É escandaloso, com os meios e as técnicas de informação e de comunicação que um departamento do Estado, por mais complexo que seja, não conheça a população que serve.
Já era proverbial o dito de que o Estado não sabia quantos funcionários públicos tinha. A este respeito, recordo que, na segunda metade da década de 1980, éramos solicitados a preencher um formulário para as estatísticas, supostamente, para o Estado saber quantos funcionários tinha e, em especial, quantos professores. E lembro-me de que o funcionário que me abordou avisou que ou preenchia os papéis ou pagava a taxa de 20 escudos. Peguei, de imediato, numa nota e entreguei-lha, para ficar dispensado do preenchimento. Ora, nos serviços do Estado havia registos biográficos do pessoal, listas de pessoal, folha de pagamentos e, na escola, havia processos de alunos, listas de matriculados e pautas de avaliação de frequência e de conclusão.
Contudo, agora, apesar dos atuais meios de controlo, “o processo de apuramento de alunos sem aulas em vigor não permite apurar, com exatidão, o número de alunos sem aulas”, de acordo com a carta de acompanhamento do relatório da auditora KPMG, empresa que, a pedido do Ministério da Educação, Ciência Inovação (MECI) ficou de avaliar se era possível ter dados fidedignos sobre o número de estudantes que, nos dois últimos anos letivos, tinham estado sem professor a, pelo menos, uma disciplina.
A auditoria identificou “lacunas e insuficiências que põem em causa a solidez dos dados reportados pela Direção-Geral dos Estabelecimentos Escolares (DGEstE), referente ao número de alunos sem aulas a uma disciplina”, assim como revela que o processo atual assenta num sistema sem “rastreabilidade”, dependente de ajustamentos informais que potenciam o risco de erro, que pode atingir 50% dos alunos reportados como “sem aulas”. Tais correções são realizadas, “maioritariamente, por contactos telefónicos” e não estão sujeitas a “qualquer processo que documente a revisão/aprovação”, o que compromete a fiabilidade dos dados e impede a sua verificação independente.
Há também “diversas omissões e discrepâncias entre a Nota Metodológica e o processo em vigor”, incluindo alterações nos critérios de apuramento e no acompanhamento da informação, o que compromete “a comparabilidade do número de alunos sem aulas a uma disciplina, entre 2023/2024 e 2024/2025”. E é impossível aferir “o número total da população estudantil”, por distritos, por agrupamentos e/ou por escolas.
Por isso, os auditores deixam um conjunto de recomendações, nomeadamente, a “necessidade de implementação de um sistema de informação que permita recolher de forma tempestiva e centralizada, diretamente das escolas, a informação necessária” e a “definição formal de mecanismos de controlo e verificação dos dados apurados e a identificação das entidades e/ou responsáveis pela sua execução.” Aliás, os sumários estão em suporte eletrónico, facilmente transferíveis. E, nas escolas há grelhas e fichas para tudo.
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Agora, a auditoria da KPMG sustenta que nenhum responsável conseguia apresentar os números rigorosos, porque o sistema não permite a contabilização “fiável”, o que, do meu ponto de vista, é intolerável, seja qual for o governo que gira os assuntos do país.
O MECI prometia implementar as recomendações da auditoria, nomeadamente, o mecanismo em em referência, partir do ano letivo seguinte, para se poder monitorizar, de forma rigorosa, credível e transparente, o número de alunos sem aulas, a cada disciplina, em diferentes momentos e ao longo do ano letivo – o que a tutela considera essencial para minimizar o problema.
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Entretanto, a 28 do mesmo mês de novembro, o titular da pasta da Educação,
Ciência e Inovação reconheceu que as contas podiam não ser as
propaladas, anteriormente, e que era,
naquele momento, impossível qualquer comparação com o ano letivo anterior, após
as dúvidas que surgiram, designadamente, da parte de João Costa, seu
antecessor na pasta da Educação, e dos dados contraditórios que recebera dos
serviços, em diferentes momentos.Confrontado com dados contraditórios, o MECI considerou não existir fiabilidade na informação prestada pelos serviços sobre o ano letivo de 2023/24, pondo em causa o rigor de todos os dados que tinham vindo a público, incluindo o valor de referência escolhido pelo governo para a avaliação do efeito das suas medidas, bem como os dados divulgados pelo ex-ministro João Costa e as dúvidas colocadas por Alexandra Leitão, na altura, líder parlamentar do PS, que acusou o governo de “faltar à verdade”, garantindo que o número em causa rondava os dois mil.
Perante a disparidade de números, o Expresso pediu ao MECI o envio das bases de dados em bruto que permitissem confirmar os números que o ministro avançara. Porém, os números enviados suscitaram ainda mais dúvidas. Os dados diziam, supostamente, respeito aos alunos sem aulas, no ano letivo anterior, durante um, três, seis e nove meses, mas os totais, praticamente, não variavam nos diferentes momentos, oscilando entre os 19 mil e os 22 mil.
Com as dúvidas a avolumarem-se, a tutela decidiu pedir à DGEstE a revalidação dos dados, para verificar a informação referente a esse período, usada pela equipa do MECI. Assim, na nova versão da DGEstE, a 22 de novembro de 2023 (a data de referência usada pelo Ministério da Educação, na sua apresentação) os alunos sem aulas, desde o início do ano letivo, eram 7381. E no final do 1.º período, eram 3295. Nenhum dos números batia certo com os 21 mil, que o governante vinha referindo, nem com os cerca de dois mil, referidos pelo PS.
Fernando Alexandre não teve outra hipótese, a não ser fazer o “mea culpa”, referindo que já não acreditava nos números fornecidos pela DGEstE e lembrando que tinha confiado nos elementos que lhe tinham sido apresentados e que nunca foram postos em causa pelos serviços, “ao longo de várias semanas de trabalho e reuniões”. Já em relação aos números do ano letivo que agora chegou ao fim, o governante sustenta que houve uma dupla verificação, nomeadamente, com contactos diretos com as escolas, pelo que os novos dados eram mais rigorosos.
Perante todas as contradições, o ministro decidiu pedir uma auditoria externa aos dados sobre alunos sem aulas, no ano letivo de 2023/24, com o objetivo se fazer uma avaliação independente, para ver se é possível ter dados fidedignos, a partir do sistema de informação existente.
Questionado sobre se sentia necessidade de fazer um pedido de desculpas, o governante lamentou a apresentação daqueles dados e porfiou que, se tivesse o conhecimento que passou a ter das fragilidades dos sistemas de informação, não teria quantificado o objetivo, por referência aos elementos do ano letivo anterior. Porém, não lhe pareceu ter de pedir desculpas, “porque estamos completamente focados em reduzir o problema dos alunos sem professor e tomámos 17 medidas que estão a ter efeito e os diretores reconhecem.”
Fernando Alexandre considerou que não devia um pedido de desculpas ao PS, porque teve, “em oito anos e meio”, tempo para montar um sistema de informação que permitisse medir este problema, se o tivesse identificado como prioritário.
Para o ex-ministro da Educação, João Costa, o reconhecimento do erro por Fernando Alexandre não mereceu muitos comentários, além de um aviso e de uma constatação. “Todos os dados têm de ser vistos com muito cuidado, para não se partir para declarações bombásticas que não estejam devidamente sustentadas. O meu tempo como ministro da Educação ensinou-me isto”, disse o ex-ministro, corroborando a fragilidade dos sistemas de informação do MECI.
Quanto à dimensão da suposta diminuição do número de alunos sem aulas, o ex-governante sublinha que o problema da falta de professores nunca se resolverá em “meia dúzia de semanas”: “Quem nos dera que fosse possível [conseguir uma redução de 90%] em tão pouco tempo, mas não é”, atirou.
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Antes desta polémica, o MECI dizia ter conseguido cumprir, e até antecipar em um mês, a meta a que se tinha proposto. E considerava que o objetivo fora alcançado, graças a um pacote alargado de medidas que permitiu atrair para as escolas cerca de cinco mil novos professores, incluindo a o regresso à escola de professores aposentados e o prolongamento da docência por outros. Porém, a medida que teve mais impacto foi o pagamento de horas extraordinárias a mais de dois mil professores para completar horários, de modo a haver aulas em mais turmas. Na maior parte dos casos, os docentes faziam apenas mais uma ou duas horas, “o que não representa uma grande sobrecarga para os próprios, mas permitiu completar muitas turmas”, explicou o governante. Contudo, esqueceu a onda de baixas médicas – muitas de longa duração – resultantes do stresse e do cansaço de um corpo docente envelhecido e fragilizado, física, psicológica e socialmente.
A possibilidade dada às escolas de contratarem diretamente professores, que já estava prevista na lei, foi incentivada com vista ao preenchimento de horários em aberto. E, de acordo com dados do MECI, tinham entrado, sobretudo por esta via, 4181 docentes que nunca antes tinham dado aulas, pelo menos, no sistema público. Segundo Fernando Alexandre, alguns terão vindo de colégios, mas a maioria nunca tinha lecionado. O facto de não terem formação pedagógica não preocupa o governante, porque o ensino superior é de grande qualidade, pelo que “têm uma excelente preparação científica”. Enfim, para o responsável pela Educação, a preparação didático-pedagógica é pouco relevante.
Também o subsídio, que pode chegar aos 450 euros, para professores deslocados em escolas da Grande Lisboa, do Alentejo e do Algarve, onde há mais problemas de colocação, estava prestes a arrancar, tendo quase dois mil pedidos sido validados.
O governante enfatizou a atribuição de caráter atraente à carreira docente, quando o único benefício terá sido a contagem integral do tempo de serviço para efeitos de progressão, o que atingiu parte bastante diminuta dos prejudicados, desde 2005.
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Apesar de haver mais professores no sistema, há muitas dificuldades em
substituir, rapidamente, docentes que se ausentam ao longo do ano, por exemplo
por motivos de doença, de licença de parentalidade ou de gravidez de risco. Por
isso, em cada momento, há sempre milhares de alunos que estão, temporariamente,
sem aulas a uma disciplina, até porque o preenchimento de horários que ficam
incompletos com a ausência dos titulares é de difícil preenchimento. Por isso,
o número está sempre a oscilar. Todavia, o governante distingue estes casos, em
que a ausência pode ser relativamente curta, dos que ficam sem uma disciplina,
durante um período letivo inteiro ou mais. Nesse sentido, a prioridade foi
resolver os casos de ausência de longa duração.***
Entretanto, em dezembro de 2024, o primeiro-ministro propalava uma fasquia bem diminuta: havia
um total de 878 alunos que continuavam com um professor em falta e que não
tinham tido qualquer aula a essa disciplina, durante o 1.º período, quando a Fenprof
(Federação Nacional dos Professores), no seu balanço indicava que o número
seria mais do dobro, rondando os dois mil.Foi sobre algumas dessas medidas, a sua “falta de eficácia” e “ambição para dar resposta ao problema” que aquela organização sindical fez o seu balanço. O MECI, depois da polémica do final de novembro, optou por não divulgar mais dados e aguardava os resultados de uma auditoria aos números dos serviços.
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A partir de um inquérito, através da amostra representativa de 25% dos
agrupamentos escolares do continente, a Fenprof estimava em 60 mil o número de
horas extraordinárias atribuídas durante o primeiro trimestre daquele ano
letivo. Alguns relataram ter atribuído serviço extra a mais de 50 professores
do agrupamento. “Este número irá aumentar devido à saída, todos os meses, de
centenas de docentes para a aposentação, provocando, à medida que o ano letivo
avança, um número crescente de professores em situação de exaustão”, alertava aquela
estrutura sindical, vincando que, só entre 1 de setembro e 1 de dezembro, se aposentaram
1686 professores e, em todo o ano civil, foram quatro mil, um número recorde,
na última década.Se a estas saídas se juntarem licenças e baixas médicas e as dificuldades de recrutamento sentidas na Grande Lisboa, em algumas zonas do Alentejo e no Algarve, acabam por ser muitos milhares os alunos que, mesmo já tendo tido aulas, acabam por ficar, depois, sem professor. E é face às dificuldades de recrutamento que as escolas têm tido necessidade, de cada vez mais, contratar professores sem formação pedagógica (dada nos mestrados em ensino) e técnicos especializados que não têm o número de créditos em cursos superiores para a chamada “habilitação própria”.
No caso dos professores com habilitação própria (curso superior, mas não em ensino), terão já sido contratados mais de quatro mil. Quanto aos técnicos especializados, e não havendo números oficiais, a Fenprof chama a atenção para o facto de estarem a chegar às salas de aulas pessoas com formação mínima. Numa apresentação dos serviços do MECI às escolas, foi explicado que era possível contratar técnicos com formação científica adequada e também sem formação adequada. Ou ainda a atribuição de horas a professores de áreas completamente distintas. Por exemplo, a Fenprof relatava que houve a possibilidade de atribuição de horas da disciplina de Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC) a docentes que apenas frequentaram uma ação de formação contínua como Capacitação Digital de Docentes ou de Educação Especial a professores formados em Educação Física.
Mesmo assim, estas medidas de recurso apenas “disfarçam um problema que só se resolverá com a valorização da carreira [e] através da revisão do estatuto dos professores”.
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Deve o governo, em matéria de Educação, abster-se da propaganda e olhar a
sério para a escola pública, garantindo uma carreira docente atrativa (a nível
salarial, de progressão, de condições de trabalho, de promoção da saúde, de
respeito pelo professor e pela sua autonomia profissional), assegurando a
existência de um corpo não docente qualificado, e promovendo uma educação e um
ensino de qualidade a todos, com currículo e programas equilibrados, ajustados
à situação etária e social dos alunos. E talvez seja necessário desmunicipalizar
a Educação, que está a partidarizar a escola.
2025.06.30 – Louro de Carvalho