terça-feira, 8 de julho de 2025

Buscas por corrupção no uso de fundos da União Europeia

 
A Polícia Judiciária (PJ), o Ministério Público (MP) do Porto e a Procuradoria Europeia (PE) realizaram 59 buscas – o Diário de Notícias (DN) e a PJ falam em 103 buscas –, na manhã de 8 de julho, que visaram a detenção de responsáveis de empresas privadas, pela venda, e de dirigentes de instituições do Estado, pela aquisição, de sistemas informáticos e de cibersegurança, num esquema que terá lesado o erário público e a União Europeia (UE) em dezenas de milhões de euros.
O número avançado pela Procuradoria Europeia é de 4,6 milhões de euros, mas o Expresso online fala em 20 milhões de euros, referindo que, só no Banco de Portugal (BdP) foram identificados 1,7 milhões de euros.
Segundo a PJ, estão em causa suspeitas da autoria dos crimes de fraude na obtenção de subsídio, de corrupção ativa e passiva, de corrupção ativa e passiva no setor privado, de participação económica em negócio, de recebimento indevido de vantagem, de falsificação de documento e de abuso de poder.
Trata-se da Operação Nexus, noticiada, inicialmente, pela CNN Portugal, que envolveu mais de 300 inspetores (bem como elementos do Gabinete de Recuperação de Ativos – Norte da PJ, que executou arrestos no valor de 4,6 milhões de euros) e que partiu de uma investigação pelo combate à corrupção e à fraude, na obtenção de subsídios, em concreto, de fundos comunitários do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR). 
Segundo o ECO online, a operação concentrou-se, sobretudo, no Norte do país, nomeadamente, em determinados departamentos da Universidade do Porto (UP), mas também incidiu na região da Grande Lisboa, onde têm sede os polos industriais que vendem serviços informáticos para organismos públicos e empresas privadas de todo o país. E o DN aponta, ainda, o Instituto Nacional de Emergência Médica (INEM) Universidade de Coimbra (UC), o BdP e a Casa da Música, no Porto.
Alegadamente, as empresas privadas acediam a verbas dos fundos europeus, simulando a aquisição de sistemas informáticos por determinados valores, artificialmente inflacionados com a cumplicidade das empresas vendedoras dos serviços, o que leva, também, às suspeitas de crimes de falsificação de documentos, de branqueamento de capitais ou de fraude fiscal qualificada.
Segundo um comunicado da PJ, no âmbito da operação Nexus, com base em dois inquéritos, um na titularidade do Departamento de Investigação e Ação Penal (DIAP) Regional do Porto e outro da Procuradoria Europeia, foram efetuadas 103 buscas, que resultaram em seis detenções. “Os detidos são um membro da administração e três funcionários da empresa tecnológica e ainda um funcionário de empresa concessionária e um funcionário público”, diz o comunicado.
Em comunicado enviado aos jornalistas, a UP confirma as buscas de uma equipa de inspetores da PJ, na reitoria, mas diz-se “vítima” de um “processo de cartelização”. Ou seja, estará em causa uma combinação de preços entre várias empresas de venda de serviços informáticos para concorrerem aos concursos públicos e, à vez, uma delas era vencedora. Por outro lado, segundo o mesmo comunicado, a UP “está a colaborar, ativamente, com o trabalho das autoridades e absolutamente empenhada no total esclarecimento de todos os factos relacionados com este processo, admitindo constituir-se como assistente no processo, caso venham a ser deduzidas acusações contra algum dos seus funcionários”.
Também em comunicado, o INEM confirmou “a presença da Polícia Judiciária nas instalações do Instituto em Lisboa, no âmbito de um processo de investigação que envolve outras entidades”, e que O INEM se encontra, “naturalmente, a colaborar com as autoridades, disponibilizando toda a informação solicitada”.
Entretanto, a Procuradoria Europeia revelou, em comunicado, que “foram detidas cinco pessoas, entre as quais um funcionário público”, no âmbito da operação. “Foram executadas medidas de garantia patrimonial no valor de 4,6 milhões de euros, destinadas a assegurar o valor do dano potencialmente infligido ao orçamento da União Europeia”, especificou.
A investigação “tem por propósito a análise de contratos públicos destinados à compra de sistemas informáticos e de cibersegurança para estabelecimentos de ensino público, financiados com fundos do PRR, mediante a suspeita de sérias irregularidades nos procedimentos legais”.
Sem referir o nome, a Procuradoria Europeia revela apenas que o adjudicatário nesses contratos é “um grupo empresarial nacional, e empresas com ele relacionadas, que se dedica à importação, exportação, promoção e comercialização de hardware e software informático”.
As autoridades suspeitam de “crimes de fraude na obtenção de subsídio, corrupção ativa e passiva, participação económica em negócio, recebimento indevido de vantagem, falsificação de documento e abuso de poder”.
De acordo com o Expresso online, o universo das buscas é bastante mais amplo: além da UP, também o BdP, a Secretaria-Geral do Ministério da Administração Interna (SGMAI), o INEM, a Casa da Música, a Águas de Douro e Paiva (AdDP), a Administração dos Portos do Douro Leixões e Viana do Castelo (ADPLVC), a UC, o ISCTE-IUL (Instituto Universitário de Lisboa) e a Brisa estão entre a meia centena de alvos de buscas por todo o país.
O Expresso revela que terá sido a empresa DecUnify, em conluio com outras, a viciar o formato de contratação pública em que é exigido às instituições fazerem uma consulta prévia ao mercado e escolherem a melhor de três propostas. Em causa nesta operação, batizada de Nexus, estarão 20 milhões de euros em compras de hardware e de software, incluindo programas de cibersegurança. Só no BdP foram identificados 1,7 milhões de euros em aquisições feitas, desde 2021, à DecUnify, recaindo as suspeitas sobre um funcionário do mesmo departamento de Sistemas e Tecnologias de Informação cujo diretor foi constituído arguido na operação Pactum, em abril deste ano.
Os detidos serão presentes ao juiz competente no Tribunal de Instrução Criminal do Porto (TICP), responsável pela aplicação das medidas de coação que considere necessárias.
De acordo com o ECO online, as suspeitas recaem, sobretudo, sobre a UP e sobre empresas privadas que venderam sistemas informáticos a preços inflacionados, violando regras da contratação pública.
Por seu turno, a PJ revela, no referido comunicado, que “a investigação teve a sua origem em participação de graves irregularidades em procedimentos aquisitivos públicos de material informático e de cibersegurança, por parte de instituição de ensino superior público do Norte, no âmbito de projetos financiados pelo PRR”, se centrou “na atividade de um grupo empresarial nacional que se dedica à importação, exportação, promoção e comercialização de hardware e software informático”.
De acordo com comunicado da PJ, “as diligências realizadas revelaram a existência de um esquema criminoso, de caráter organizado e sistémico, para obtenção ilegal de informação privilegiada, em procedimentos de contratação pública e privada, através da entrega de vantagens patrimoniais e não patrimoniais a funcionários das entidades contratantes, em subversão das regras da transparência, [da] igualdade e [da] concorrência do mercado e da boa aplicação de fundos públicos, garantindo adjudicações no valor de, pelo menos, 20 milhões de euros”. E terão ainda participado no esquema os produtores/importadores dos produtos e soluções informáticas, com significativo peso no mercado, potenciando as margens de lucro em toda a cadeia de fornecimento.
***
Como explica, no Expresso, a 8 de julho, Micael Pereira, o esquema passava por fingir que havia uma concorrência saudável e justa, nos contratos públicos de compra de material informático. Alegadamente,  a DecUnify conluiou-se  com outras empresas dos setor, para viciar o formato de contratação pública, em que é exigido às instituições fazerem uma consulta prévia ao mercado e escolherem a melhor de três propostas, o que era denominado de concurso limitado.
Desta vez, a PJ e o MP fizeram uma série de buscas em vários pontos do país e detiveram várias pessoas suspeitas de terem participado nessa viciação das regras do jogo. E a PE – um Ministério Público europeu fundado em 2017 – participou na operação de busca a alguns dos alvos, justificando-se o seu envolvimento com o facto de haver aquisições sob suspeita feitas à DecUnify, conexas com sistemas de cibersegurança, que foram financiadas pelo PRR. Com efeito, tratando-se de fundos da UE, caem na sua área de atuação. 
Lembra Micael Pereira que é a segunda vez, no intervalo de três meses, que o BdP é alvo de buscas por parte da PJ. Efetivamente, em abril, “a Operação Pactum constituiu 43 arguidos, a propósito de 17 milhões de euros em compras – também – de material informático”, sendo um deles diretor do departamento de Sistemas e Tecnologias de Informação do BdP, que “foi alvo de buscas no seu local de trabalho”, alegadamente por suspeita “dos crimes de corrupção, de participação económica em negócio, de falsidade informática, de abuso de poder, entre outros, na contratação de serviços informáticos”.
O Observador avançava que os investigadores centraram as suas suspeitas nas “ligações antigas” do arguido, ex-quadro da Portugal Telecom, “aos seus antigos colegas da PT que transitaram para a Meo”.
Mais referia, então, o Expresso online, que a Operação Pactum foi “o resultado da investigação de uma alegada concertação entre funcionários e dirigentes da função pública para controlar a contratação pública de material informático entre 2017 e 2025”.
Na altura, um comunicado conjunto da PJ e da Procuradoria-Geral da República (PGR) explicava que, no centro da investigação se encontrava “um conjunto de indivíduos que, em conjugação de esforços e de forma premeditada, viciaram dezenas de procedimentos de contratação pública e privada, num valor total global não inferior a 17 milhões [de euros]”.
Foram alvo de buscas a Secretaria Geral do Ministério da Justiça e o Departamento de Sistemas e Tecnologias de Informação do BdP, entre outras diligências em Lisboa, no Porto e em Braga.
A megaoperação policial envolveu a unidade anticorrupção da PJ, o DIAP de Lisboa e a Procuradoria Europeia.
***
Os concursos limitados (que postulam a consulta a, pelo menos, três empresas ou serviços), prática frequente na administração pública central e local, desde que o montante não ultrapasse um constante definido legalmente, continuem um expediente ágil e menos burocrático para a aquisição de materiais e de serviços, sobretudo, quando os fornecedores não abundam no mercado e há prazos a cumprir. Todavia, comportam os riscos de cartelização, ou seja, o conluio dos fornecedores potencialmente interessados em acordarem na apresentação do mesmo preço e nas demais condições de fornecimento, o que vai contra os princípios da concorrência; ou os do suposto acordo amigável entre três fornecedores, em que um resolve candidatar-se, com condições de preço e outras, das quais avisa outros dois, que também se candidatam, mas apresentando condições menos plausíveis, o que também, atropela os princípios da concorrência.
Nada disto acontece sem contrapartidas: se não há distribuição de lucros, fica a obrigação de os outros procederem do mesmo modo em circunstâncias similares. E há quem sustente que, às vezes, as entidades adquirentes dos bens e dos serviços e entram na jogada, tomando a iniciativa de a sugerir ou convivendo com ela
Em concursos públicos, sobretudo internacionais, a atitude é diferente: os concorrentes estudam, a preceito, o caderno de encargos, esforçam-se por apresentar as melhores condições de candidatura e, caso discordem dos procedimentos e / ou da decisão final, reclamam e interpõem recurso para os tribunais administrativos e / ou comarcãos, podendo causar a suspensão do processo ou levar à anulação do concurso.
Ora, sabendo como é pesada a burocracia das candidaturas aos fundos europeus, apesar de ter havido, nos últimos anos, agilização dos processos, e tendo em conta que a experiência, na matéria, tem revelado a existência, não rara, de graves desvios comportamentais, não se compreende como as autoridades não tenham promovido atempada vigilância preventiva e concomitante de atitudes como as ora denunciadas. Já Luís de Camões denunciava o perverso poder do vil metal,
E, na verdade, quando as autoridades judiciárias intervêm, na maior parte dos casos, já os estragos são vultosos e, muitas vezes, irreparáveis.
Contudo, há quem se sinta feliz com uma Justiça que não passa de fenómeno espetacular, sem consequências, porque é difícil provar os factos e, consequentemente, apurar, em definitivo, as responsabilidades dos arguidos.  
Vamos ver no que darão 103 buscas, seis arguidos (a juntar aos 43 constituídos de abril) e o desvio de 20 milhões de euros (a juntar aos 17 milhões apurados em abril). Suspeito que, mais uma vez, “mons pariet murem” (a montanha parirá um rato). O futuro di-lo-á.

2025.07.08 – Louro de Carvalho


segunda-feira, 7 de julho de 2025

Novo presidente da Pontifícia Comissão para a Tutela dos Menores

 
De acordo com nota da Sala de Imprensa da Santa Sé, de 5 de julho, o Santo Padre Leão XIV nomeou presidente da Pontifícia Comissão para a Proteção dos Menores o francês Monsenhor Thibault Verny, Arcebispo de Chambéry e Bispo de Saint-Jean-de Maurienne e Tarentaise, até então, membro da mesma Pontifícia Comissão, sucedendo no cargo ao cardeal capuchinho D. Seán Patrick O’Malley, arcebispo emérito de Boston, nos Estados Unidos da América (EUA) e, doravante, também presidente emérito da Pontifícia Comissão, agora, entregue à liderança de Thibault Verny.
Embora algumas vítimas tenham elogiado os esforços da Comissão, ela também foi abalada pelas demissões de vários dos seus membros, ao longo dos anos. Por exemplo, em 2023, renunciou um proeminente padre jesuíta e conselheiro papal, dizendo, publicamente, que tinha preocupações com a forma como o grupo estava a operar.
Esta é a primeira ação pública do Pontífice norte-americano e peruano para enfrentar uma questão que prejudica a credibilidade da Igreja global, admitindo-se que outras se seguirão. Com efeito, os escândalos, protagonizados por membros do clero ou por personalidades com ele colaborantes, prejudicaram a reputação da Igreja como voz moral, levaram a processos judiciais, que custaram milhões de dólares, e resultaram em várias renúncias de bispos

***

Monsenhor Thibault Verny nasceu em Paris, a 7 de novembro de 1965. Depois de se formar em Engenharia Física na École Supérieure de Physique et de Chimie Industrielles, de Paris, ingressou no Seminário Arquidiocesano. Posteriormente, frequentou o Pontifício Seminário Francês, em Roma, e obteve a licenciatura em Teologia Dogmática na Pontifícia Universidade Gregoriana (PUG), também em Roma.

Foi ordenado sacerdote, a 27 de junho de 1998, para a arquidiocese de Paris. Depois, entre 1999 e 2005, foi vigário da paróquia de Saint-Honoré-d’Eylau, capelão do colégio e liceu Janson-de-Sailly, do grupo de escoteiros de Saint-Louis e do colégio Eugène-Delacroix, entre 2001 e 2005, quando se tornou pároco de Notre-Dame de Lorette, cargo que exerceu até se tornar bispo. Entre 2007 e 2016, foi reitor da Magenta-Lafayette Deanery e, desde 2014 até 2016, foi também delegado diocesano para as vocações sacerdotais e religiosas e vigário-geral. Entre 2008 e 2016, foi Oblato do Mosteiro Olivetano de Notre-Dame de la Sainte-Espérance, em Mesnil Saint-Loup.

A 25 de junho de 2016, foi nomeado, pelo Papa Francisco, bispo titular de Lamzella e auxiliar de Paris. Recebeu a ordenação episcopal, a 9 de setembro seguinte, na catedral de Notre-Dame de Paris, das mãos do cardeal André Armand Vingt-Trois , arcebispo de Paris, coadjuvado por Éric Marie Pierre Henri Aumonier, bispo de Versalhes, por Renauld Marie François Dupont de Dinechin, bispo de Soissons, Laon et Saint-Quentin, por Jérôme Daniel Beau, bispo auxiliar de Paris, e por Jean-Pierre Batut, bispo de Blois. E, a 11 de maio de 2023, foi elevado a arcebispo de Chambéry e bispo de Saint-Jean-Maurienne e Tarentaise.

Na Conferência Episcopal Francesa (CEF), é presidente do Conselho para a Prevenção e Luta contra a Pedofilia.

Em comunicado, o seu antecessor na presidência da Comissão, D. Seán Patrick O’Malley – cujo pedido de renúncia ao múnus de arcebispo de Boston foi aceite pelo Papa Francisco, a 5 de agosto de 2024, por ter deixado de ser cardeal eleitor, devido a ter completado 80 anos de idade – começa por salientar que o Papa Leão XIV “afirmou a prioridade contínua do trabalho” da Pontifícia Comissão para a Proteção de Menores para a Igreja Universal, ao nomear D. Thibault Verny, arcebispo de Chambéry, na França. Depois, acentua que testemunhou a “dedicação” de D. Thibault Verny à prevenção de abusos na Igreja, pois trabalhou de perto com o arcebispo nesta comissão, desde 2022, para lá das “importantes contribuições para o trabalho” deste organismo, e lembra que tem “anos de profunda experiência” de trabalho com as autoridades policiais, com outras autoridades civis e com a liderança da Igreja, “para garantir a responsabilização pelas graves falhas da Igreja em França”.

“É uma bênção para todas as pessoas que o Papa Leão tenha confiado a liderança da Comissão ao arcebispo, um líder colaborativo empenhado em fazer avançar a adoção global da proteção e da salvaguarda, para garantir, da melhor forma possível, a segurança daqueles que estão ao cuidado da Igreja, em todo o Mundo”, acrescentou o cardeal frade capuchinho.

D. Seán Patrick O’Malley homenageou também o Papa Francisco, que instituiu a Comissão Pontifícia para a Proteção de Menores da Santa Sé e lembra que, ao longo dos anos, a equipa estabeleceu “políticas e procedimentos de proteção e de salvaguarda, sempre consciente da importância do reconhecimento, da resolução e da paz para todas as pessoas afetadas por abusos”.

“Desejo também expressar a minha gratidão a Sua Santidade o Papa Leão XIV, por garantir que a Comissão continue a ser uma prioridade para a Igreja. As palavras e os atos do Santo Padre, nestes primeiros meses do seu pontificado, asseguram ao Mundo que a Igreja não se tornará complacente nos seus esforços para assegurar, da melhor forma possível, a proteção das crianças, dos adultos vulneráveis e de todas as pessoas nas nossas comunidades”, declarou o presidente emérito deste organismo eclesial. 

***

“Com profunda humildade e sincera gratidão, agradeço ao Santo Padre, o Papa Leão XIV, pela minha nomeação. Estou honrado com a confiança que depositou em mim, plenamente consciente da grave e sagrada missão confiada à Comissão: ajudar a Igreja a tornar-se cada vez mais vigilante, responsável e compassiva na proteção dos mais vulneráveis”, declarou o arcebispo D. Thibault Verny, em comunicado, após a sua nomeação, enviado à Agência Ecclesia, pela sala de imprensa da Santa Sé.

O presidente da Pontifícia Comissão para a Proteção de Menores do Vaticano adiantou que as suas prioridades incluem o apoio às Igrejas locais, especialmente, às que ainda enfrentam desafios na implementação de medidas eficazes de tutela.

“Promoveremos a subsidiariedade e o compartilhamento equitativo de recursos, para que todas as partes da Igreja, independentemente da sua localização ou da sua realidade, possam assegurar os mais altos padrões de proteção”, salientou o arcebispo.

A presidência da Pontifícia Comissão para a Proteção de Menores da Santa Sé estava entregue ao cardeal Seán Patrick O’Malley, desde a sua criação, mas o novo responsável, o arcebispo francês, reafirma o seu compromisso em dar continuidade ao legado do cardeal capuchinho norte-americano, que foi “bússola moral”, em tempos de dificuldade. “A sua liderança corajosa e profética deixou uma marca indelével, não apenas na Igreja, mas na sociedade como um todo. Ele foi incansável em garantir espaço para que as vítimas fossem ouvidas, acreditadas e acompanhadas em sua busca por justiça e cura”, porfiou D. Thibault Verny.

O responsável pela Pontifícia Comissão para a Proteção de Menores da Santa Sé referiu também que conta com “a experiência, a sabedoria e a dedicação” dos seus colegas na Pontifícia Comissão para levarem adiante, juntos, essa missão vital para o presente e para o futuro da Igreja.

“Devemos continuar a implementar uma mentalidade, uma cultura, dentro das Igrejas para difundir a proteção dos menores e fazer com que isso se torne natural, tanto na Igreja como nas famílias, e também na sociedade”, declarou o arcebispo.

***

A Pontifícia Comissão para a Proteção de Menores foi instituída pelo Papa Francisco, em março de 2014. Agora, o presidente salientou, em entrevista ao portal de notícias do Vaticano, “Vatican News”, que “não tem a função de substituir as estruturas locais e as Conferências Episcopais”. “Trata-se de conscientizar os diferentes episcopados, ordens e congregações religiosas nos diversos países sobre a escuta e o acompanhamento específico das vítimas. Dentro da Pontifícia Comissão para a Tutela dos Menores, é fundamental que haja vítimas e [que] os seus pais e familiares que tragam a sua experiência insubstituível”, especificou.

O “Vatican News” considerou que o prelado francês tem uma “longa experiência pastoral e institucional na escuta das vítimas”, no acompanhamento de processos de justiça e “na articulação com autoridades civis e eclesiásticas”, foi presidente do Conselho para a Prevenção e o Combate à Pedofilia, na Conferência Episcopal Francesa, até junho deste ano, tendo esta função passado a ser desempenhada por D. Gérard Le Stang, bispo de Amiens.

O compromisso de D. Thibault Verny consolidou-se, especialmente, no processo de criação da Comissão Independente sobre Abusos Sexuais na Igreja (CIASE), culminando com o relatório Sauvé, e na instituição da Instância Nacional Independente de Reconhecimento e Reparação (INIRR), organismo voltado à reparação e à indemnização das vítimas.

***

De facto, é preciso combater, até ao êxito total, os abusos sexuais de menores e de outras pessoas abrangidas por especial fragilidade, seja na Igreja, seja noutros setores. Deixemo-nos de preconceitos e de parcialidades: o mal deve ser combatido em todos os campos onde se infiltrou, mesmo que tenha um só autor, uma só vítima, configure um só ato. É imoral acusar, hipócrita e parcialmente a Igreja Católica e esconder o que se passa noutros domínios, eclipsando outras realidades e outras responsabilidades. Embora a Igreja Católica tenha obrigações maiores, nem por isso mal deixa de ser mau o crime, quando praticado noutras latitudes. E, conquanto as vítimas devam ser protegidas e compensadas e embora os criminosos devam ser julgados e, eventualmente, condenados, penal e civilmente, não é lícito precipitá-los no inferno, como tantas pessoas sustentam.

2025.07.07 – Louro de Carvalho


Repúdio a “declarações xenófobas e exposição indevida de menores”

 

Sob o título “Associações de pais divulgam carta de repúdio a ‘declarações xenófobas e exposição indevida de menores’ pelo Chega”, João Sundfeld, no Expresso online, dá nota, a 7 de julho, de uma carta aberta de sete associações de mães, pais e encarregados de educação de escolas em Lisboa a repudiar o que entendem como declarações xenófobas e exposição indevida de menores por deputados do partido do Chega.
O episódio ocorreu nas redes sociais e na Assembleia da República (AR), no final da semana anterior, no âmbito da discussão parlamentar sobre propostas de lei do governo (e de projetos de lei de alguns partidos, nomeadamente, do Chega) atinentes às alterações à Lei da Nacionalidade (Lei n.º 37/81, de 3 de outubro, cuja última alteração lhe foi introduzida pela Lei Orgânica n.º 1/2024, de 5 de março) e à Lei dos Estrangeiros (Lei n.º 23/2007, de 4 de julho, cuja última alteração lhe foi introduzida pela Lei n.º 9/2025, de 13 de fevereiro), com a divulgação, por Rita Matias e por André Ventura, dos nomes de alunos de uma turma de jardim de infância de uma escola pública.

Na carta aberta – endereçada ao Presidente da República (PR), ao presidente da Assembleia da República (PAR), aos partidos políticos com assento parlamentar e ao presidente da Câmara Municipal de Lisboa (CML) –, as associações em causa sustentam que os autores da referida divulgação procederam à exposição destas crianças, para alimentar uma narrativa de ódio que vai contra a Constituição, da República Portuguesa (CRP), cujo artigo 26.º, n.º 2, prevê que “a lei estabelecerá garantias efetivas contra a obtenção e utilização abusivas, ou contrárias à dignidade humana, de informações relativas às pessoas e famílias”. Isto, em consonância com o n.º 1 do mesmo artigo, que estabelece: “A todos são reconhecidos os direitos à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade, à capacidade civil, à cidadania, ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra, à reserva da intimidade da vida privada e familiar e à proteção legal contra quaisquer formas de discriminação.

Num primeiro ponto da carta aberta, as entidades subscritoras “repudiam, veementemente, as atitudes dos deputados do Chega”, aduzindo que tal ato é de uma gravidade extrema, viola o direito à privacidade [das crianças] e coloca-as como alvo de ódio e discriminação num espaço onde deveriam estar protegidas: a escola públicaPor outro lado, declaram que “a instrumentalização de crianças, especialmente, num contexto político, é irresponsável e perigosa”.

Depois, desmentem a alegação daqueles políticos de que “os imigrantes são favorecidos no processo de matrícula em instituições de ensino públicas”, uma vez que, segundo as entidades subscritoras, o processo de colocação em jardins de infância públicos obedece a critérios legais claros, transparentes e públicos”, para o que citam o Despacho Normativo n.º 10-B/2021, de 14 de abril, que “define a ordem de prioridade para alunos se inscreverem em instituições de ensino, sem qualquer menção à nacionalidade do estudante ou dos pais”.

Além disso, como afirmam, “qualquer encarregado de educação tem ao seu dispor mecanismos legais e administrativos para apresentar reclamações e pedidos de esclarecimento adicionais nas entidades.”

***

Embora concorde com o teor da carta aberta e com os seus fundamentos, como a discurso frívolo se há de responder com rigor, entendo por conveniente precisar que o despacho normativo a referir deveria ter sido o Despacho Normativo n.º 6/2018, de 12 de abril, que “estabelece os procedimentos da matrícula e respetiva renovação e as normas a observar na distribuição de crianças e alunos”, com as alterações introduzidas pelos despachos normativos n.os 5/2020, de 21 de abril, e 10-B/2021, de 14 de abril, tendo cada um deles republicado o diploma original, com as respetivas alterações.

A norma específica em causa é o seu artigo 10.º, cuja epígrafe é “Prioridades na matrícula ou renovação de matrícula na educação pré-escolar” e cujo teor se transcreve, para que não restem dúvidas:

“1 - Na educação pré-escolar, as vagas existentes em cada estabelecimento de educação, para matrícula ou renovação de matrícula, são preenchidas de acordo com as seguintes prioridades:

1.ª Crianças que completem os 5 e os 4 anos de idade até dia 31 de dezembro, sucessivamente, pela ordem indicada;

2.ª Crianças que completem os 3 anos de idade até 15 de setembro;

3.ª Crianças que completem os 3 anos de idade entre 16 de setembro e 31 de dezembro.”

“2 - No âmbito de cada uma das prioridades referidas no número anterior, e como forma de desempate em situação de igualdade, são observadas, sucessivamente, as seguintes prioridades:

1.ª Crianças com necessidades educativas específicas de acordo com o previsto nos artigos 27.º e 36.º do Decreto-lei n.º 54/2018, de 6 de julho [que “estabelece o regime jurídico da educação inclusiva”], na redação conferida pela Lei n.º 116/2019, de 13 de setembro (em virtude da apreciação parlamentar);

2.ª Filhos de mães e pais estudantes menores, nos termos previstos no artigo 4.º da Lei n.º 90/2001, de 20 de agosto [que “define medidas de apoio social às mães e pais estudantes], na redação conferida pela Lei n.º 60/2017, de 1 de agosto [que lhe introduziu a primeira alteração];

3.ª Crianças com irmãos ou com outras crianças e jovens, que, comprovadamente, pertençam ao mesmo agregado familiar, a frequentar o estabelecimento de educação e de ensino pretendido, nos termos previstos no n.º 4 do artigo 2.º;

4.ª Crianças beneficiárias de ASE [Ação Social Escolar], cujos encarregados de educação residam, comprovadamente, na área de influência do estabelecimento de educação e de ensino pretendido;

5.ª Crianças beneficiárias de ASE, cujos encarregados de educação desenvolvam a sua atividade profissional, comprovadamente, na área de influência do estabelecimento de educação e de ensino pretendido;

6.ª Crianças cujos encarregados de educação residam, comprovadamente, na área de influência do estabelecimento de educação e de ensino pretendido;

7.ª Crianças mais velhas, contando-se a idade, para o efeito, sucessivamente, em anos, meses e dias;

8.ª Crianças cujos encarregados de educação desenvolvam a sua atividade profissional, comprovadamente, na área de influência do estabelecimento de educação e de ensino pretendido;

9.ª Outras prioridades e ou critérios de desempate definidos no regulamento interno do estabelecimento de educação e de ensino.”

“3 - Na renovação de matrícula na educação pré-escolar é dada prioridade às crianças que frequentaram, no ano anterior, o estabelecimento de educação e de ensino que pretendem frequentar, aplicando-se, sucessivamente, as prioridades definidas nos números anteriores.”

***

Por fim, as referidas sete associações reconhecem os problemas de oferta pública para a educação pré-escolar em Lisboa (não só em Lisboa, digo eu), reiteram que a solução não está, nem nunca poderá estar, na discriminação e exclusão de crianças, mas no investimento e [no] aumento da oferta pública ou em parceria com a rede de IPSS [Instituições Particulares de Solidariedade Social]. E, antes de finalizarem o documento, afirmam que a diversidade nas nossas escolas reflete a riqueza e pluralidade das comunidades onde vivemos, recusando o medo, a divisão e o preconceito.

O texto, como refere o articulista, é assinado por organizações de pais, mães e encarregados de educação dos seguintes estabelecimentos de ensino: Agrupamento de Escolas Gil Vicente, Agrupamento de Escolas Patrício Prazeres, EB1 Arquiteto Victor Palla, EB1 Sampaio Garrido, EB1+JI Rainha Santa Isabel, Escola Mestre Arnaldo Louro de Almeida e Associação de Pais de São José.
O tema, que foi mencionado no Expresso Curto, do dia 7, foi também desenvolvido em dois artigos de opinião, no mesmo dia, assinados por Henrique Raposo (“André Ventura e Rita Matias: portugueses de mal”) e por Daniel Oliveira (“Morreu o ‘não é não’. A abjeção foi manobra de diversão”).
Não obstante, é estranho que não tenha havido uma pública tomada de posição da parte das confederações interessadas na matéria, nomeadamente, a Confederação Nacional das Associações de Pais (Confap) e a Confederação Nacional Independente de Pais e Encarregos de Educação (CNIPE). Isto, para não falar do próprio Ministério da Educação, Ciência e Inovação (MECI) ou do Conselho Nacional de Educação (CNEDU), órgão independente integrado no MECI, e do Conselho das Escolas (CE), órgão consultivo do MECI.   

Como foi referido, os deputados André Ventura (na AR) e Rita Matias (nas redes sociais), do Chega, “divulgaram os nomes de crianças, alegadamente imigrantes, que frequentam o jardim de infância numa escola pública de Lisboa”. Tais políticos defendem, sem provas, que “jovens nascidos noutros países têm prioridade no acesso escolar, em Portugal”.

O caso foi objeto de várias críticas, entre as quais se destaca, a 4 de julho, após as declarações de André Ventura, a reação de Isabel Mendes Lopes, líder parlamentar do Livre, que se emocionou e pediu à Mesa da Assembleia da República que não deixasse que sejam ditos nomes de crianças no Parlamento. E, mais tarde, André Ventura utilizou as redes sociais para criticar a deputada e para reiterar, novamente e sem provas, a existência de uma suposta transformação demográfica em curso.

***

O problema está longe de ser exclusivo de Lisboa e do setor da Educação. Para o discurso populista, que invadiu todos os contextos e que se tornou a pérola no debate social e político, tudo serve: o vazio legislativo, o excesso de legislação, a inexatidão, a mentira, as diversas discriminações, as imoralidades e as corrupções (nos outros), as suspeitas de criminalidade violenta e organizada (da parte dos outros) e a “perceção” de insegurança (muita da qual originada neles próprios).
Até há pouco tempo – na ausência de capacidade de resposta pelo discurso contundente, mas lúcido, e de incapacidade ou de falta de vontade de definição de política públicas que atalhassem os males que os sebastianistas denunciavam e para os quais acenavam com programas de limpeza geral –, procedia-se a cercas políticas, inclusive, no espaço parlamentar e nas viagens de representação. E, quanto mais críticas à flor da pele e quanto mais cercas, mais o partido crescia e ganhava simpatizantes! Agora, porém, a reação dominante é o silêncio e a introdução, ora subtil, ora ostensiva, da “cheguização” no discurso governativo e em diplomas legislativos estruturantes.
Assim, com o silêncio, pior do que a insuficiência de políticas públicas necessárias (Roma e Pavia não se fizeram num dia, mas fizeram-se), a democracia abre as portas aos seus detratores e aos seus inimigos.
Pela dignidade humana e pelo bem-estar comunitário, é preciso zelar pela democracia.

2025.07.07 – Louro de Carvalho

domingo, 6 de julho de 2025

Vocação-missão para uma seara grande e oração por mais operários

 
Na liturgia do XIV domingo do Tempo Comum no Ano C, sobressai a temática do envio. Deus escolhe pessoas, confia-lhes uma missão e envia-as ao Mundo, para agirem em nome de Deus, testemunhando, no meio dos irmãos, o desígnio de Deus tem para os homens.
***
Evangelho (Lc 10,1-12.17-20) relata que Jesus, quando se dirigia para Jerusalém, enviou setenta e dois (72) discípulos à sua frente, “a todas as cidades e lugares aonde Ele devia de ir”. A missão deles é a de Jesus: apresentar a Boa Nova do Reino de Deus e curar todos os feridos pela dureza da vida ou pela maldade humana. Pela ação dos enviados de Jesus, concretiza-se a vitória do Reino de Deus sobre tudo o que oprime e escraviza as pessoas.
Num primeiro momento, Lucas narra o envio dos 72; e, num segundo, descreve o seu regresso e explicita o comentário de Jesus ao desempenho missionário deles.
O número dos 72 discípulos, escolhidos por Jesus e envolvidos na missão, é simbólico e deve ser relacionado com Gn 10, na versão grega do Antigo Testamento (AT), onde o número se refere à totalidade das nações pagãs que habitam a Terra. Assim, o número dos enviados sugere que o Reino de Deus é universal, isto é, abrange todos os povos da Terra.
Os discípulos foram enviados dois a dois, visto que andar acompanhado era exigência para os viajantes antigos: auxiliavam-se mutuamente no caminho e enfrentavam, com possibilidade de êxito, os ataques dos malfeitores. Ao mesmo tempo, refere-se à validade do testemunho que os enviados são chamados a dar: a lei judaica determinava que o testemunho isolado não bastava; só com o depoimento de duas ou três testemunhas é que o caso seria tomado em conta. E sugere que o anúncio do Evangelho é tarefa comunitária.
Os discípulos são enviados às aldeias e localidades aonde Jesus “havia de ir”, porque a missão deles é, cooperando com Jesus, levar a Boa Nova de Jesus a todos os lugares onde a salvação de Deus deve chegar. Além disso, a tarefa dos discípulos não é pregar a sua própria mensagem, mas preparar o caminho de Jesus e dar testemunho d’Ele.
Antes de os 72 se porem a caminho, Jesus dá-lhes indicações, recorrendo a imagens tiradas da ruralidade, sobre a forma como devem abordar e desempenhar a missão. Avisa-os da dificuldade da missão: são enviados “como cordeiros para o meio de lobos”. É uma imagem que, no AT, descreve a situação do justo, perdido no meio dos pagãos. Aqui, expressa a situação do discípulo fiel, que tem de enfrentar a hostilidade e a perseguição por causa do testemunho a dar. A missão discipular é missão perigosa, que pode chegar à cruz.
Depois, Jesus define, em pormenor, a forma como os discípulos devem agir em missão: não levar consigo nem bolsa, nem alforge, nem sandálias; não deter-se a saudar ninguém, pelo caminho; não saltar de casa em casa. A indicação de não levar nada para o caminho sugere que a força do Evangelho não reside nos meios materiais, mas na força libertadora da Palavra; a de não saudar ninguém pelo caminho indica a urgência da missão (não permitindo deter-se nas intermináveis saudações típicas da cortesia oriental, sob pena de o essencial – o anúncio do Reino – ser continuamente adiado); a de não saltar de casa em casa sugere que a preocupação fundamental dos discípulos é a dedicação total à missão e não o encontrar de hospitalidade mais confortável. Despojados dos bens materiais, sem preocupações com o bem-estar ou com a própria segurança, libertos da ansiedade sobre como vão ser acolhidos, os enviados estão completamente disponíveis para servir o Reino de Deus. E esta é a sua preocupação suprema.
O anúncio fundamental dos discípulos a todos aqueles com quem se cruzarem deve começar pela “paz”, não saudação habitual com que os Judeus se cumprimentavam (“shalom”), mas o anúncio da paz messiânica, que alcança o coração e a vida dos homens com a irrupção do Reino de Deus, o anúncio do Mundo novo de fraternidade, de harmonia com Deus e com os outros, de bem-estar, de felicidade (tudo o que a palavra hebraica “shalom” sugere), que se concretiza com Jesus.
Contudo, esse anúncio deve ser acompanhado por gestos concretos de libertação e de cura, que mostrem a presença libertadora do Reino no meio dos homens.
As palavras de ameaça às cidades que recusem acolher a mensagem não devem ser tomadas à letra: são forma oriental de sugerir que a rejeição do Reino trará consequências nefastas à vida dos que optam por girar em rotas de egoísmo, de orgulho e de autossuficiência.
Depois, Lucas refere o resultado da ação missionária dos discípulos. Diz, antes de mais, que “voltaram cheios de alegria” e a comentar o triunfo do Reino de Deus sobre o mal. A alegria sentida é a alegria de quem se sente colaborador de Deus na obra da salvação.
As palavras de Jesus no acolhimento aos discípulos descrevem, figuradamente, a presença do Reino como realidade libertadora (“Eu via Satanás cair do céu como um relâmpago. Dei-vos o poder de pisar serpentes e escorpiões e dominar toda a força do inimigo; nada poderá causar-vos dano”): as serpentes e escorpiões simbolizam as forças do mal que escravizam o homem; a “queda de Satanás” significa que o reino do mal se desfaz, confrontado com o Reino de Deus.
Apesar do êxito, Jesus põe os discípulos de sobreaviso para o orgulho pela obra feita: não devem ficar contentes pelo poder que lhes foi confiado, mas porque os seus nomes estão “inscritos no céu”. A imagem de livro onde estão inscritos os nomes dos eleitos é frequente, particularmente, nos apocalipses. Aqueles cujos nomes constam desse livro estão destinados à vida verdadeira.
A Igreja nascida de Jesus e que caminha com Ele é Igreja missionária. A sua missão é testemunhar Jesus em todos os lugares onde a Boa Nova deve chegar. Neste episódio do caminho para Jerusalém, temos um manual de instruções para os discípulos de todas as épocas, enviados ao Mundo a anunciar a salvação de Deus. São cordeiros no meio de lobos. Os lobos perseguem ostensivamente ou atacam subtilmente; ridicularizam ou mergulham na indiferença; podem não ouvir, mas criticar destrutivamente; e podem, até, encaminhar para proveito próprio o trabalho do discípulo, bajulando-o e instrumentalizando-o   
***
Na primeira leitura (Is 66,10-14c), um profeta anónimo, enviado aos desanimados habitantes de Jerusalém, proclama o amor de pai e de mãe que Deus tem pelo seu Povo. O profeta é um enviado de Deus, pelo qual Deus consola os seus filhos, os liberta do medo e lhes acena com a esperança do Mundo novo que está para chegar.
A Jerusalém, cidade destruída e calcinada, que parecia viúva vestida de luto, tornar-se-á a mãe solícita e generosa, que alimenta os seus filhos retornados do Exílio e cuida deles com o amor que só as mães sabem oferecer. Os cuidados maternais que a mãe/Jerusalém proporcionará aos filhos famintos e enfraquecidos são descritos com imagens fortes, que insinuam a fecundidade e a vida em abundância: dos esplêndidos peitos da mãe, os filhos beberão um leite abundante, até ficarem saciados. Todavia, é Deus quem está por trás dessa corrente de vida que revitalizará os filhos de Jerusalém. Deus fará com que a paz corra como um rio e oferecerá ao seu povo a prosperidade, a abundância, a riqueza, a segurança, a vida infinda. Deus é como a mãe que cuida dos filhos, os acaricia, os consola, os alimenta, e lhes oferece vida abundante. O amor de mãe não falha e o amor de Deus também não.
Encantados com a ternura de Deus, os filhos sentirão irreprimível alegria, que fará com que os seus corações batam mais forte; e ganharão a força que lhes permitirá enfrentar as vicissitudes e as inquietações que a vida lhes traga.
Nesta imagem de Deus como a mãe cheia de amor pelos filhos temos, transparece um dos pontos altos da revelação veterotestamentária de Deus.
***
Na segunda leitura (Gl 6,14-18), Paulo indica, com base na sua experiência, a preocupação primeira do enviado de Jesus. No centro do deu testemunho deve estar a cruz de Jesus, isto é, a forma como Ele amou, até ao extremo de dar a vida por todos. Paulo, no que lhe diz respeito, procurou tal desiderato, como o provam as feridas que recebeu no serviço ao Evangelho.
Na opinião do apóstolo, os judaizantes (pregadores que queriam obrigar os Gálatas a observar as prescrições da Lei de Moisés) movem-se por duas preocupações. A primeira é evitar a perseguição: se a Igreja nascida de Jesus conservasse as práticas judaicas, seria tida pelas autoridades romanas como um mero ramo do judaísmo, gozando do estatuto de religião lícita, e não seria perseguida pelo império. A segunda é evidenciarem-se: mostrando o sucesso do seu proselitismo (prosélito era o pagão convertido à observância da fé judaica), seriam altamente considerados nos ambientes judaicos.
Porém, essas razões, não têm qualquer importância para o apóstolo, nada preocupado em evitar as perseguições, nem em concitar aplausos humanos. O único título de glória que lhe interessa é a cruz do Senhor Jesus Cristo, pois está cônscio de que a salvação do homem vem de Cristo, da sua entrega por amor, do dom de Si próprio que Ele fez na cruz. Por isso, Paulo não prega a circuncisão, nem outras práticas da Lei judaica; prega a vitória da cruz. Da cruz – do dom de si próprio, do amor até ao extremo – é que brota a vida. Da cruz de Jesus, do seu amor, da sua entrega, nasce a nova Humanidade, a nova Criação.
Paulo enuncia um dos seus temas favoritos, a que voltará nas cartas posteriores (nomeadamente, em Romanos, Efésios e Colossenses): o tema do Homem Novo. Na ótica paulina, a identificação do cristão com o Cristo da cruz tornará possível o aparecimento do Homem Novo, liberto do egoísmo e da preocupação consigo próprio, capaz de amar sem medida. Esse Homem Novo, feito à imagem de Cristo, vencerá o egoísmo, a autossuficiência, o orgulho, o pecado e a morte. Com ele irromperá, na História, a nova criação, a vida plena e a felicidade sem fim.
Paulo luta para alcançar esse objetivo. Aliás, já leva “no seu corpo as marcas de Jesus”. Esta indicação não parece referir-se aos sinais físicos da paixão de Jesus (“estigmas”), mas às cicatrizes deixadas pelas feridas recebidas por Paulo no exercício do apostolado. Na sociedade greco-romana, o escravo levava uma marca, como sinal da pertença a um dono; assim, as marcas do seu sofrimento por causa do Evangelho mostram que Paulo pertence a Cristo: por elas, Paulo mostra a sua pertença inalienável a Cristo, cujo amor se fez entrega na cruz, e afirma a vontade de viver como Cristo e de colocar a sua vida ao serviço do Evangelho e dos irmãos.
A saudação final (“irmãos, a graça de Nosso Senhor Jesus Cristo esteja com o vosso espírito. Amen”), constitui um apelo à comunhão e manifesta a esperança do apóstolo no restabelecimento da fraternidade. 
***
O Santo Padre Leão, antes da recitação do Angelus com a multidão reunida na Praça de São Pedro, em Roma, encarou o Evangelho desta dominga com a lente da importância da missão, a que todos somos chamados, cada um segundo a própria vocação, nas situações concretas em que o Senhor o colocou. E releva que o número simbólico dos 72 discípulos enviados releva que a esperança do Evangelho é destinada a todos os povos: é essa a grandeza do coração de Deus, a sua messe abundante, isto é, a obra que Ele faz, no Mundo, para que todos os seus filhos sejam abrangidos pelo seu amor e sejam salvos.
Ao mesmo tempo, o Pontífice chama a atenção para a verificação que Jesus faz: “A seara é grande, mas os trabalhadores são poucos” e para a sua exortação: “Pedi ao dono da seara que mande trabalhadores para a sua seara.”
Subjaz aqui a inspiração para o método de revisão de vida assumido pela Ação Católica: “ver, julgar e agir”. Vemos que a seara é grande e, olhando para o número dos trabalhadores, parecem-nos poucos e são-no. Por isso, há que agir. E a primeira forma de agir é rezar.    
Por um lado, diz o Papa, como um semeador, Deus saiu pelo Mundo a semear com generosidade e colocou no coração do Homem e da História o desejo do infinito, da vida plena, da salvação que o liberte. Por isso, a seara é grande: o Reino de Deus, como semente, “germina no solo” e as mulheres e os homens de hoje, mesmo quando parecem dominados por tantas outras coisas, “esperam uma verdade maior, procuram um sentido mais pleno para as suas vidas, desejam a justiça, levam dentro de si um anseio de vida eterna”. Por outro lado, são poucos os operários a trabalhar no campo semeado do Senhor e capazes de reconhecer, com os olhos de Jesus, o bom trigo que está pronto para a colheita. Há algo grande que o Senhor quer fazer na nossa vida e na História da Humanidade, mas poucos são os que se apercebem disso, que param para acolher o dom, que o anunciam e o levam aos outros.
Diz o Sumo Pontífice Leão que a Igreja e o Mundo não precisam de pessoas que cumpram os deveres religiosos, mostrando a fé como simples rótulo exterior, mas de operários desejosos de trabalhar no campo da missão, de discípulos apaixonados que testemunhem o Reino de Deus onde quer que estejam. Talvez não faltem “cristãos de ocasião”, que, só de vez em quando, dão lugar a algum sentimento religioso ou participam em algum evento; mas poucos são os prontos a trabalhar, todos os dias, no campo de Deus, cultivando, no coração, a semente do Evangelho, para a levarem à vida quotidiana, à família, aos locais de trabalho e de estudo, aos vários ambientes sociais e aos que se encontram em necessidade. Para tanto, não são necessárias grandes teorias de conceitos pastorais: é preciso, acima de tudo, rezar ao dono da messe, pois, em primeiro lugar, está a relação com o Senhor, cultivando o diálogo com Ele. E será Ele que nos tornará seus operários e nos enviará ao campo do Mundo como testemunhas do seu Reino.
Que a Virgem Maria, que participou na obra da salvação oferecendo, generosamente, o seu “Eis-me aqui”, interceda por nós e nos acompanhe no caminho do seguimento do Senhor, para que possamos tornar-nos operários alegres do Reino de Deus.
***
“A Terra inteira aclame o Senhor.”
“Aclamai a Deus, Terra inteira, / cantai a glória do seu nome, / celebrai os seus louvores, dizei a Deus: / ‘Maravilhosas são as vossas obras’.
“A Terra inteira Vos adore e celebre, / entoe hinos ao vosso nome. / Vinde contemplar as obras de Deus, / admirável na sua ação pelos homens.
“Mudou o mar em terra firme, / atravessaram o rio a pé enxuto. / Alegremo-nos n’Ele: / domina eternamente com o seu poder.
“Todos os que temeis a Deus, vinde e ouvi, / vou narrar-vos quanto Ele fez por mim. /Bendito seja Deus que não rejeitou a minha prece, / e não me retirou a sua misericórdia.”

2025.07.06 – Louro de Carvalho


Mesquita em Samora Correia gera polémica nos partidos políticos

 
No dia 10 de junho, em Samora Correia, a freguesia mais populosa do município de Benavente, (são cerca de 18 mil habitantes, mais do dobro da população concelhia), no distrito de Santarém, ocorreu uma manifestação de cerca de 200 pessoas, com o grito “Mesquita não, não queremos o Islão”, com início junto da igreja matriz e termo no lugar onde pode vir a existir a mesquita que a Associação Ahmadia do Islão (AAI) pretende construir na freguesia.
O protesto “pelas tradições e costumes”, que terminou com a entoação do hino nacional foi organizado por um político independente, depois de se ter desvinculado do partido Chega, mas teve a participação do Partido Social Democrata (PSD), do Partido Socialista (PS), que terá sido especialmente ativo na mobilização da manifestação, e do Chega. Com efeito, assim pensam ter benefício nas eleições autárquicas de 12 de outubro. Os populares diziam que a freguesia “não pode ser invadida por uma cultura que põe em causa os seus valores”. “Eles entram de mansinho, instalam-se e depois já ninguém os consegue tirar daqui”, disse um residente.
Entretanto, duas cabeças de porco, atravessadas pelo espeto, foram atiradas para o terreno que a 
AAI adquiriu e jazem na erva amarela, a poucos metros da Estrada Nacional 119, o que passa despercebido, visualmente, a quem por ali passa de carro, mas quem por ali passe a pé ou de bicicleta, sente o cheiro a putrefação, que se instalou para lá do portão, depois de três dias em que os termómetros marcaram mais de 40°C.
Naquela autarquia historicamente comunista, onde o presidente está no último mandato, mas a corrida para as autárquicas segue em forçam os 4406 metros quadrados junto à placa que marca a entrada em Samora Correia viraram a móbil da discussão política local, mas com reflexo na política nacional. Está em causa a compra do terreno privado, no final de janeiro, pela AAI, comunidade religiosa islâmica (para quem o porco é “haram”, ou seja, proibido) que tem presença, no país, desde 1987 e pretende ali construir um complexo religioso, incluindo a sua primeira mesquita em Portugal.
O presidente da Câmara Municipal de Benavente, Carlos Coutinho, da Coligação Democrática Unitária (CDU) recebeu a associação no final do verão de 2024 e declarou não haver razão para a construção da mesquita, por não existir uma comunidade muçulmana no município que “justificasse a construção de um equipamento desta dimensão”. Após informar os vereadores, que concordaram, unanimemente, com tal declaração, o edil comunicou à AAI a “posição reforçada pelas forças políticas com assento na câmara” e pensou que o assunto tinha morrido.
Porém, no final de abril, o PS levantou o tema na Assembleia Municipal. E, em maio, o Chega partilhou vídeos nas redes so­ciais, prometendo que “jamais” seria construída uma mesquita em Samora Correia, pois, na ótica do candidato do Chega a Benavente, Frederico Colaço Antunes, “o Chega tem uma posição muito clara sobre a islamização da Europa e de Portugal”, pelo que não deixa portas abertas ou semiabertas, sendo contra a ideia de fazer uma mesquita no concelho. E, no último vídeo, o partido vangloria-se da “missão cumprida”. Contudo, em apenas um mês, o tema chegou à comunicação social nacional e levou as concelhias do PS e do PSD a pronunciarem-se contra o projeto. “O tema da mesquita é consensual e todos os partidos se vincularam, menos a CDU, porque sabiam que, se não o fizessem, ficariam para trás nesta corrida (eleitoral)”, anota o candidato do Chega.
Todavia, foi o PS que mais empolou o caso. A 30 de maio, Pedro Gameiro (deputado municipal e candidato autárquico) surge, num vídeo partilhado nas redes sociais da concelhia socialista, a afirmar: “Para o PS, a mesquita não se fará aqui nem em lado nenhum do nosso concelho.” Porém, ao ser interpelado, remeteu para o comunicado de 16 de junho, em que a concelhia garante, que nada move o PS local contra “qualquer confissão religiosa que respeite a nossa ordem constitucional”, mas que está contra o projeto, por ter o plano de transformar o terreno privado num parque urbano, já que os “espaços mais nobres” da cidade devem ser “reservados, prioritariamente, para investimentos de maior interesse local”
Tal postura caiu mal na estrutura nacional do PS, com figuras de proa a expressar “vergonha” e a incentivar o secretário-geral a “repudiar, de forma inequívoca”, esta posição. E José Luís Carneiro admitiu que “foi dito o que não devia ter sido dito” e que ser candidato pelo PS implica o compromisso “com valores constitucionais” e com a liberdade religiosa. E, no final de junho, o PS perdeu um dos deputados municipais, que critica o rumo de “demagogia” e de “enganar pessoas” da concelhia, neste caso.
O PS, o Chega e o movimento ultranacionalista Reconquista estiveram na manifestação a 10 de junho em que pessoas bradavam “Mesquita aqui não, não queremos o Islão” e empunhavam bandeiras nacionais atrás de uma tarja, onde se lia: “Mesquita não! Pelas tradições e costumes”, que afixaram na vedação do terreno.
Um dos naturais de Samora Coreia, onde reside, denuncia a forma doentia como “hostilizam as pessoas”, nas redes sociais e no espaço público, e lamenta o discurso de ódio de pessoas que conheceu a vida toda e a desinformação que se tem espalhado. Releva que “não se fala de mais nada” e que há um clima de intimidação contra quem discorda. Só viu algo similar em relação aos antitouradas”, mas o convívio com comunidades imigrantes sempre foi pacífico. Ora, Samora Correia tem 17 espaços religiosos e a Igreja Universal do Reino de Deus tem vários prédios e nunca se levantou qualquer celeuma.
Nelson Lopes, presidente da Associação Social Amigos de Samora Correia (ASASC), projeto social que apoia “situações de emergência” no concelho, refere que o seu grupo se pronunciou, publicamente, sobre o tema, apelando à “serenidade”, mas esclarece que não tem “nada contra nem nada a favor” da mesquita, concordando até que a pequena dimensão da comunidade pode “não justificar” o projeto.
“O que nos choca é o preconceito, e nós próprios temos sido alvo, um pouco, desse preconceito. Como temos a porta aberta a todos, também nos acusam de só ajudar os de fora”, nota Manuel Silva, tesoureiro da ASASC, que explicita: “Cavalgou-se a ideia da mesquita, apenas para incrementar o ódio contra comunidades imigrantes. […] Isto é a antítese do que nós queremos para a nossa terra.” E, evocando o “coração quente ribatejano” (é residente na freguesia, mas não seu natural) com que foi acolhido na comunidade, confessa: “Quero acreditar que isto é um núcleo que cavalga estas novas realidades, para garantir proveitos próprios, sejam políticos ou económicos, porque a nossa gente não é assim.”
Frederico Colaço Antunes, assegurando que não foi ninguém do Chega que atirou as cabeças de porco para o terreno, salienta que “o Ribatejo é protecionista, tradicional e tem tradições muito vincadas do campo e da tauromaquia”, não sendo o porco no espeto uma provocação, como outro partido fez no Martim Moniz, mas só “uma tradição”. E, descartando ter motivações “xenófobas ou racistas”, diz opor-se à mesquita, por se tratar de uma “cultura invasiva”, e afirma que a AAI “põe em causa os valores do Ribatejo, porque é hostil”, não respeita os direitos humanos e das mulheres e não está disposta a integrar-se.
Tais acusações são rejeitadas, veementemente, por Fazal Ahmad, presidente da Ahmadia em Portugal, garantindo que a AAI não rouba as tradições e costumes da comunidade local, ao invés do que dizem as redes sociais, e lamentando que tenham postado “vídeos e imagens que não têm nada a ver com a nossa comunidade”, que “é muito pacífica” e que não está envolvida em qualquer ato de extremismo e terrorismo”, apesar de perseguida no Paquistão natal de Fazal Ahmad, que também é português, pois solicitou a naturalização, após 11 anos de permanência.
Desde 2019, a comunidade (com cerca de mil membros em Portugal) procurava local para edificar a sua mesquita. Aluga, desde 2010, um armazém em Odivelas, mas o espaço tornou-se exíguo. Com a comunidade concentrada, sobretudo, em Lisboa, em Loures e em Odivelas, Samora Correia tornou-se opção, pela proximidade à capital, pele acessibilidade e por o custo do terreno (300 mil euros) estar “dentro do orçamento alocado à compra do terreno”.
Benavente deve a atratividade à localização às portas de Lisboa e aos preços comparativamente mais acessíveis, bem como ao facto de manter área florestal e agrícola. Após enorme crescimento, nos anos 80, voltou a sentir maior procura, com o novo aeroporto projetado para o Campo de Tiro de Alcochete, maioritariamente, situado na freguesia de Samora Correia, que é o maior polo urbano do município.
***
A AAI – fundada na passagem do século XIX para o século XX e estabelecida e legalizada, em Portugal, desde 1987, que representa um grupo muçulmano nascido na Índia, com interpretação pacifista e tolerante do Islão, missionário e perseguido em vários países islâmicos, onde os seus membros são tidos por hereges, não-muçulmanos – pretende construir uma mesquita, à entrada de Samora Correia, em frente do quartel dos bombeiros. O Chega, o PS e o PSD protestaram e o presidente da Câmara, da CDU, garantiu que não há qualquer projeto e que transmitiu à Associação que todos os eleitos estão contra. Porém, Fazal Ahmad faz questão de afirmar que a comunidade trabalhou com transparência, desde a procura do terreno até à escritura, que seguiu todas as regras e que respeita a Constituição do país. Recorda que a Câmara assegurou, nas reuniões prévias, não haver impedimento legal para a construção e sublinha que o tamanho da comunidade só poderia ser argumento, se houvesse dinheiro público, mas não é o caso.
E, apesar da reação adversa, o líder da AAI reitera o empenho da comunidade em concretizar o projeto, antecipando: “Tempo virá em que os residentes de Samora Correia vão gostar da nossa comunidade.”
A AAI quer fazer ali a sua sede nacional, porque as instalações de Odivelas são exíguas. E adianta que o espaço não se destina a escola islâmica, mas a mesquita, a escritórios, a biblioteca, a instalações desportivas e a salas de reuniões. O argumento da autarquia é não haver uma comunidade muçulmana que justifique a mesquita. Os dos demais partidos são piores e inconsistentes, pois não se conta o número de fiéis para permitir, por exemplo, os templos evangélicos que se multiplicam no país. O terreno é privado e a construção não implica dinheiro público, mas, de supetão, o terreno passou a servir para uma finalidade pública indefinida.
O candidato do PS à Câmara afirmou, num vídeo partilhado nas redes sociais, que “a mesquita não se fará, aqui, nem em lado nenhum do nosso concelho”. Não está, pois, em causa o terreno e a sua função, mas ser uma mesquita que, alegadamente, atenta contra as tradições locais, isto é, tradições cristãs, a que poucos têm ligado, ofendidas pela existência pública de sinais de outra religião. O edil tranquiliza: “Só há construção, se houver licenciamento.” E ninguém quer saber nada sobre os Ahmadia. São muçulmanos e isso basta para os rejeitarem.
A única pessoa terá dito algo normal é Fazal Ahmad: “A cultura de uma cidade não desaparece com a construção de uma mesquita. A mesquita não vai apagar igrejas, nem vai proibir festas populares, nem vai eliminar as tradições locais”, garantiu.
O medo deriva das horas de televisões e das redes sociais a diabolizar muçulmanos, o que leva a população de Samora Correia, que receberia a sede de um dos movimentos mais tolerantes do Islão, a temer vir a ter, ali, um novo “Martim Moniz”.
Face à hiperatividade do PS local contra a mesquita, usando a tradição como argumento, Augusto Santos Silva recorda que, à luz da consensual Lei da Liberdade Religiosa (LLR), “todas as religiões têm igual direito de expressão e prática de culto” e que o Estado, laico, se relaciona com todas. E, nisso, é acompanhado por figuras gradas do partido, escudadas na prática tornada corrente, em Portugal, em linha com a Constituição da República Portuguesa (CRP) e com a lei.
Além disso, como escreve Daniel de Oliveira, a 30 de junho, no artigo de opinião no Expresso, intitulado “A mesquita de Samora Correia e a imaginada tolerância portuguesa”, “a existência de locais de culto é elemento central de integração de imigrantes”. “Quanto mais visíveis e institucionalizados foremmelhor para diminuir o risco de radicalização”, reforça, lembrando que o artigo 41.º da CRP “garante a liberdade de culto” e sustentando que “isso e a laicidade de um Estado, que não defende as ‘tradições cristãs’ […], são os dois pilares da relação das instituições públicas, onde se incluem as autarquias, na relação com os diversos credos e organizações religiosas”.
E, continuando no encalço de Daniel Oliveira, tudo partiu do discurso contra a imigração, como problema e não como realidade genericamente positiva com que estão conexos “problemas com os quais é preciso lidar”. E, tendo iniciado com “a defesa de uma imigração regulada, humanista, que seja possível integrar”, o discurso a passou ao ataque, “bombardeando todos os instrumentos de integração”. Aí se inscreve a dificultação do reagrupamento familiar, do acesso ao Serviço Nacional de Saúde (SNS) e da regularização e o ataque à liberdade de culto. Pretende-se, absurdamente, a integração dos imigrantes, mas “sem família, religião, direitos e a sua cultura”. Enfim, para muitos, “estar integrado é trabalhar e não existir”.
Não é só extrema-direita. Segundo o colunista, a agenda “está a ser assimilada no espaço público, mediático e partidário”. E o PS, que, às vezes, no dizer de Daniel Oliveira, “não tem outro cimento que não seja o poder”, esquece o legado de “defesa da tolerância e do diálogo inter-religioso personificada por figuras, como Mário Soares, Jorge Sampaio e António Guterres”, deixando que os seus autarcas não tenham em conta “a natureza laica do partido”.
Sustenta o articulista que, se bastasse o argumento de que “é preciso dar voz às populações” e “se a política se limitasse a isso, os partidos seriam desnecessários”. Estes, sustenta Daniel Oliveira, “moldam o debate” e tendem a tornar-se hegemónicos, mas “os verdadeiros políticos lideram, ativando o melhor ou o pior das pessoas”.
Sustenta o colunista que, ao invés do que sucede na França, na Bélgica, na Alemanha ou no Reino Unido, “não conhecemos o terrorismo ou conflitos sérios” e “a nossa comunidade muçulmana continua a ser esmagadoramente moderada”, mas “chegámos muito depressa […] e com a adesão quase imediata do centro-esquerda, ao pior que vemos no discurso intolerante e xenófobo destes países”, mostramos que “o nosso verdadeiro problema sempre foi a imagem benévola que mantivemos de nós próprios” e evitamos “todos os debates que outros fizeram”.
Não obstante, Daniel Oliveira, referindo que o cardeal Américo Aguiar defendeu a construção de duas mesquitas no Porto, sustenta que “a integração tem a condição de deixarmos que os outros se integrem” e que “o respeito que exigimos pede respeito pelos outros” – asserções que são de subscrever integralmente.

2025.07.06 – Louro de Carvalho