A 26 de
junho, foi celebrada, pelo arcebispo de Toledo e primaz da Espanha, Francisco
Cerro Chaves, no Altar da Cátedra da basílica de São Pedro, no Vaticano, a missa
segundo o antigo rito hispano-moçárabe, caraterística dos cristãos que viviam
sob o domínio islâmico, na Península Ibérica, e das poucas liturgias ocidentais
não-romanas que sobreviveram ao passar do tempo.
A missa
mozárabe, inserida peregrinação de 200 pessoas da arquidiocese de Toledo a Roma,
para o Jubileu da Esperança 2025, teve a presença de vários membros da Cúria Romana:
entre eles, o bispo Alejandro Arellano Cedillo, decano da Rota Romana; o bispo
Aurelio García Macías, subsecretário do Dicastério para o Culto Divino; o bispo
auxiliar de Toledo, Francisco César García Magán, secretário-geral da
Conferência Episcopal Espanhola; e o leigo espanhol Massimino Caballero Ledo,
prefeito da Secretaria de Economia da Santa Sé.
Na homilia,
o arcebispo defendeu a comunhão com Cristo, com a Igreja e com o sucessor de
Pedro, enfatizando que essas três realidades “não são negociáveis”. “Não se
pode brincar com a comunhão com Cristo, não se pode brincar com a comunhão com
a Igreja e não se pode brincar com a comunhão com Pedro”, disse Cerro Chaves.
Inspirado
pelo Evangelho, o arcebispo de Toledo centrou o discurso homilético na pergunta
de Jesus: “E vós, quem dizeis que eu sou?” (Lc
9,20) – “dirigida a cada um de nós, hoje”, sendo que a nossa resposta muda
tudo: “a História muda, a vossa paisagem muda, o vosso coração muda”. “É a
pergunta mais importante que o Evangelho faz”, disse também o arcebispo de
Toledo. “E Pedro responde: Tu és o Filho do Deus vivo’.”
Citando
Bento XVI, disse que o cristianismo nasce de um encontro pessoal com Cristo e
que ser cristão implica viver em comunhão com a Igreja e com o Papa. “Santo
Inácio de Antioquia di-lo, claramente: nada sem o bispo, nada sem Pedro”,
vincou o arcebispo toledano, enfatizando a missão do Papa como guardião da fé e
mensageiro do Evangelho ao Mundo.
“A tarefa do
Papa é dizer a toda a Humanidade: Tu és o Filho do Deus vivo. […] Por isso, ele
vai às periferias, às dioceses, às aldeias, para proclamar o amor de Cristo”, frisou
o celebrante.
***
Declarações
de um especialista sobre o rito hispano-moçárabe
Com os ritos
romano, galicano, ambrosiano e bracarense, o rito hispano-moçárabe faz parte do
conjunto de ritos desenvolvidos em torno de sés metropolitanas do Ocidente. “Esse
rito faz parte das liturgias ocidentais que se formaram em torno de uma Sé: a
liturgia romana (Roma), a liturgia galicana (Lyon, na França), a liturgia ambrosiana
(Milão, na Itália) e a liturgia bracarense (Braga, em Portugal)”, diz o padre
Salvador Aguilera, consultor do Dicastério para as Igrejas Orientais, a quem Chaves
Cerró agradeceu pelo seu envolvimento em possibilitar a celebração, na basílica
de São Pedro, do rito nascido no coração da Igreja visigótica e ainda vivo em
Toledo.
Segundo
Aguilera, doutor em Liturgia, esse modo de celebrar a missa atingiu o auge no
período visigótico, especialmente, depois da conversão oficial do reino ao
catolicismo, no III Concílio de Toledo, em 589. No entanto, a sua História não
foi isenta de momentos de perseguição, correndo o risco de desaparecer. Depois
da invasão muçulmana à Península Ibérica, em 711, muitos livros litúrgicos e
relíquias tiveram de ser transferidos para o Norte da Espanha para serem
guardados em segurança. Em 1080, a mando do papa São Gregório VII, foi convocado
o Concílio de Burgos, que aboliu o rito. Porém, alguns anos depois, em 1085,
com a reconquista de Toledo, pelo rei Afonso VI, os moçárabes obtiveram o
privilégio de preservar esta liturgia.
Desde então,
a sua preservação tem sido obra de grandes figuras eclesiásticas. “Três nomes
marcaram a História do rito, desde a sua abolição até aos dias atuais: os
cardeais Cisneros, Lorenzana e González”, diz o padre Aguilera. O cardeal
Francisco Jiménez de Cisneros, arcebispo de Toledo, de 1495 a 1517, “empreendeu
uma reforma que, não só afetou questões materiais, como paróquias e livros
litúrgicos, mas também promoveu a formação do clero, garantindo a continuidade
de uma liturgia tão antiga”, diz o especialista.
O cardeal
Cisneros instituiu a capela moçárabe de Corpus Christi, na catedral de Toledo e encomendou
a publicação do Missale mixtum secundum regulam Beati Isidori, em 1500,
e do Breviarium secundum regulam Beati Isidori, em 1502. Séculos
depois, o cardeal Lorenzana publicou outras edições do breviário, em 1775, e do
missal, em 1804, obras fundamentais para a preservação do rito.
No século
XX, o cardeal Marcelo González Martín reacendeu o movimento reformista, após o
Concílio Vaticano II. Seguindo as instruções da Constituição Sacrosanctum Concilium, sobre a
reforma dos Ritos, nomeou uma comissão para produzir a edição latina do Missale
Hispano-Mozarabicum em dois volumes e do Liber commicus (Lecionário).
E, 30 anos depois da reforma conciliar, em 1992, foi apresentado o primeiro
volume do Novo Missal Hispano-Moçárabe
ao Papa São João Paulo II, que celebrou a missa, em seguida. O dia 28 de maio
de 1992, solenidade da Ascensão do Senhor, marcou a primeira vez que um Papa
celebrou a missa conforme este rito. Segundo o padre Aguilera, na ocasião, o
Papa polaco expressou a sua “profunda satisfação pelo meritório trabalho
realizado na revisão do rito hispano-moçárabe, cumprindo, assim, os requisitos
da constituição Sacrosanctum Concilium”, o que deu à Igreja da
Espanha um fruto precioso, que representa eminente serviço à cultura, na medida
em que representa a recuperação das fórmulas com as quais os seus antepassados
expressaram sua fé.
Outras
ocasiões em que este rito foi celebrado na basílica de São Pedro foram em 2000,
por ocasião do Grande Jubileu, na missa celebrada pelo então arcebispo de
Toledo, cardeal Francisco Álvarez Martínez; e em 2015, no Jubileu da
Misericórdia, noutra missa celebrada pelo então arcebispo de Toledo e atual
arcebispo emérito, Braulio Rodríguez Plaza.
***
Síntese da génese e do percurso histórico do rito hispano-moçárabe
O antigo rito hispânico fazia parte do conjunto de liturgias latinas
que se estabeleceram no Ocidente, entre os séculos V e VII. Nem todas as
liturgias ocidentais lograram pleno desenvolvimento. Nada sobreviveu das
liturgias de Cartago e de Aquileia, que não passaram da fase inicial. Muito
pouco sobreviveu da liturgia beneventana. Alguns livros do rito celta foram compilados
na Irlanda, mas o seu conteúdo demonstra a produção limitada do que terá sido o
seu período de criatividade. O rito milanês, com a sua produção musical,
exerceu influência decisiva na composição dos cantos do rito romano e tornou-se
o modelo supremo no Ocidente; a sua escola eucológica desfrutou de um período
de esplendor, mas circunstâncias históricas impediram o seu livre desenvolvimento
contínuo, até à compilação definitiva dos seus livros litúrgicos. Algo similar
aconteceu com a liturgia galicana, que teve as suas origens na região da
Provença e foi descartada, quando o Reino Franco-Germânico adotou o rito
romano.
As únicas duas liturgias ocidentais que se desenvolveram
amplamente, com recursos abundantes, sem limites de tempo e sem obstáculos
externos foram os ritos romano e hispânico.
Três grandes sedes metropolitanas estiveram envolvidas na
formação do rito hispânico: Tarragona, Sevilha e Toledo. A maioria dos autores
de textos e de cantos permaneceu anónima. Mas a tradição preservou alguns
nomes: Justo de Urgell (na 1.ª metade do século VI), São Leandro de Sevilha (c.
540-600), Santo Isidoro de Sevilha (c. 560-636), Pedro de Lérida (em meados do
século VII), Conâncio de Palência (em meados do século VII), Santo Eugénio II
de Toledo (+ 657), Santo Ildefonso de Toledo (c. 610-667), São Julião de Toledo
(c. 642-690).
Vários fatores contribuíram para o seu desenvolvimento. Em
primeiro lugar, uma sólida base cultural, que já havia, na época da dominação
romana, dado nomes ilustres à literatura latina e que se manteve nas áreas mais
latinizadas da Península, apesar das sucessivas invasões e das guerras entre
invasores.
Graças à relativa paz religiosa obtida com a conversão
oficial do Reino Visigodo ao catolicismo (III Concílio de Toledo, em 589), floresceu,
na Espanha, um verdadeiro humanismo latino, fomentado pela corte visigótica,
representada pelos santos Isidoro, Bráulio, Eugénio e Ildefonso. Os textos
eucológios constituem o património literário mais importante dos séculos VI e
VII. E os autores hispânicos que dedicaram a sua arte literária ou musical à composição
de peças litúrgicas sabiam, por experiência, o que a liturgia, como instrumento
catequético, significa para a vida da Igreja. Seguiram o exemplo dos seus predecessores,
que agiram, a princípio, guiados por intuição profética. O fenómeno da
criatividade, na Espanha, ocorreu mais tarde e durou muito mais tempo do que
nas outras igrejas da região mediterrânea.
Os Padres Hispânicos, observando o que acontecia noutras
igrejas, aprenderam que, para incutir a doutrina e a espiritualidade cristãs na
mente dos fiéis, os textos litúrgicos eram mais eficazes do que tratados, sermões
ou homilias. Na oração, a Teologia não era assunto para discussão posterior,
mas iluminação da fé, que o cristão, imerso na presença de Deus, assimilava
pacificamente. Por isso, a eucologia, a hinologia e as centonizações bíblicas
de cânticos sacros eram os géneros literários preferidos na Espanha, naquela época.
E a preocupação das igrejas, na Espanha, em realizar sabiamente, da melhor forma
possível, a celebração da Eucaristia e do Ofício Divino, a organização do ano
litúrgico e a administração dos sacramentos e sacramentais também se manifesta
na atenção que os concílios dedicaram às questões litúrgicas. Com efeito, as
disposições relativas à liturgia emanam dos concílios da província de Tarragona,
na 1.ª metade do século VI, dos Concílios de Braga e, a partir do IV Concílio
de Toledo (em 633), que dedicou 17 dos seus cânones à liturgia, vários dos
Concílios de Toledo do século VII voltariam a abordar a liturgia. Portanto, na
formação do rito, convergem a obra literária e doutrinária dos Padres das
Igrejas Hispânicas e a legislação dos concílios. Porém, o valor documental das
disposições conciliares nem sempre é de natureza estritamente disciplinar.
Santo Isidoro de Sevilha, ainda jovem, escreveu o tratado De Ecclesiasticis Officiis, considerado
o primeiro manual de liturgia da História. Nele, já mostrava o seu conhecimento
dos usos litúrgicos de outras Igrejas ocidentais. Ele próprio, em plena
maturidade da sua erudição e experiência pastoral, presidiu ao IV Concílio de
Toledo e redigiu, pessoalmente, a sua ata. Os cânones relativos à liturgia não
eram simples normas de observância, mas cada um continha uma ilustração
adequada para a compreensão das razões históricas ou doutrinárias do que o
concílio ordenou. E o X Concílio de Toledo (em 656) instituiu a festa de Santa
Maria a 18 de dezembro.
Desta vez, o cânone 1 foi redigido por Santo Ildefonso, que
desempenhou papel decisivo naquele concílio. As razões nele expostas são de
extremo interesse para a História e para a Teologia do ano litúrgico. Nas
igrejas hispânicas, que haviam adotado formulários de outras igrejas antes de
proceder à constituição de uma liturgia indígena, continuaram a ser observados sinais
de evolução noutras igrejas locais. Mesmo no auge da intensidade criativa, o
contacto com as distantes liturgias do Oriente – do tipo alexandrino, antioqueno
ou siro-caldeu – e com as liturgias mais recentes do Sul da Gália, de Milão e
de Roma, a liturgia hispânica foi, gradualmente, ganhando terreno, permanecendo
sempre ligada à tradição universal.
De uma província para outra, estabeleceu-se intercâmbio das respetivas
produções eucológicas e musicais. A uniformidade em matéria litúrgica, invocada,
mais de uma vez, pelos concílios, se verdadeiramente alcançada, limitou-se ao
âmbito da província eclesiástica. Disseminaram-se listas de perícopas bíblicas,
de cantos e de textos eucológicos para a Missa e para o Ofício; e tudo isso se
tornou património comum, mas cada igreja metropolitana organizou-o à sua
maneira. Isso explica por que, nas fontes que chegaram até nós, se reconhece a
existência de duas tradições distintas e por que, em manuscritos da mesma
tradição, se verificam divergências composicionais de certa importância. Ora, da
necessidade de preparar textos para a celebração, surgiram compilações parciais
e provisórias, na forma de libelos; e, a partir delas, foram desenvolvidos os
primeiros rascunhos dos livros litúrgicos. Na realidade, a codificação
definitiva dos livros não pôde ser considerada, até que fossem registados os
primeiros sinais da extinção do período de criatividade, o que aconteceu com a
morte de Santo Ildefonso. Porém, a compilação dos livros litúrgicos, ou de grande
parte deles, é atribuída a São Julião pelo seu biógrafo. Este foi passo
decisivo para uma uniformidade litúrgica efetiva, pelo menos, em duas
províncias eclesiásticas: Tarragona e Cartago. A capital da Espanha cartaginesa
havia sido estabelecida em Toledo.
Seguiu-se o período moçárabe, com a invasão dos árabes, que, de
711 a 719, ocuparam quase toda a Península Ibérica, o que interrompeu o
processo evolutivo do rito hispânico. Alguns clérigos emigraram, levando
consigo os livros litúrgicos. Um livro de orações do Ofício, de Tarragona,
conserva-se, atualmente, em Verona. Outros enriqueceram as bibliotecas das
escolas monásticas, onde florescia o renascimento cultural de Carlos Magno e dos
sucessores. Assim, textos de origem hispânica foram incluídos na composição do
pontifício romano-germânico. Porém, estabeleceu-se, nas Astúrias, um bastião de
resistência à ocupação islâmica. Mal se consolidara essa base para a
reconquista, em 790, Afonso, o Casto, decretou que a liturgia palatina, como
era celebrada em Toledo, fosse restaurada em Oviedo. Os emigrantes que se
refugiaram na Septimania, armados e liderados pelos chefes do Reino dos
Francos, libertaram ambos os lados dos Pireneus orientais, em 782. De lá,
reconquistaram os condados da Marca Espanhola, que formariam a Catalunha. E foram
criados, na área libertada, mosteiros beneditinos, que introduziram o rito
romano.
Nos códices litúrgicos do rito romano copiados na Catalunha, no
atinente ao ritual, sobreviveram elementos do rito hispânico. Por outro lado, o
antigo rito continuou a ser celebrado na Espanha ocupada pelos árabes e nos
novos reinos de Leão, de Castela e de Navarra. Grande número de códices e de fragmentos
do rito hispânico, copiados nos séculos X e XI, foi preservado nas salas de
escrita de Leão, de San Millán de la Cogolla, de San Juan de la Peña, de Santo
Domingo de la Calzada e de Santo Domingo de Silos. São manuscritos que
testemunham um renascimento musical que teria ocorrido no século X. Teriam sido
os principais centros Leão e San Millán. Esse movimento de renovação implicou
relativa criatividade, pois não se limitara a transcrever os cantos antigos, mas
enriquecera-os com novos versos.
O fenómeno da criatividade estendeu-se ao campo da eucologia.
Uma série de missas votivas são atribuídas a Salvo de Albelda (+ 962), que podem
ser identificadas com as que compõem a terceira parte do Liber Ordinum. Alguns dos manuscritos do século XI transcritos em
Silos preservaram outros textos eucológicos que correspondem, aproximadamente,
ao mesmo período.
Legados do Papa Alexandre II impuseram a substituição do
antigo rito pelo rito romano, no mosteiro de San Juan de la Peña (1071). Após a
implementação do rito romano em Leyre (1076), o Papa São Gregório VII levou o
Rei Afonso VI a convocar o Concílio de Burgos (1080), que decretou a abolição
do rito “gótico” nos reinos de Castela e Leão. E os que, enquanto estavam na
Espanha ocupada pelos árabes, queriam permanecer fiéis à religião dos seus pais
e celebrar o culto cristão ou participar nele, tinham de pagar tributo especial
às autoridades locais. Eram chamados os moçárabes. E, ao libertar a cidade de
Toledo (1085), o Rei Afonso VI concedeu-lhes, em reconhecimento dos seus
méritos, o privilégio de continuarem a celebrar o antigo rito hispânico nas
seis paróquias que então existiam em Toledo.
O arcebispo Bernardo de Sahagún (1085-1124) tentou suprimir o
privilégio, mas as comunidades moçárabes, a que se juntou grande número de
emigrantes do Sul da Espanha e do Norte da África, no início do século XIII,
defenderam tenazmente o seu direito sagrado.
As escrituras das paróquias de Santas Justa e Rufina e de
Santa Eulália continuaram a renovar os livros litúrgicos do antigo rito, nos
séculos XII e XIII, até o início do século XIV. E os manuscritos copiados na
paróquia de Santas Justa e Rufina distinguem-se dos outros códices do Norte da
Península e da escritura de Santa Eulália de Toledo.
A Tradição A, representada pela maioria dos manuscritos,
revela uma compilação mais perfeita e elaborada dos livros litúrgicos para a
celebração da Missa e do Ofício Divino. Porém, a Tradição B, representada pelos
da escritura da paróquia de Santas Justa e Rufina, apresenta inegáveis sinais
de arcaísmo e não pode ser considerada versão deformada da outra tradição. As
divergências entre as duas tradições não atingem apenas a disposição ou a
correspondência dos textos, mas também em detalhes, alguns de importância, da estrutura
da Missa e do Ofício. E a maior independência entre elas verifica-se na
distribuição das leituras para a Missa.
Dada a sua extensão, a Tradição A não pode ser outra senão a
resultante do trabalho de codificação de São Julião de Toledo. Vários indícios
nos levam a identificar, na tradição B, a liturgia tal como era celebrada na
igreja metropolitana da província da Bética, sede dos Santos Leandro e Isidoro,
que os emigrantes do Sul teriam trazido consigo para Toledo e que teriam
observado zelosamente na paróquia dedicada aos mártires sevilhanos.
O cardeal Francisco Jiménez de Cisneros, ao tomar posse da
sede arquiepiscopal de Toledo, em 1495, reconhecendo o valor religioso e
cultural da liturgia moçárabe, alertou para os perigos de extinção que a
ameaçavam. E, dadas as dificuldades práticas envolvidas na renovação contínua
dos livros litúrgicos e na iniciação de novos padres num rito tão peculiar,
quase todas as paróquias moçárabes adotaram o rito romano, mas a paróquia de
Santas Justa e Rufina perseverou, de forma mais consistente, na preservação do
rito. E, para garantir a continuidade do rito, o cardeal instituiu a Capela
Moçárabe, atribuindo-lhe o altar-capela de Corpus Christi, localizado na Catedral,
para que o Ofício e a Missa pudessem ser celebrados ali, diariamente, segundo o
rito antigo, e confiou a preparação de uma edição impressa do missal e do
breviário ao cónego Alfonso Ortiz, que formou uma comissão de capelães
moçárabes, sob a direção do pároco de Santas Justa e Rufina. Todos notaram que
esta era a mais bem preparada comissão para a leitura e para a interpretação
dos códices. Assim, sem ninguém dar conta, tais livros prolongaram a existência
da tradição B, e grande parte dos manuscritos utilizados pelos editores do missal
e do breviário desapareceu.
Em 1500, apareceu, em Toledo, o Missale mixtum secundum regulam beati Isidori, dictum mozárabes; e,
em 1502, o Breviarium secundum regulam
beati Isidori. O missal foi reeditado, em Roma, em 1755, com apresentação e
notas explicativas do jesuíta Alejandro Lesley. A reedição de Lesley foi
reproduzida em Patrologia Latina de
Migne, volume LXXXV. Posteriormente, o cardeal Francisco Antonio de Lorenzana,
arcebispo de Toledo, publicou, em Roma, em 1804, nova edição corrigida do
missal, sob a designação de Missale
Gothicum secundum regulam beati Isidori Hispalensis episcopi. O próprio cardeal
Lorenzana já havia reeditado o breviário, em Madrid, em 1775, sob o título Breviarium Gothicum, secundum regulam
beatissimi Isidori. A Patrologia
Latina de Migne, no volume LXXXVI, reproduziu essa edição revista do
breviário.
Os primeiros estudos do período moderno, que consideraram o
antigo rito hispânico, conheciam apenas as edições do missal e do breviário. O
epíteto dictum mozarabes, no título
do missal de 1500, levou os pesquisadores a adotarem o nome “moçárabe”, mas o
primeiro editor de um manuscrito litúrgico hispânico, J. Bianchini, que
publicou o livro de orações festivo preservado em Verona, chamou-o de Gothico-Hispanus. E, considerando o
termo “moçárabe” inadequado, outros pesquisadores preferiram designá-lo como “visigótico”,
cronologicamente restritivo e completamente inapropriado.
É verdade que o antigo rito hispânico se desenvolveu, em
grande parte, no Reino Visigótico, mas nem os meios expressivos utilizados pelos
seus autores, nem o conteúdo doutrinário acumulado são de origem visigótica.
Porém, o rito hispânico teve a sua raiz na antiga cultura hispano-romana e
adaptou uma tradição litúrgica cristã greco-latina ao seu ambiente.
***
Em suma
Em contexto social e eclesial hispano-romano, misturado com
povos nórdicos, suevos e visigodos, formou-se e desenvolveu-se, no Ocidente, nos
séculos VI e VII, a liturgia hispânica – o rito hispânico-moçárabe, (moçárabe,
visigótico, isidoriano, toledano, gótico) – com influência de outras liturgias,
orientais e ocidentais, mas com personalidade própria. É reflexo da vitalidade
da Igreja hispânica. Contou com a colaboração criadora de grandes bispos. E os vários
concílios e sínodos (sobretudo os de Toledo e os tarraconenses) recolheram e
regularam esta sensibilidade litúrgica, de modo particular, o IV de Toledo, de
633, presidido por Santo Isidoro. A época áurea da liturgia hispânica vai de
589 (III Concílio de Toledo, com a conversão de Recaredo e do reino visigótico)
até 711 (invasão dos árabes), abarcando toda a Península e parte da Gália do Sul.
Nos séculos de ocupação árabe, este rito, refugiado sobretudo em Toledo e no
Norte da Península, continuou florescente também entre os moçárabes (ou
muzárabes), cristãos que viviam em território ocupado pelos árabes, mas
defendendo a sua fé e o seu culto próprio. No século XI, houve um rápido
processo de absorção por parte do rito romano, sob o papa Gregório VII,
favorecido, em parte, pela acusação de contágio da heresia adocianista. Em 1085,
foi oficialmente suprimida a liturgia hispânica, à exceção de algumas paróquias
de Toledo, que a conservaram.
O cardeal Cisneros, para evitar a total extinção do rito,
encarregou o cónego Ortiz da preparação de uma edição dos seus livros: no ano
de 1500, apareceu impresso o Missale
Mixtum; e, dois anos mais tarde, o Breviarium
Gothicum. O Missal, reeditado em 1755, preparado por Lesley, encontra-se na
Patrologia Latina de Migne, vol. 85; e
o Breviário, no vol. 86. Mais tarde, o cardeal Lorenzana, em 1804, cuidou de
novas edições, que estiveram em vigor até há pouco.
Entretanto, o cardeal de Toledo, Marcelo Gonzales, por
encargo da Conferência Episcopal Espanhola e da Congregação para o Culto
Divino, constituiu, em 1982, uma comissão para a revisão da liturgia
hispano-moçárabe, dirigida pelo professor J. Pinnel, beneditino de Montserrat.
O primeiro fruto do longo trabalho foi a edição, em 1991, do Missale Hispano-Mozarabicum, e, depois,
do Liber Commicus. Proprium de tempore,
o lecionário do mesmo Missal.
No rito hispano-moçárabe, há duas séries de fontes e,
portanto, dupla organização da liturgia. A tradição A abarca quase todos os
manuscritos e parece originária de Toledo e de outras regiões do Norte da
Península, enquanto a tradição B foi a correspondente a Sevilha, que, ao fugir
da invasão árabe, se refugiou em Toledo. E, ao editarem-se, em 1500, os códices,
imprimiram-se os da tradição B.
As peculiaridades principais da missa hispano-moçárabe são: entre
a celebração da Palavra e da Eucaristia, situa-se um bloco caraterístico, com o
ofertório, a intercessão dos dípticos (em forma litânica, que é uma solene
confissão de unidade eclesial) e o sinal da Paz; a Oração Eucarística compõe-se
de peças próprias do dia (illatio ou
prefácio, a post sanctus e a post pridie) entrelaçadas com as fixas
(diálogo, Santo, narração, doxologia); s epiclese encontra-se depois da
narração; e a preparação para a Comunhão inicia-se com a confissão de fé e
conclui-se, imediatamente antes da comunhão, com a bênção ao povo.
O Ofício Divino hispânico é particularmente rico. Havia a
organização catedralícia e a monástica. A primeira, para o clero e povo, com as
suas duas horas principais, matutina e vespertina, e com mais ênfase nas
antífonas e na eucologia do que nos Salmos. A segunda, para os monges, com mais
horas, além das duas principais, e com mais importância para a salmodia. Os
livros principais eram o Saltério, o Oracional, o Antifonário e o Salmógrafo
que formaram, quando se reuniram, o Breviarium
Gothicum ou o Liber Horarum. Para
os vários sacramentos, o livro oficial é o Liber
Ordinum, com certas caraterísticas, como a união entre o Batismo e a Confirmação,
uma única imersão batismal, em vez da tripla romana, as etapas do processo
penitencial público, que desembocam no rito penitencial comunitário de
Sexta-Feira Santa, com o rito da “indulgência”, a riqueza dos gestos simbólicos
e textos do matrimónio, etc. E, no ano Litúrgico, é caraterística a Festa de
Santa Maria, a 18 de dezembro, a Apparitio Domini ou Epifania, e o I Domingo da
Quaresma, em que se celebra a despedida do Aleluia.
Enfim, riqueza cultural e espiritual que só enriquece a diversidade
na unidade eclesial.
2025.06.27 – Louro de Carvalho
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