Na
segunda etapa do caminho do advento, iniciada com o 2.º domingo do Advento, no
Ano A, a liturgia refere-se à razão da vinda de Jesus ao nosso encontro: realizar
as promessas de Deus e inaugurar um Mundo novo, radicalmente diferente do Mundo
velho que nos envolve, repleto de ódios, de conflitos, de mentiras, de
violências, de guerras. Por isso, somos instados a acolher, de braços abertos, a
Deus e a aceitar o seu desafio para integrarmos a comunidade do Reino.
***
Na primeira
leitura (Is 11,1-10), Isaías propõe, em linguagem poética e com convicção
profética, o projeto de Deus em favor do Seu povo: no tempo oportuno, virá um ungido
de Javé, nascido da família do rei David, que inaugurará um reino de justiça e
de paz infindas, onde “o lobo viverá com o cordeiro e a pantera dormirá com o
cabrito; o bezerro e o leãozinho andarão juntos e um menino os poderá conduzir;
a vitela e a ursa pastarão juntamente; o leão comerá feno, como o boi; a
criança de leite brincará junto ao ninho da cobra; e o menino meterá a mão na
toca da víbora”. Este cenário permite-nos entrever o Menino de Belém.
Isaías
nasceu por volta do ano 760 a. C., no tempo do rei Ozias. De origem nobre, terá
vivido em Jerusalém e frequentado a corte. Culto e respeitado, fazia parte dos
notáveis: participava nas decisões relativas ao Reino, falando com autoridade
aos altos funcionários e ao rei.
Por
volta de 740 a.C., quando tinha cerca de 20 anos, sentiu o chamamento de Deus e
iniciou a missão profética, que se estendeu os reinados de Jotam (740-736
a.C.), de Acaz (736-716 a.C.) e de Ezequias (716-687 a.C.), reis de Judá. Era
época agitada, do ponto de vista político, marcada pelo expansionismo do
império assírio. No ano 745 a.C., Tiglat-Pileser III sobe ao trono assírio e
envia os exércitos para subjugar os povos da zona. Os pequenos reinos,
assustados com tal política militar agressiva, constituíram coligações
defensivas antiassírias. Judá, apesar dos esforços de Acaz, não evitou o envolvimento
nesses jogos de política internacional e caiu sob a influência assíria. Isaías
nunca aprovou a participação de Judá nesses jogos políticos, sustentando que Judá
devia abster-se das alianças políticas estrangeiras, por serem perigosas e
geradoras de instabilidade. A única política do povo da Aliança era colocar a
sua segurança e esperança nas mãos de Deus.
O
trecho em apreço apresenta-nos um poema cujo enquadramento histórico não é
fácil de definir. Para alguns, este poema (e outros similares) surge na fase
final da atividade profética de Isaías, talvez nos últimos anos do reinado de
Ezequias. Desiludido com o aventureirismo político dos reis de Judá, o profeta
começou a sonhar um tempo novo, sem armas e sem guerras, de justiça e de paz.
Tal reino só podia surgir da iniciativa de Javé (os reis tinham-se revelado
incapazes de conduzir o Povo em direção ao futuro de paz); e o instrumento de
Javé na implementação do reino seria um descendente de David. Este texto será
dessa época, em que se combinam a profecia e o sonho de um Mundo melhor.
Na
primeira parte do poema (vv. 1-5), o profeta, apresentando a personagem
que será o instrumento de Deus na concretização do reino novo, do Mundo de
justiça e de paz que os homens sonham, diz que essa personagem virá “da raiz de
Jessé”. Portanto, será da descendência de David (Jessé era o pai do rei David) e
recuperará o tempo ideal de bem-estar, de abundância e de paz que o Povo de
Deus conheceu durante o reinado de David.
Isaías
sustenta que, sobre essa personagem repousará o Espírito de Deus (o “ruah
Javé”), que ordenou o universo na aurora da criação, que animou os heróis
carismáticos de Israel, que inspirou os profetas e que conferirá ao enviado de
Deus as virtudes eminentes dos antepassados: sabedoria e inteligência, como
Salomão, conselho e fortaleza, como David, conhecimento e de temor de Deus,
como os patriarcas e os profetas (aos seis dons aqui enunciados, a tradução
grega dos Setenta acrescentou a piedade: é esta a origem da lista dos sete dons
do Espírito Santo).
Ungido
pelo Espírito de Deus (Messias) e possuindo a plenitude dos carismas, o
descendente de David estabelecerá um reino de justiça, onde os direitos dos
mais pobres serão respeitados e onde os oprimidos conhecerão a liberdade, a
lealdade e a paz, sendo excluídas, em definitivo, a injustiça, a mentira, a
opressão, a violência.
Na
segunda parte, o profeta elabora, com belas imagens, o quadro do Mundo novo que
o Messias vai instaurar. A revolta dos primeiros humanos contra Deus introduzira,
no Mundo, o desequilíbrio que quebrou a harmonia entre o homem e a Natureza,
entre o homem e o seu irmão. Agora, o Messias trará a paz e cumprir-se-á o desígnio
primevo de Deus para o Mundo: animais selvagens e animais domésticos viverão em
harmonia (o lobo e o cordeiro, a pantera e o cabrito, o leão e o bezerro o urso
e a vitela) e todos estarão submetidos ao homem (representado pela criança, o
ser humano na sua máxima fragilidade). A serpente (que espoletou a desarmonia
universal, gerando o afastamento do homem do Deus criador) comungará desta
harmonia e desta paz. É a superação total do desequilíbrio, do conflito, da
divisão que o pecado introduziu no Mundo.
Destruídas
as inimizades, superadas as desarmonias, o homem viverá em paz, em comunhão
total com Deus. No primeiro paraíso (Éden), o homem escolheu ser adversário de
Deus e viver no orgulho e na autossuficiência; agora, por ação do Messias, voltará
à comunhão com o criador e viverá no conhecimento de Deus. É o regresso ao
paraíso original, ao sonho do criador.
***
No Evangelho
(Mt 3,1-12), João Baptista avisa todos os que o procuram no vale do rio
Jordão: o Reino de justiça e de paz, anunciado por Deus, está próximo. Para
acolher o enviado de Deus, é necessário “converter-se”, deixando os caminhos
sem saída em que se anda e voltar para trás, ao encontro de Deus. Os que
aceitarem o “caminho de conversão”, estarão preparados para acolher o Reino de
Deus e para integrar a comunidade do Messias.
Depois
do “Evangelho da Infância de Jesus”, Mateus apresenta a figura de João, o Batista.
Foi no final do ano 27 ou no princípio do ano 28 que João, profeta original e
independente, começou a pregar nas margens do rio Jordão, nas franjas do
deserto de Judá. O local onde se instalou terá sido o atual Qasr El Yahud, perto
de Jericó, a cerca de dez quilómetros do Mar Morto, um local de passagem para
os peregrinos que vinham da Galileia para Jerusalém. A pregação de João atraiu
multidões e provocou certo alvoroço no cenário religioso. Os primeiros cristãos
identificaram João, o Batista, com o mensageiro de Deus referido em Is 40,3,
apresentado como “uma voz que clama no deserto” e que convida o povo a preparar
“o caminho do Senhor”. Também o ligaram ao profeta Elias (2Rs 1,8), que,
segundo a tradição, viria anunciar a Israel a chegada do Messias. Para a
catequese cristã João seria, portanto, o precursor de Jesus.
Nesta
primeira apresentação que Mateus faz do Batista, há fatores que sobressaem: a
figura, a mensagem, as reações ao anúncio, a comparação entre o batismo de João
e o de Jesus.
Diferentemente
de Lucas – que, no seu “Evangelho da Infância”, nos fala dos pais do Batista
(Zacarias e Isabel) e do seu nascimento –, Mateus nada nos diz sobre as origens
de João. Coloca-o em cena, recorrendo à fórmula genérica de apresentação: “Naqueles
dias, apareceu João Batista a pregar no deserto da Judeia”.
O
deserto é o lugar dos rebeldes, dos que vivem à margem. E João é o rebelde, que
rompeu com a religião institucional, pois não crê que seja capaz de mudar a
realidade de pecado em que Israel está mergulhado. O deserto, aonde não chegam
as discussões dos doutores da Lei, as notícias das intrigas políticas, os ecos
das festas sociais, os pregões dos comerciantes cheios de dinheiro, é o lugar
adequado para escutar a Palavra de Deus. E, como lugar de privação e de
despojamento, é mais indicado para deixar para trás a vida velha e para iniciar
o caminho de conversão e de mudança. Tal mudança não passa pelos sacrifícios de
animais e pelo culto do templo, mas pelo reconhecimento dos pecados e pelo batismo,
marcando o começo de vida radicalmente diferente.
João
usa “uma veste tecida com pelos de camelo e uma cintura de cabedal à volta dos
rins” (era desse modo que se vestia Elias), não as roupas finas, com pregas
cuidadosamente estudadas, dos sacerdotes que frequentam os átrios do templo; a
sua alimentação frugal (de “gafanhotos e mel silvestre”) contrasta com as
iguarias finas servidas nas mesas dos ricos de Jerusalém. João é, pois, o homem
que – com palavras e com a sua pessoa – questiona o estilo de vida voltado para
os bens materiais, para as coisas frívolas, para o efémero, para o ter. Interpela,
convida à conversão, propõe a mudança de valores, desafia a esquecer o
supérfluo para viver centrado no essencial.
Mateus
resume a interpelação de João num imperativo: “Convertei-vos” (“metanoeîte”). O
verbo grego (metanoéô) tem, normalmente, o sentido de “mudar de mentalidade”;
mas aqui deve ser visto na linha da teologia profética, onde a “conversão”
(“shub”) passa por fazer o caminho de regresso a Deus, reatando a relação com
Deus que o pecado interrompeu. Esse “voltar para Deus” postula o abandono das vias
do egoísmo e da autossuficiência, a escuta de Deus, o acolhimento das suas indicações,
a volta à caminhada no sentido de Deus. Implica, assim, a mudança de
comportamento, uma atitude nova, um novo modo de viver.
Esta
conversão é urgente, porque o “Reino dos céus” está perto. João liga a vinda
iminente do Reino ao juízo de Deus, a uma intervenção justiceira de Deus que destruiria
os maus e inauguraria, com os bons, um Mundo novo. Em linguagem rude, João
avisa que “o machado já está posto à raiz das árvores” e que toda a árvore que
não dá fruto será cortada e lançada ao fogo”. Era inútil a gente má querer
escapar da ira de Deus. Chegara o tempo das grandes decisões; só a verdadeira
conversão podia evitar o castigo. Era a perspetiva em voga em certos ambientes
apocalípticos da época, nomeadamente, entre os essénios de Qumran.
João
não pretendia afundar o povo no desespero, mas queria pô-lo ante as suas
responsabilidades, frente a Deus e aos compromissos da Aliança; e pretendia
apontar-lhe a única saída possível: a conversão radical a Deus, a inflexão
profunda do sentido da existência. Se o povo reconhecesse as suas
infidelidades, se se lavasse das suas faltas, se se comprometesse com a completa
mudança de vida, poderia entrar na terra prometida e esperar, confiante, a
iminente chegada de Deus. Todos os que fizessem a “caminhada pelo deserto”,
seriam acolhidos no Reino que estava prestes a chegar, trazido pelo “messias”
de Deus.
Trata-se
de uma mensagem destinada a todos. Mateus fala da “gente que acorria de
Jerusalém, de toda a Judeia e de toda a região do Jordão” e que era batizada
“por ele, no rio Jordão, confessando os seus pecados”. Porém, faz referência
especial aos fariseus e saduceus, aos quais o profeta dirige palavras duras: “Raça
de víboras, quem vos ensinou a fugir da ira que está para vir? Praticai ações
que se conformem ao arrependimento que manifestais. Não penseis que basta
dizer: ‘Abraão é nosso pai’.” Por trás deste “julgamento” duro de João estará a
convicção de que esses fariseus e saduceus, ao invés do que sucedia com o povo
simples, não estavam disponíveis para acolher a interpelação que lhes era
feita. Tinham vindo ao vale do Jordão por curiosidade ou para se manterem a par
das novidades, mas não se sentiam questionados, nem sentiam medo do “juízo de
Deus”. Consideravam-se “filhos de Abraão”, membros privilegiados do Povo eleito,
pelo que Deus não os condenaria, quando viesse fazer o seu julgamento. Contudo,
João avisa-os de que nada está garantido, nem para os que têm o nome inscrito
nos registos do povo eleito. Só a verdadeira conversão a Deus, a verdadeira
mudança de vida, os porá a salvo.
Os
que aceitavam o apelo à conversão eram convidados a realizar o gesto do batismo,
um gesto feito uma única vez, ao contrário dos rituais de purificação feitos
pelos essénios de Qumran, repetidos, várias vezes, ao dia. Esse gesto consistia
na imersão total da pessoa na água do Jordão. Quando a pessoa, depois de
mergulhar, emergia da água, sentia-se limpa das faltas, perdoada por Deus,
preparada para o recomeço. Esses batizados voltavam para casa dispostos a viver
de uma maneira nova, como membros de um povo renovado, preparados para acolher
a chegada iminente de Deus. Porém, os que tinham aderido à comunidade de gente
renovada, deviam preparar-se para algo novo e mais decisivo. João dizia-lhes:
“Eu batizo-vos com água, para vos levar à conversão. Mas Aquele que vem depois
de mim é mais forte do que eu e não sou digno de levar as suas sandálias. Ele
batizar-vos-á no Espírito Santo e no fogo.”
De
facto, o batismo de Jesus vai muito além do batismo de João: confere a quem o
recebe a vida de Deus (o Espírito), torna-o filho de Deus, incorpora-o na
comunidade da salvação, torna-o participante na missão da Igreja. Não
significa, apenas, o arrependimento e o perdão dos pecados, mas configura um
quadro de vida novo, a relação de filiação com Deus, de fraternidade com Jesus
e com todos os outros batizados.
***
Na segunda
leitura (Rm 15,4-9), Paulo, dirigindo-se aos cristãos de Roma,
lembra-lhes algumas exigências resultantes do compromisso que assumiram com
Cristo. Sendo, junto dos concidadãos, o rosto visível de Cristo, devem
testemunhar união, harmonia e fraternidade, acolher e ajudar os irmãos mais
débeis e ser sinais do Mundo novo que Cristo inaugurou.
O
trecho em causa tem de ser entendido no contexto mais amplo da perícopa que vai
de 15,1 a 15,13, construída, literariamente, na base de dois parágrafos
simétricos (cf. Rm 15,1-6 e 15,7-13) com a mesma sequência e organização:
exortação, motivação cristológica, iluminação a partir da Escritura e súplica
final.
No
primeiro desses parágrafos, o apóstolo exorta os membros da comunidade que se
consideram fortes a darem as mãos aos mais débeis, ajudando-os a superar as
dificuldades do caminho cristão. Esses “fortes” devem sentir-se motivados pelo
exemplo de Cristo, que não se escondeu atrás de um caminho de facilidade e de
bem-estar, mas escolheu o caminho do amor e do dom da vida. Esta é a atitude
que a Escritura – que foi escrita para instrução dos crentes – ensina a todos os
que integram a família de Deus. E Paulo pede ao “Deus da perseverança e da
consolação” que dê aos cristãos de Roma “os mesmos sentimentos uns para com os
outros”, a fim de que vivam em harmonia e louvem a Deus com um só coração e uma
só alma.
No
segundo daqueles parágrafos, Paulo exorta a comunidade a não fazer
discriminações, mas a acolher todos, sem exceção. Mais uma vez propõe o exemplo
de Cristo, que acolheu todos, independentemente das suas fragilidades e
diferenças. Justifica o que disse atrás com o exemplo da Escritura (e aqui
termina o trecho em referência), citando textos do Antigo Testamento que
mostram como Cristo, procedendo assim, cumpriu as promessas outrora feitas por
Deus. E faz votos para que o “Deus da esperança” cumule os crentes “de alegria
e de paz, na fé”.
A
comunidade cristã é constituída por homens e mulheres de muitas proveniências,
com histórias de vida muito diversas. Todavia, é chamada a ser no meio dos
homens testemunha do Mundo novo, sonhado por Deus. Os discípulos de Jesus, a
partir do exemplo que Ele lhes deixou, devem cuidar uns dos outros,
especialmente, dos mais frágeis, e acolherem-se uns aos outros como Cristo os
acolheu. Irmanados em Cristo, testemunham a fraternidade, vivem no amor e
proclamam, a uníssono, os louvores de Deus.
Essa
é a vocação fundamental da comunidade dos crentes que se reúne à volta de
Jesus.
***
É,
pois, inteiramente justo cantar com o Salmista:
“Nos
dias do Senhor nascerá a justiça e a paz para sempre.”
“Ó
Deus, dai ao rei o poder de julgar / e a vossa justiça ao filho do rei. / Ele
governará o vosso povo com justiça / e os vossos pobres com equidade.
“Florescerá
a justiça nos seus dias / e uma grande paz até ao fim dos tempos. / Ele
dominará de um ao outro mar, / do grande rio até aos confins da terra.
“Socorrerá
o pobre que pede auxílio / e o miserável que não tem amparo. / Terá compaixão
dos fracos e dos pobres / e defenderá a vida dos oprimidos.
“O
seu nome será eternamente bendito / e durará tanto como a luz do sol; /nele
serão abençoadas todas as nações, todos os povos da terra o hão de bendizer.
***
“Aleluia.
Aleluia. Preparai o caminho do Senhor, endireitai as suas veredas / e toda a
criatura verá a salvação de Deus.”
2025.12.07
– Louro de Carvalho