internacional François Roux, antigo chefe do gabinete de defesa do tribunal especial para o Líbano (2009-2018), criado para julgar, à revelia, os responsáveis pelo assassinato de Rafic Hariri, antigo primeiro-ministro libanês, afirmou ao Le Monde que “este relatório dará argumentos adicionais ao procurador, para fundamentar as suas acusações” e para “fazer com que os autores destes documentos testemunhem em eventual ação judicial”. 

O uso da fome como arma é um dos principais motivos que levaram à emissão dos mandados de captura internacionais contra aqueles dois governantes israelitas, pois, de acordo com os investigadores, há motivos razoáveis para acreditar que Benjamin Netanyahu e Yoav Gallant “são criminalmente responsáveis por submeter civis à fome como método de guerra, o que constitui um crime de guerra”. E outro processo na justiça internacional que poderá apoiar-se nesta declaração do IPC é o que a África do Sul moveu contra Israel, por violar a Convenção para a prevenção e repressão do crime de genocídio.
Mais de 500 mil pessoas estão em situação de “fome catastrófica” na cidade de Gaza e cerca de 2,1 milhões em toda a Faixa, o que levou o IPC a declarar que há fome em Gaza e que a situação vai alastrar. Porém, a informação foi desmentida por Israel. Ora, a fome e a desnutrição na Faixa de Gaza estão nos níveis mais altos, desde o início da agressão. E a causa desta crise humanitária é o cerco que Israel mantém, apesar da condenação internacional. Ainda antes do fim do cessar-fogo, no início de março, Telavive bloqueou a entrada de comida, de medicamentos, de abrigos e de outros bens essenciais no território. No final de maio, o cerco foi parcialmente aliviado: a entrega de ajuda passou a ser feita através da polémica Fundação Humanitária de Gaza, apoiada por Israel e pelos EUA, e considerada uma “armadilha mortal”.
Mais de 250 pessoas morreram de desnutrição, desde outubro de 2023, e cerca de metade eram crianças. Não é só a fome que mata: desde 27 de maio, mais de dois mil civis foram mortos pelas tropas israelitas, ao tentarem obter comida nos pontos de distribuição de alimentos, e cerca de 14 mil ficaram feridos. E, enquanto a fome e a desnutrição alastram, a ofensiva militar israelita prossegue a ferro e fogo. O foco, agora, é o centro urbano de Gaza, mas o plano militar prevê a deslocação forçada de cerca de um milhão de palestinianos e o exército já controla 75% de todo o enclave, não havendo zonas seguras para os civis se refugiarem.
O Egito, um dos países mediadores da paz, juntamente com o Qatar e os EUA, criticou a falta de resposta de Israel, como “erro de cálculo” que levará a uma “escalada da guerra na região”. Trata-se de “novo passo para consolidar a sua ocupação ilegal dos territórios palestinianos e uma flagrante violação do direito internacional”.
Pelo menos 85% dos habitantes da Faixa de Gaza mortos até maio eram civis, em vez de combatentes do Hamas, ou seja, em 19 meses de guerra, a Mossad registou 8900 combatentes do Hamas e da Jihad Islâmica Palestiniana como mortos, contra 53 mil civis assassinados.

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Enfim, há fome em Gaza, como declarou, excecionalmente, a ONU. A causa e fator da fome é a mão humana, que a usa como arma de guerra. Como se esperava, Israel nega a situação, descredibilizando a ONU e as suas agências, por suposta parcialidade, em prol do Hamas.

As chancelarias internacionais, no geral, fizeram-se surdas ao flagelo. Advogam a solução de dois Estados; já acusam Israel de exagerar nos ataques aos Palestinianos e de querer ocupar Gaza, a todo o custo, mas ignoram o violento recrudescimento dos colonatos na Cisjordânia, que inviabilizam a solução de dois Estados; e alguns governos já reconheceram ao Estado da Palestina e outros preparam-se para o fazerem, mas a fome a alastrar não lhes faz mossa. É o campeonato da hipocrisia, da indiferença e de alguns interesses estratégicos, em que a dignidade humana e o direito dos povos todos a território e a um Estado livre são ignorados ou passam para segundo ou último plano.

2025.08.23 – Louro de Carvalho

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