segunda-feira, 28 de julho de 2025

A encíclica “Rerum novarum”, de Leão XIII, ainda é aplicável

 
A encíclica “Rerum Novarum”, do Papa Leão XIII, embora publicada em 1891, ainda tem interesse na atualidade, pois aborda temas, como a dignidade do trabalho, a justiça social e a necessidade de cuidado com os mais vulneráveis, questões que permanecem relevantes no contexto hodierno. A encíclica é um marco na Doutrina Social da Igreja (DSI), fornecendo princípios para a análise de problemas sociais, económicos e políticos. 
A encíclica mais do que centenária foi uma resposta aos desafios sociais e económicos do final do século XIX, especialmente, em relação às condições de trabalho da classe operária. E, como tal, propõe uma visão cristã da sociedade, buscando um equilíbrio entre o capitalismo e o socialismo e defendendo a dignidade da pessoa humana e o bem comum. 
Nela se destacam alguns dos pontos que a tornam atual: 
No atinente à dignidade do trabalho, enfatiza a importância de um trabalho digno, com condições justas e salário adequado, princípios que se mantêm relevantes na discussão sobre a organização do trabalho, incluindo as transformações trazidas pelas novas tecnologias.
No quadro da justiça social, critica a concentração de riqueza e a exploração dos trabalhadores, defendendo a necessidade de distribuição mais justa dos bens, cujo destino é universal, e a proteção dos mais vulneráveis, temas centrais para a discussão sobre desigualdade social.
Na promoção do bem comum, apela ao senso de responsabilidade social e ao cuidado com o bem comum, princípios que podem inspirar ações em diversos âmbitos, desde a política até à atuação de empresas e organizações da sociedade civil.
Além disso, a “Rerum Novarum” serviu como base para outras encíclicas importantes, como a “Quadragesimo Anno” (de Pio XI), a “Mater et Magistra” (de São João XXIII), a “Populorum Progressio” (de São Paulo VI), a “Laboram Exercens”, a “Sollicitudo Rei Socialis” e a “Centesimus Annus” (as três de São João Paulo II), a “Caritas in Veritate” (de Bento XVI), e a “Laudato si” e a Frateli tutti” (ambas de Francisco) que aprofundam a reflexão sobre a DSI. 
A “Rerum Novarum” é vista como um ponto de partida para discussões sobre temas contemporâneos, como a economia digital e os desafios éticos relacionados com a inteligência artificial (IA), como apontam estudos intitulados “Rerum digitalium” e “Novae et veterae”. 
Assim, a “Rerum Novarum” continua a ser um documento de referência, não apenas para a Igreja Católica, mas também para a sociedade como um todo, por oferecer princípios e reflexões relevantes para a análise de problemas sociais e económicos e para a construção de uma sociedade mais justa e fraterna. 
***
O jornalista e autor Aldo Cazzullo escreveu a introdução à nova edição da encíclica social de Leão XIII, republicada em coedição da HarperCollins e da Livraria Editora Vaticana. Em entrevista ao Vatican News, reflete sobre a atualidade do texto, sobre as suas ressonâncias na Constituição italiana e sobre como Leão XIV está a acolher o seu legado no novo contexto global. Segundo o jornalista, precisamos, hoje mais do que nunca, de uma reforma da ética social e de uma Igreja consciente da sua força e da sua missão
A encíclica social de Leão XIII é um texto “extraordinariamente atual”, capaz de falar ao nosso tempo, mais de 130 anos após sua publicação. A encíclica – no dizer do jornalista e escritor – conserva uma força profética nas suas denúncias das crescentes desigualdades e no seu apelo à dignidade do trabalho. “Há frases – observa – que parecem escritas hoje ou amanhã”, e que apresentam a DSI como alternativa tanto à revolução quanto à indiferença, em nome do cuidado evangélico com os mais vulneráveis. E o texto é uma obra “muito agradável”, do ponto de vista literário, escrita em Latim claro e acessível e, até mesmo, em outras traduções.  
Aldo Cazzullo sustenta que Leão XIII antecipou muitos dos desafios da modernidade, e não é surpreendente que Leão XIV – ao adotar o seu nome papal, inspirando-se no Papa Pecci – tenha colhido o seu legado. Com efeito, segundo o jornalista, a crise da política e a descristianização crescente da era contemporânea não retiram sentido ao ensinamento social da Igreja, condensado na famosa encíclica. Tornam-no ainda mais necessário. E, se o declínio da participação religiosa e a crise das vocações são evidentes, comparativamente com o passado, “a Igreja nunca deve subestimar a enorme força que ainda possui”, já que, para muitos, a fé cristã representa uma esperança última, especialmente, em tempos de crise. Por exemplo, segundo Cazzullo, “quando a pandemia, a guerra ou o sofrimento chegam, o homem volta a procurar sentido na Igreja, porque só lá pode encontrar as palavras de vida eterna”.
Tal observação traduz-se num apelo para não dispersar a herança espiritual e cultural do cristianismo, num momento de desorientação global.
Na sua introdução, intitulada “Dois Leões para duas revoluções”, Aldo Cazzullo identifica surpreendentes semelhanças entre a “Rerum novarum” e a Constituição Italiana, que entrou em vigor, 60 anos depois. Desde logo, dois elementos o impressionam: o valor fundamental do trabalho e o princípio da igualdade. O respeito pelo trabalho, que permeia a encíclica, é o mesmo que inspira o artigo 1.º da Constituição. E o mesmo se deve dizer da igualdade da pessoa humana perante Deus e perante a lei. “Não se trata de nivelar”, realça Cazzullo, “mas de reconhecer a igual dignidade de todos, como filhos do mesmo Deus”. Além disso, este princípio reflete-se no pensamento franciscano, no desafio radical do Santo de Assis às hierarquias sociais.
Questionado sobre os desafios que aguardam Leão XIV, Cazzullo não esconde a sua admiração pelo atual Pontífice. Considera-o Papa “extraordinário”, apreciando-lhe a linguagem, o estilo e a firmeza, vem como a serenidade e a visão espiritual. Enfatiza a sua continuidade com o Papa Francisco, que o chamou a Roma e o promoveu no governo da Igreja. Segundo o jornalista, se Leão XIII enfrentou a revolução industrial, Leão XIV, como ele explicou, está às voltas com uma transformação igualmente radical: a digital. A IA, no alerta do jornalista, “pode representar uma grande oportunidade, mas também uma ameaça ao trabalho humano, especialmente, o da classe média”, tal como pode gerar “formas pós-humanas, ciborgues capazes de nos dominar, em vez de nos servir”. E o atual Sumo Pontífice, na ótica do jornalista, “previu esses perigos logo no seu primeiro discurso”; alertou-nos para eles; e “empreenderá um grande trabalho espiritual e cultural, para tentar mostrar-nos o caminho certo”.
No entanto, Cazzullo acredita que os atuais desafios exigem uma “refundação da ética social” e denuncia a situação global em que, quanto mais rica é uma pessoa, menos impostos paga, num sistema caraterizado pela disseminação de paraísos fiscais, pelas desigualdades patológicas e pela concentração do poder económico e digital em poucas mãos. Essa tendência priva a comunidade de recursos fundamentais, empobrecendo serviços essenciais, como a saúde, a educação e a segurança. Por isso, é essencial revalorizar o gasto público bem administrado. Porém, não parece que a política, de direita ou de esquerda, dê as respostas de que “os cidadãos precisam”.
Vinca o jornalista que os ricos estão a ficar cada vez mais ricos, não pagam impostos e concentram poder económico e controlo digital em suas mãos”: sabem tudo sobre nós, conhecem os dados das nossas vidas, as nossas preferências, as nossas inclinações, os nossos gostos, as nossas opiniões”. “Isso – assegura Aldo Cazzullo – apresenta um cenário muito inquietante que põe em questão a própria dignidade humana que levou Leão XIII a escrever a ‘Rerum novarum’ e que, certamente, está no cerne das preocupações do Papa Leão XIV.”
Aldo Cazzullo aponta um gesto que o marcou, particularmente, nos primeiros meses do pontificado de Leão XIV: o diálogo com o primeiro-ministro israelita, Benjamin Netanyahu, que telefonou ao Papa, no dia subsequente ao ataque militar à igreja da Sagrada Família em Gaza. Leão XIV, embora tenha aceitado o telefonema, não cedeu na exigência de pôr fim à guerra em Gaza. Isso é um sinal da “firmeza com que o Papa fala de paz, denuncia as desigualdades e clama pelo controlo ético das novas tecnologias”. Num tempo marcado por guerras, por crises ambientais e por mudanças de época, no dizer de Aldo Cazzullo, “um Papa que indica uma direção clara é essencial não apenas para os fiéis, mas para toda a Humanidade”, já que “a tarefa do homem continua a ser a que lhe foi confiada desde o princípio: cuidar da Criação, proteger a dignidade humana, salvaguardar a sua própria espécie”.
***
Num simpósio organizado em Roma, na sede da Uninettuno, intitulado “Leão e as coisas novas. O papado nas revoluções tecnológicas”, foi aprofundada a contribuição do papado para as grandes transformações da era moderna e contemporânea, a partir da figura do Papa Pecci, o Pontífice da encíclica “Rerum Novarum”. E monsenhor Dario Edoardo Viganò sustentou que “uma das relações entre os dois Pontificados está ligada à palavra revolução”.
Os paralelos, apesar dos diferentes contextos históricos, entre o pontificado de Leão XIII e o de Leão XIV, acabado de começar, foram o foco do encontro realizado, na sede da Universidade Telemática Internacional Uninettuno, e moderado pelo jornalista Stefano Maria Paci: “O Papa Leão XIII deu uma nova influência à doutrina social da Igreja e o Papa Prevost – sublinhou o vaticanista de L’Espresso – vinculou o seu Pontificado a essa tradição.”
O discurso de monsenhor Dario Edoardo Viganò, vice-chanceler da Pontifícia Academia das Ciências e da Pontifícia Academia das Ciências Sociais, inseriu-se nessa linha. O pontificado de Leão XIV “estabeleceu, desde o seu início, uma conexão direta com o de Leão XIII”, frisou Viganò. “Foi o próprio Papa Prevost”, recordou o decano da Faculdade de Ciências da Comunicação da Uninettuno, que estabeleceu uma relação com base no termo “revolução”: Assim como Leão XIII teve de enfrentar a “primeira grande revolução industrial”, hoje, a Igreja, como Leão XIV declarou, logo após a sua eleição, é chamada a responder “a outra revolução industrial e aos desenvolvimentos da inteligência artificial”. Para compreender a atualidade do pontificado de Leão XIII, monsenhor Viganò sugeriu o foco numa imagem, a das “belas artes abençoadas pela religião”, que pode ser admirada na galeria de candelabros dos Museus Vaticanos. Este afresco diz-nos muito sobre Leão XIII: na imagem, em particular, aparece “uma coisa nova” da época do Papa Pecci. É um dispositivo fotográfico em que é possível reconhecer um modelo comercializado em 1839. Entre as coisas novas que se cruzam com o período histórico de Leão XIII, sobressai também o cinema. O Papa Pecci, disse monsenhor Viganò, acolheu essa novidade, “ao decidir ser filmado, em 1898, pelo cinegrafista William Dickson, da produtora estadunidense Biograph”. Leão XIII “não recua diante da mais recente invenção da modernidade, mas transforma-a, prontamente, em instrumento de apostolado”.
A linha de paralelos entre o pontificado de Leão XIII e o de Leão XIV também marcou o discurso de Gianluca della Maggiore, professor da Universidade Uninettuno e autor do livro “As visões das origens de Leão XIII”. No início do seu discurso, foram exibidas algumas sequências de um filme falso, criado com IA, no qual flui um discurso, nunca proferido, atribuído a Leão XIV e dirigido ao presidente de Burkina Faso. “É – vincou o professor – uma mensagem falsa que obteve um milhão de visualizações, em pouco tempo”. Até mesmo as imagens cinematográficas de 1898, disse Gianluca della Maggiore, estavam no centro do que, hoje, se define como “fake news”.
O New York Journal destacou, na primeira página, a declaração falsa do delegado apostólico, em Washington, segundo a qual “a bênção filmada, sob indicação do Papa, transferiria para os espectadores os mesmos benefícios de uma bênção concedida na presença real do Pontífice. Para retornar às palavras recentes de Leão XIV, observou Gianluca della Maggiore, “a atitude correta, ante as inovações tecnológicas, é exercer o senso crítico, a análise aprofundada, o estudo”.
Embora distantes no tempo, os pontificados de Leão XIII e de Leão XIV parecem ser interpelados por desafios semelhantes. A professora Anna Maria Carito, reitora da Universidade Uninettuno, relembrou alguns pontos de consonância entre as eras dos dois papas. Um ponto em comum entre estes diferentes contextos históricos “é o pano de fundo da guerra”; outro elemento de consonância está ligado às profundas transformações da revolução industrial e da atual era digital. Leão XIII, como lembrou a professora Carito, indicou, entre as prioridades, a regulação do capital. Hoje, os principais desafios são colocados pelo sistema de algoritmos e, portanto, torna-se necessário regular o digital.
Gianni Piacitelli Pecci, proveniente da família de Leão XIII, relembrou as primeiras palavras sobre a paz pronunciadas por Leão XIV, após a sua eleição. O compromisso com a reconciliação também marcou o pontificado de Leão XIII, que, no século XIX, desempenhou papel mediador numa disputa entre a Espanha e a Alemanha sobre as Ilhas Carolinas. A dimensão missionária também foi central na vida de Leão XIV, pois estruturou as missões no Mundo. É preciso também recordar, disse o parente de Leão XIII, a relação do Papa Pecci com os Estados Unidos da América (EUA): por exemplo, a encíclica “Longinqua Oceani” é dedicada, precisamente, à Igreja estadunidense.
Por fim, o professor Luis Okulik, secretário da Comissão de Pastoral Social do Conselho das Conferências Episcopais da Europa, recordou algumas palavras-chave do pontificado de Leão XIII: dignidade, trabalho, família – palavras nas quais Leão XIV se concentrou no início do seu pontificado.
Com estas e com outras diretrizes relevantes, parece desdobrar-se o acolhimento da modernidade e da contemporaneidade pela Igreja, com o mesmo olhar moldado pelo Evangelho.

2025.07.28 – Louro de Carvalho


Acordo EUA-UE estabelece tarifas de 15%

 

A União Europeia (UE) e os Estados Unidos da América (EUA) chegaram, a 27 de julho, a um acordo comercial provisório, alegadamente, para evitar uma guerra de tarifas, potencialmente devastadora, entre duas das maiores economias do Mundo, encerrando, assim, uma corrida contra o tempo, antes do prazo autoimposto de 1 de agosto.
A reunião ocorreu num contexto de expectativas altíssimas, devido ao prazo iminente de 1 de agosto, que o inquilino da Casa Branca impôs, para forçar as nações a oferecerem concessões abrangentes, sob pena de enfrentarem tarifas punitivas.
Ursula von der Leyen, presidente da Comissão Europeia, estava acompanhada por Maroš Šefčovič, comissário europeu para o Comércio, que passou os últimos meses a viajar pelos dois lados do Oceano Atlântico, na tentativa de obter melhor compreensão das exigências da Casa Branca. Estava ainda acompanhada de Björn Seibert, seu influente chefe de gabinete, de Tomas Baert, seu conselheiro comercial, de Sabine Weyand, diretora-geral para o Comércio.
Nos termos acordados pela presidente da Comissão Europeia e pelo presidente dos EUA, durante uma reunião na Escócia (porquê na Escócia), a maioria das exportações da UE com destino ao mercado norte-americano será sujeita a uma tarifa de 15%.
Além disso, Bruxelas e Washington comprometeram-se a enfrentar, conjuntamente, o desafio do excesso de capacidade de produção chinesa. Porém, a tarifa para as exportações dos EUA com destino ao mercado da UE não ficou imediatamente clara.
Como era de esperar, alega-se que o acordo é preliminar e necessita de ser mais pormenorizado. Todavia, a Comissão Europeia devia saber com que tipo de interlocutor estava a contratar. Julgo não ser necessário que Donald Trump assuma o primeiro verso do prólogo da “Aulularia”, de Titus Maccius Plautus: “Ne quis miretur qui sim, paucis eloquar”, que não preciso de traduzir à maneira do nosso dramaturgo Gil Vicente, bastando dizê-lo, de modo normal, em Português: “Para que ninguém estranhe que tipo de sujeito eu seja, explicitá-lo-ei em poucas palavras.” 
É óbvio que o inquilino da Casa Branca, no termo da reunião, iria proclamar, como é seu timbre fazer sempre tudo muito bem, que acha “ótimo termos chegado a um acordo, hoje, em vez de andarmos a brincar”. E disse: “Penso que é o maior acordo alguma vez feito.”
Esta última asserção faz-me lembrar o caso de um governador civil que foi inaugurar várias sedes de junta de freguesia, no mesmo concelho, e a tecla que premia, no discurso de inauguração, era: “Esta é a melhor sede de junta de freguesia que inaugurei!” E lá vinham as palmas, apesar de alguns dos presentes terem estado com ele nas outras inaugurações.
O presidente norte-americano é sempre o maior nos acordos que firma. O governo do Paquistão até o propôs para o Prémio Nobel da Paz.  
A presidente da Comissão Europeia, que foi, em nosso nome, ao beija-mão a Donald Trump, no complexo do campo de golfe do líder político e magnata, em Turnberry, na costa Oeste da Escócia, considerou, afinada pelo lamiré do anfitrião em país estrangeiro: “Temos um acordo comercial entre as duas maiores economias do Mundo. E é um grande acordo. É um acordo enorme. […] Vai trazer estabilidade e previsibilidade. Isso é muito importante para as empresas de ambos os lados do Atlântico.”
Ursula von der Leyen, que observou ser “geral” e “abrangente” a tarifa de 15%, impedindo a aplicação de outras tarifas, relevou: “Foram negociações difíceis [, mas] chegámos a uma boa conclusão.” E destacou a “abertura” do mercado da UE, que Donald Trump tinha contestado.
Os dois líderes apertaram as mãos sob os aplausos da sala.
A taxa de 15% é inferior à taxa de 20% que Donald Trump impôs e que suspendeu, em abril, como parte das suas controversas e autodenominadas “tarifas recíprocas”, bem como à taxa de 30% que ameaçou aplicar, numa carta enviada a Ursula von der Leyen, no início de julho. Também é inferior às taxas que outros países negociaram com a Casa Branca, nos últimos dias, incluindo a Indonésia (19%) e as Filipinas (19%), correspondendo ao número concedido ao Japão (15%), um aliado do G7.
Contudo, a taxa acordada representa uma concessão dolorosa, tendo em conta que as negociações começaram com Ursula von der Leyen a oferecer um acordo tarifário “zero por zero”. Ao longo do processo de negociações, a presidente da Comissão Europeia alertou, repetidamente, que “todas as opções”, incluindo um instrumento nunca utilizado contra a coerção económica, estavam em cima da mesa, no caso de um cenário indesejável.
À medida que as tensões aumentavam, a Comissão Europeia preparou várias listas de medidas retaliatórias contra produtos norte-americanos, no valor total de 93 mil milhões de euros. Porém, nunca recorreu a qualquer medida de retaliação, devido às diferenças marcantes entre os estados-membros. Alguns deles, como a França e a Espanha, defenderam uma demonstração de força, enquanto outros, como a Alemanha e Itália, pressionaram por um acordo célere. E a diferença ideológica só diminuiu depois de Donald Trump ter feito a ameaça de 30%, o que provocou indignação em todo o bloco e endureceu o clima, face à retaliação.
Antes de o líder dos EUA perturbar o comércio transatlântico, os produtos fabricados na UE estavam sujeitos a uma taxa média de 4,8% ao entrar no território dos EUA. O acordo em causa implicará, presumivelmente, um acréscimo de 10%, para atingir a marca de 15%.
Os automóveis da UE, que estão agora sujeitos a uma tarifa de 27,5%, passarão a estar sujeitos à taxa de 15%. Um esquema “zero por zero” aplicar-se-á a aeronaves, a semicondutores, a recursos naturais, a matérias-primas críticas e a alguns produtos químicos e agrícolas. E a presidente da Comissão Europeia vincou: “Continuaremos a trabalhar para adicionar mais produtos a esta lista.”
Além disso, explicou, o bloco irá comprometer-se a gastar mais de 250 mil milhões de dólares, por ano, na compra de GNL (gás natural liquefeito) norte-americano e combustíveis nucleares para substituir a energia russa. No total, tal significaria 700 mil milhões de dólares para o restante do segundo mandato de Donald Trump.
Não está clara forma como um acordo comercial pode impor aquisições a empresas privadas, mas uma coisa é certa: a UE sai de uma dependência (a russa) e coloca-se noutra dependência (a norte-americana: o GNL e os combustíveis nucleares dos EUA são mais doces), sem atender à transição energética, em que Donald Trump não aposta.
Questionada sobre que concessões os EUA fizeram, a líder do executivo europeu larachou com uma observação geral sobre prosperidade partilhada: “O ponto de partida foi um desequilíbrio, um excedente [de bens], do nosso lado, e um défice, do lado dos EUA. Queríamos reequilibrar a relação comercial e queríamos fazê-lo de forma que o comércio entre nós dois continuasse através do Atlântico”, afirmou, com a ingenuidade (?) que não emociona ninguém.
E o presidente dos EUA sustentou: “Acho que vai ser ótimo para ambas as partes.”
***
Nas últimas semanas, Ursula von der Leyen e a sua equipa tentaram avançar nas negociações para reduzir a tarifa prevista pelos EUA. A taxa de 15% era considerada elevada, mas aceitável, se acompanhada de isenções para setores estratégicos.
Estarão isentos de impostos, em ambos os lados do Atlântico, aviões e respetivos componentes (Boeing e Airbus), alguns produtos químicos e farmacêuticos genéricos, máquinas para a produção de microprocessadores, alguns recursos naturais e matérias-primas críticas e alguns produtos agrícolas. Contudo, ainda não foram avançados mais detalhes sobre as especificidades destes produtos.
Embora reduzidas, essas isenções são significativas no respeitante, por exemplo, à produção estratégica, onde os EUA e a Europa podem cooperar para criar cadeias de abastecimento autónomas menos dependentes da China.
O objetivo, afirmou Ursula von der Leyen, é aumentar esta lista de produtos isentos. A possível isenção a bebidas destiladas (mas não a vinho) estará em cima da mesa de discussão.
A grande preocupação tem sido os produtos farmacêuticos, que a UE exporta em grandes volumes para o mercado norte-americano. E a administração Trump abriu uma investigação sobre os produtos farmacêuticos, medida que pode abrir caminho a uma tarifa personalizada. Não está, portanto, decidida a tarifa definitiva sobre os medicamentos.
No início da reunião, o presidente dos EUA disse que os produtos farmacêuticos não estavam incluídos no acordo. “Temos de os fabricar e produzir nos Estados Unidos [da América], e queremos que sejam fabricados nos Estados Unidos [da América]”, destacou, em declarações aos jornalistas, acrescentando: “Os produtos farmacêuticos são muito especiais. Não podemos estar numa posição em que [...] dependemos de outros países.”
No final da reunião, Ursula von der Leyen afirmou que os medicamentos fabricados na UE estariam sujeitos à taxa de 15%, mas admitiu que Donald Trump poderia tomar outras medidas para resolver a questão “globalmente”. “Começámos muito distantes uns dos outros. Foi difícil, justo, mas foi difícil”, afirmou a presidente da Comissão Europeia, considerando que “15% é, certamente, um desafio para alguns”, mas sem esquecer que “isso nos mantém o acesso ao mercado [norte-]americano”.
Depois, observou que o bloco europeu continuará a diversificar os seus parceiros comerciais para criar maiores oportunidades para os exportadores e investidores europeus. Porém, não disse que a tarifa de 50% se manterá para o aço e para o alumínio. 
A questão poderá não estar encerrada, uma vez que um tribunal federal de recurso dos EUA ouvirá os argumentos num processo judicial, muito acompanhado, de contestação a autoridade de Donald Trump para impor tarifas generalizadas, sob o pretexto de uma emergência nacional.
***
O acordo inclui o compromisso de a UE comprar mais produtos norte-americanos, especialmente, armas e energia. A energia – GNL, petróleo e combustível nuclear – deverá custar 750 mil milhões de dólares (aproximadamente 640 mil milhões de euros), ao longo de três anos, ou 250 mil milhões de dólares (cerca de 213 mil milhões de euros), anualmente. O valor é significativo, se comparado, por exemplo, com as importações de petróleo e gás dos EUA que totalizara 84 mil milhões de dólares (cerca de 72 mil milhões de euros), em 2024.
Além deste valor, haverá um investimento de mais de 600 mil milhões de dólares (511 mil milhões de euros) nos EUA, incluindo equipamentos militares americanos, segundo avançou a BBC.
Os dois blocos são indissociáveis uma vez que têm a “maior relação bilateral de comércio e de investimento e a relação económica mais integrada do Mundo”, como revela o site do Conselho Europeu. Juntos representam quase 30% do comércio global de bens e serviços e 43% do produto interno bruto (PIB) global. Só em 2024, o valor de comércio dos dois blocos atingiu 1,68 biliões de euros: a UE importou 334,8 mil milhões de euros em comércio de bens provenientes dos EUA e exportou bens no valor de 532,3 mil milhões de euros para os EUA.
Os principais produtos que a UE exporta são medicamentos, veículos rodoviários e máquinas e equipamento industrial. Já em importações, dominam os produtos petrolíferos, os medicamentos, e as máquinas e equipamentos geradores de energia.
Sendo membro da UE, Portugal também será alvo da tarifa que estará em vigor para todos os estados-membros. Há vários setores altamente dependentes do mercado dos EUA, no país. É o caso das indústrias têxtil e automóvel – onde já se temia o fecho de empresas e despedimentos –, mas, sobretudo, da indústria dos vinhos (que, em muitos casos, têm os EUA como primeiro comprador, a nível mundial). Em 2023, os três países da UE que mais exportaram para os EUA foram a Alemanha, a Itália e a Irlanda, de acordo com o Eurostat. Em conjunto, representaram 55% das exportações da UE para os EUA. E, apesar de a Alemanha arrecadar mais dinheiro com as exportações para os EUA, a Irlanda é o país da UE que mais depende da venda de produtos para os EUA. Quanto a Portugal, aparece em 9.º lugar, com 6,8%.
***
Independentemente do posicionamento político de cada estado-membro (em geral, de tolerância e de compreensão, se excetuarmos a Hungria), é de ter em conta o aviso do presidente da Comissão de Comércio Internacional do Parlamento Europeu (PE) Bernd Lange, deputado do grupo dos socialistas e democratas (S&D) do PE, segundo o qual o acordo levanta muitas dúvidas.
De acordo com este responsável político de origem alemã, “os defensores do acordo UE-EUA dirão que o pior foi evitado, que o acordo cria estabilidade para a maior relação comercial do Mundo, que o acordo garante a competitividade da UE, em relação a outros parceiros e que proporciona a cooperação entre a UE e os EUA para lá do comércio”. Porém, o eurodeputado espera, “sinceramente, que tenham razão”.
O relator para as relações comerciais UE-EUA, desde 2014, diz que o acordo anunciado pelos dois interlocutores, na Escócia, vem com “uma evidente assimetria”. “Muitas questões continuam por responder, pelo que assegurarei que, independentemente do que se pense sobre ele, o Parlamento obtenha respostas a todas as questões pendentes”, promete, frisando garantir que nada, no direito de regulamentar, dos serviços digitais à fixação dos preços do carbono, foi comprometido, em troca, e assegurando que, se o acordo se transformar em compromissos vinculativos, o PE e o Conselho “terão a última palavra sobre o assunto”.
***
O acordo não prima pela reciprocidade; é omisso em matérias relevantes; substitui uma dependência da UE de um país pela de outro; estabelece a obrigação de compra aos EUA e a de investimento nesse país, sem a mesma obrigação dos EUA no bloco europeu; e, sobretudo, põe de cócoras, perante os EUA a UE, que devia posicionar-se como uma potência respeitável. Enfim, é um mau acordo, que não será “melhor do que uma boa sentença”.

2025.07.28 – Louro de Carvalho


domingo, 27 de julho de 2025

É importante saber e querer dialogar com Deus

 

A liturgia do 17.º domingo do Tempo Comum no Ano C leva-nos a questionar a nossa relação com Deus e o modo como tentamos comunicar com Ele. Podemos desejar cultivar uma relação de intimidade, escutando e falando, pedindo e agradecendo ou, apenas, pedir, de forma egoísta.   

***

Na primeira leitura (Gn 18,20-32), Abraão dirige-se ao Deus que o visitou e dialoga com Ele. Expõe-lhe inquietações, dúvidas e questões, em diálogo respeitoso, mas frontal, sincero e confiante. Deus responde, de forma franca, às perguntas de Abraão e partilha com ele os planos que tem para o Mundo e para os homens. Este diálogo pode servir de modelo da nossa oração, do nosso diálogo com Deus.
Depois de ter experimentado a hospitalidade de Abraão, Deus dispõe-se a enviar mensageiros a Sodoma, a cidade pecadora, para aferir se a conduta dos habitantes corresponde ao brado que Lhe chegou. Entretanto, Deus demora-Se a conversar com Abraão sobre o seu plano. É aí que o autor javista insere a pergunta fundamental que o inquieta: que acontecerá, se a investigação de Deus revelar a existência na cidade de um pequeno grupo de justos? Deus castigará todos os habitantes da cidade, incluindo os justos? Valerá tanto um punhado de justos que Deus, por amor deles, Se disponha a perdoar a uma multidão de culpados?
A ideia de um punhado de justos salvar a cidade pecadora é, no século X a.C. (época do javista), ideia revolucionária. Para a mentalidade dos Israelitas de então, todos os membros da comunidade (família, cidade, nação) eram solidários no bem e no mal; se alguém falhasse, o castigo atingiria toda a comunidade. Apesar disso, os teólogos javistas sugerem que talvez a justiça de uns tantos seja, para Deus, mais importante do que o pecado da maioria.
Assim, o problema que Abraão procura resolver é se aos olhos de Deus um grupo de justos tem tal peso que Deus, por amor deles, Se disponha a suspender o castigo que impende sobre a comunidade. Os números sucessivamente avançados por Abraão (em forma descendente, de 50 a 10) fazem parte do regateio, usual nos mercados do Médio Oriente, mas servem para relevar a misericórdia e a justiça de Deus: a descida até dez justos e as sucessivas declarações de Deus mostrando-se disponível para suspender o castigo mostram que, n’Ele, a misericórdia é maior do que vontade de castigar, a vontade de salvar é infinitamente maior do que a de condenar.
Deus faz questão de não ocultar nada ao amigo. Explica-lhe o que está em causa e desvela-lhe o seu plano, se se confirmar a culpa dos habitantes de Sodoma. É sugestiva a ideia de que Deus, apesar da sua grandeza e omnipotência, quer manter o homem a par do seu desígnio para o Mundo. E Abraão apresenta-se com humildade e respeito, pois sente-se “pó e cinza”, ante a grandeza de Deus. Porém, à medida que o diálogo avança e nota que pode contar com a benevolência de Deus, ganha confiança. A certa altura, fica-se com a sensação de que Abraão é importuno, na insistência, e ousado, no regateio. No papel do orante que intercede pela cidade, Abraão atreve-se a apelar à misericórdia e a lembrar a Deus que a inocência de alguns deve ter mais valor do que a culpabilidade de muitos. Em nenhum momento Deus recusa escutar Abraão ou contesta as suas observações.
O diálogo franco, confiante, insistente, ousado, familiar, que Abraão estabelece com Deus pode ser visto como um modelo de oração para o crente, pois o Deus de Abraão, que é o nosso, é um Deus que se dispõe a vir ao encontro do homem, a entrar na tenda do homem, a sentar-se à mesa com ele, a estabelecer comunhão com ele, a contar-lhe os seus projetos, a escutar tudo o que o homem lhe quer dizer. Deus que Se revela dessa forma é um Deus com quem o homem pode dialogar, com amor e sem receio.

***

No Evangelho (Lc 11,1-13) Jesus conta aos discípulos a sua experiência de Deus e mostra como devem falar com Deus. Convida-os a verem Deus como o pai bom e cheio de amor, disponível para escutar os filhos; pede-lhes que, ao falarem com o Pai, tentem perceber e acolham o desígnio d’Ele para os homens; sugere-lhes que se entreguem nas mãos do Pai e que n’Ele confiem incondicionalmente. Assim, cada momento de oração será experiência inolvidável de intimidade, de familiaridade e de comunhão. Aliás, o texto da primeira leitura já antecipa o cerne e a metodologia do Evangelho.
Os discípulos viram Jesus a rezar e quiseram que Ele os ensinasse. Jesus refere-se a dois aspetos a considerar no diálogo com Deus. O primeiro incide na forma: deve ser diálogo como o do filho com o pai; o segundo atinge o assunto: o diálogo incidirá na realização do plano do Pai para o Mundo e para os homens.
Os discípulos de Jesus devem experimentar Deus como pai e dirigir-se-Lhe como a pai (“quando orardes, dizei: ‘Pai’.”). Ver Deus como pai não é, para os contemporâneos de Jesus, novidade. No Antigo Testamento, Deus é o pai que manifesta amor e solicitude pelo seu Povo, mas, na época de Jesus, não era habitual os crentes usarem este título na oração individual, dirigindo-se a Deus.
No entanto, Jesus usava-o. É provável que utilizasse o termo aramaico “abba” (“Abbá, Pai, tudo Te é possível; afasta de mim este cálice!”), do nível das crianças, que expressa a ternura, a simplicidade, a dependência, a confiança do filho pequeno, quando se dirige ao papá. A Igreja primitiva, tocada pela utilização que Jesus fez do termo, recolheu-o e utilizou-o, para se referir a Deus). Para Jesus, Deus era o “Abbá”, o Pai querido. Jesus sentia-Se intimamente ligado ao Pai, experimentava a ternura do Pai, confiava plenamente n’Ele. Era, dessa forma, que experimentava e sentia Deus.
Ora, ao pedir aos discípulos que tratem Deus por Pai, admite-os à comunhão que existe entre Ele e Deus. Identificados com Jesus, os discípulos estabelecem com Deus uma relação íntima, única, familiar. Passam a ser irmãos de Jesus e entram na família de Deus. Tornam-se “filhos de Deus”. Sentir-se filho de Deus significa reconhecer a fraternidade, a comunhão com uma imensa família que reúne homens e mulheres de todas as raças, culturas e nações. Dizer a Deus “Pai” é sair do individualismo que aliena, supera as divisões e destrói as barreiras que impedem de amar e de ser solidários com os outros irmãos, filhos queridos do mesmo Pai.
Definida a atitude, falta delinear o tema da oração. Jesus sugere diversas petições que podem entrar no diálogo dos discípulos com o Pai.
A primeira é a santificação do nome de Deus (“santificado seja o vosso nome”). O crente expressa o desejo de que Deus Se manifeste como Salvador, aos olhos de todos os povos, e que todos reconheçam a grandeza e a soberania de Deus sobre o Mundo e sobre a História. Reconhecendo a autoridade de Deus, os homens viverão na obediência aos seus preceitos e mandamentos. Será o fim das injustiças e o início da nova realidade. A segunda alude à vinda do Reino de Deus (“venha o teu reino”), o grande tema e paixão de Jesus. Jesus, sentindo que este é o projeto do Pai, anuncia e propõe um Mundo que funcione segundo os valores de Deus: a paz, a justiça, a fraternidade, a igualdade entre todos os homens. O Reino de Deus opõe-se aos impérios deste Mundo, construídos sobre injustiças, violências, ambições, guerras e mortes. Para Jesus, faz todo o sentido pedir a Deus que o Reino se torne realidade na vida dos homens.
A terceira implora o pão quotidiano para todos os filhos de Deus (“dá-nos, em cada dia, o pão da nossa subsistência”). Jesus via, todos os dias, desfilar pelos caminhos da Galileia homens sem trabalho, que não tinham pão para os filhos. Ao passarem por zonas despovoadas e pobres, Ele próprio e os discípulos nem sempre encontravam o pão de que necessitavam para se alimentarem. No entanto, Ele sabia que Deus tinha alimentado o povo, ao longo da caminhada pelo deserto, e fazia, em cada ano, florescer as sementes nos campos. O pão, necessário para subsistir em cada dia, é dom de Deus; é Deus que provê às necessidades dos seus filhos. Assim, é necessário pedir a Deus o pão de cada dia. E o pão que Deus distribui é “nosso”, não “meu”, pois destina-se à subsistência de todos os filhos de Deus e não apenas do que reza. A visão egoísta e açambarcadora dos bens dados por Deus não cabe na oração. A quarta pede a Deus perdão dos pecados (“perdoa-nos os nossos pecados, porque também nós perdoamos àquele que nos ofende”). O pedido para que Deus perdoe os pecados é frequente na oração judaica. Também para os discípulos de Jesus, o pedido para que o Pai perdoasse os pecados fazia todo o sentido: apesar das boas intenções, deixavam-se dominar, a cada passo do caminho, por medos e receios, por invejas e ciúmes, por ambições e projetos egoístas. Precisavam do perdão de Deus. Porém, a oração ensinada por Jesus traz algo novo: o compromisso com o perdão aos irmãos. Quem quiser experimentar o perdão de Deus, que cura e regenera, tem de comprometer-se a perdoar aos irmãos. Ninguém pode sentir-se em paz com o Pai se não se sentir em paz com o irmão.
A última (“não nos deixes cair em tentação”) solicita a Deus ajuda para que os discípulos não se deixem seduzir pelo apelo da felicidade ilusória, do caminho fácil que leva a beco sem saída, das lógica que afaste dos valores evangélicos, das solicitações do Mundo materialista, violento, injusto e desumano.
Embora seja oração breve, o “Pai nosso” sintetiza o que Jesus viveu e sentiu a propósito de Deus e do seu desígnio. Constitui também um resumo do que Jesus disse e ensinou, um compêndio do Evangelho. Portanto, faz todo o sentido que esta seja a oração dos discípulos; faz todo o sentido que, sempre que os discípulos se reúnem à volta da mesa eucarística, rezem “a oração que Jesus ensinou”.
A lição de Jesus sobre a oração remata com duas parábolas. Na primeira, um “amigo importuno” que pede, insistentemente, pães emprestados, e outro amigo que se levanta da cama a horas impróprias, para entregar ao primeiro os pães que ele reclama. Se deve acentuar-se a insistência do amigo importuno, para relevar a necessidade da persistência orante, por maioria de razão, se deve atentar na ação do amigo que satisfaz o pedido. O que Jesus sugere é claro: se os homens são capazes de escutar o apelo de amigo importuno, muito mais Deus atenderá, generosamente, os que se Lhe dirigem. A segunda parábola convida à confiança em Deus. Um pai escuta sempre os pedidos do filho e não o defraudará. De igual modo, Deus conhece-nos bem, escuta os nossos pedidos e sabe do que necessitamos. Seja qual for a resposta de Deus, de uma coisa podemos estar certos: Ele nunca dará nada que nos faça mal. Nos momentos mais complicados da vida, a oração insistente fará com que o Pai nos dê o seu Espírito. Animados e fortalecidos pela força de Deus, podemos enfrentar todas as crises e dificuldades.

***

Na segunda leitura (Cl 2,12-14) Paulo, dirigindo-se aos cristãos de Colossos, recorda o papel e o lugar de Cristo no desígnio salvador de Deus em prol dos homens e convida-os a serem coerentes com os compromissos que assumiram que optaram por caminhar com Cristo.

No dia em que aderiu a Cristo e recebeu o batismo, o crente incorporou-se em Cristo e identificou-se com Ele. A vida de Cristo passou a circular nele. Revivificado por essa vida, o crente morreu para o pecado e ressuscitou para a vida nova, para a vida totalmente outra (“sepultados com Cristo no batismo, com Ele fostes ressuscitados pela fé que tivestes no poder de Deus que O ressuscitou dos mortos”). Portanto, quem escolheu Cristo, libertou-se das cadeias que o tolhiam e lhe roubavam a vida. Não precisa de recorrer a outras filosofias, a outros poderes, a outras propostas (anjos, poderes cósmicos, leis veterotestamentárias, práticas ascéticas rígidas) para ter acesso à salvação. É Cristo que salva. Cristo basta.
Para explicitar a intervenção salvadora de Cristo, o apóstolo refere-se a um “documento de dívida” que a morte de Cristo anulou. Não sabemos em que pensa o autor da carta, ao referir esse documento. Pode ser alusão à lei de Moisés que, com as leis, exigências e prescrições impossíveis de cumprir na totalidade, constituía acusação contra as falhas dos homens. E pode evocar certas tradições judaicas da época, que falavam de um registo onde Deus inscreveria as contas dos homens. Em todo o caso, o crente já não precisa de viver no medo do castigo. Cristo, com a sua entrega na cruz, anulou o documento que listava os débitos do homem, pelo que já estão saldados.
Enxertado em Cristo, vivificado pela comunhão com Cristo, o crente é Homem Novo. Pode caminhar, a passos largos, rumo à vida em plenitude.

***

Por isso, os crentes cantam: “Quando Vos invoco, sempre me atendeis, Senhor.”

“De todo o coração, Senhor, eu Vos dou graças, / porque ouvistes as palavras da minha boca. / Na presença dos Anjos hei de cantar-Vos / e adorar-Vos, voltando para o vosso templo santo.

“Hei de louvar o vosso nome pela vossa bondade e fidelidade, / porque exaltastes acima de tudo o vosso nome e a vossa promessa. / Quando Vos invoquei, me respondestes, / aumentastes a fortaleza da minha alma.

“O Senhor é excelso e olha para o humilde, / ao soberbo conhece-o de longe. / No meio da tribulação Vós me conservais a vida, / Vós me ajudais contra os meus inimigos.

“A vossa mão direita me salvará, / o Senhor completará o que em meu auxílio começou. / Senhor, a vossa bondade é eterna, / não abandoneis a obra das vossas mãos.”

2025.07.27 – Louro de Carvalho

Para uma releitura, com os Papas, da encíclica de Leão XIII

 
A 15 de maio, passou o 134.º aniversário da publicação da encíclica “Rerum Novarum”. Por ocasião de aniversários desta encíclica, foram publicados documentos de outros Pontífices. Pouco depois da sua eleição, o Papa Prevost enfatizou que a Igreja, inspirando-se no património da Doutrina Social da Igreja (DSI), é chamada a responder a “outra revolução industrial e ao desenvolvimento da inteligência artificial [IA]”.
A este respeito, Amedeo Lomonaco publicou no Vatican News, longo texto em que salienta o facto de o Papa Leão XIII, com a “Rerum Novarum”, ter abordado “a questão social no contexto da primeira grande revolução industrial”. Hoje, está patente, a todos, o património da DSI, para responder a uma nova revolução industrial e ao desenvolvimento da IA, que “traz novos desafios para a defesa da dignidade humana, da justiça e do trabalho". Ao encontrar os cardeais, 10 de maio, o Papa Prevost explicou, assim, a escolha de “assumir o nome de Leão XIV”, nesta era dominada por desequilíbrios económicos e de novos desafios.
Como no final do século XIX, o mundo do trabalho é um dos pilares que sustentam o tecido social. Relendo a encíclica do Papa Vincenzo Pecci, focada nas condições das massas operárias, e situando tais reflexões no contexto atual, projeta-se uma releitura da “Rerum digitalium”, uma releitura das “coisas digitais”. E, no encalço de Leão XIII, pode considerar-se o trabalho e os direitos dos trabalhadores, à luz das profundas mudanças trazidas pelas novas tecnologias. Por isso, a “Rerum Novarum” também fala aos homens e às mulheres de hoje.
“As coisas temporais não podem ser compreendidas e avaliadas adequadamente, se a alma não se elevar a outra vida, isto é, à vida eterna, sem a qual a verdadeira noção de bem moral necessariamente se desvanece. De facto, toda a criação torna-se um mistério inexplicável. O que a própria natureza nos dita, portanto, no cristianismo, é um dogma sobre o qual todo o edifício da religião se apoia como seu principal fundamento: isto é, a verdadeira vida do homem é a do Mundo vindouro” – palavras de Leão XIII a ressoar nesta era digital: “Quer tenhas riquezas e outros bens terrenos em abundância, quer não os tenhas, isso não importa para a felicidade eterna; mas o bom ou mau uso desses bens, isso é o que mais importa”, escreve Leão XIII.
A tradição das encíclicas sociais, na fase moderna, inicia-se com a “Rerum Novarum”, atestando a preocupação dos Papas, em diferentes contextos históricos, com as questões sociais e económicas. A encíclica promulgada em 1891 inaugura a era da modernidade da DSI e insere-se num contexto em que o trabalho era concebido como mercadoria. O mundo do trabalho mudou muito, mas os direitos dos trabalhadores precisam de ser salvaguardados. Entre os riscos associados às novas tecnologias e, em particular, à IA, encontram-se os das novas formas de escravidão e exploração. Porém, ao lado das sombras, há muitas luzes ligadas às oportunidades que esta era digital pode oferecer a toda a família humana e, em particular, às novas gerações.
A “Rerum Novarum” enfatiza que o fator discriminante é o bom ou mau uso dos bens e que todos os homens “estão unidos pelo vínculo de uma santa fraternidade”, cuja vivência postula a compreensão de que “os bens da Natureza e da Graça são património comum do género humano”. Se todos são filhos, acrescenta o Papa Leão XIII, são também herdeiros: “herdeiros de Deus e co-herdeiros com Jesus Cristo. Este é o ideal de direitos e deveres contido no Evangelho". É o mesmo ideal indicado pelo Papa Francisco na encíclica “Fratelli tutti”: o de uma fraternidade humana. Como afirmou Leão XIV, no encontro com os cardeais, a 10 de maio, o Evangelho deve impelir-nos a procurar, “com alma sincera, a verdade, a justiça, a paz e a fraternidade”.
Na encíclica, Leão XIII concentra-se nas difíceis condições de trabalho dos operários industriais. “Não é justo nem humano”, afirma o documento, “exigir do homem tanto trabalho a ponto de a sua mente se tornar entorpecida por excesso de fadiga e o seu corpo enfraquecer. Como sua natureza, a atividade humana é limitada e circunscrita dentro de limites bem estabelecidos, além dos quais ele não pode ir. O exercício e o uso aprimoram-na, sob a condição, porém, de que seja suspensa, de tempos a tempos, para dar lugar ao descanso. O trabalho, portanto, não deve ser prolongado além dos limites das próprias forças”, diz o Santo Padre Pecci.
Outra questão presente na encíclica de 1891 é a da educação para a economia. “Quando o trabalhador recebe um salário suficiente para se manter a si mesmo e à sua família, com certo grau de conforto, se for sábio, naturalmente, pensará em poupar.” É reflexão para ser relida no nosso tempo, frequentemente, marcado por fronteiras, nem sempre bem definidas, entre o trabalho e a vida pessoal. E mesmo a economia, vista como instrumento capaz de sustentar a família, é muito atual e não marginal, pois trata-se de dar o devido valor ao salário, hoje cada vez mais agredido pelo consumismo desenfreado.
O tema central da encíclica é a instauração de uma ordem social justa. Na parte conclusiva, indica-se o caminho a seguir: o da caridade. “Cada um faça a sua parte e não demore, porque a demora poderia tornar mais difícil a cura de um mal já tão grave. Que os governos trabalhem para isso com boas leis e com medidas sábias; que os capitalistas e os empregadores tenham sempre em mente os seus deveres; que os proletários, diretamente interessados, façam, dentro dos limites da justiça, o que puderem”. “Quanto à Igreja, ela, nunca e de forma alguma, deixará faltar a sua obra”. “A salvação almejada – escreve Leão XIII – deve ser o fruto principal de uma efusão de caridade, queremos dizer, da caridade cristã que abrange todo o Evangelho”. Ora, o caminho da caridade é a estrada principal no terceiro milénio. Na era digital, com a lógica do algoritmo, o fator humano é imprescindível para a família humana não descurar a solidariedade.
***
Os Papas foram seguindo e atualizando a “Rerum Novarum”, pois a Igreja não cessa de fazer ouvir a sua voz sobre a “res novae”, típicas da era moderna, e exorta todos a fazerem todos os esforços para que se afirme uma civilização autêntica, orientada para a busca do desenvolvimento humano integral e solidário. Nestes termos, surge a encíclica “Quadragesimo Anno”, do Papa Pio XI, de 15 de maio de 1931, inserida no contexto histórico marcado pela grande crise de Wall Street, em 1929, que abalou o mundo industrial. Neste documento, o texto de Leão XIII é definido como “carta magna” da ordem social. Pio XI denuncia os fenómenos que “chegaram ao ponto em que a sociedade, em quase todas as nações, parecia cada vez mais dividida em duas classes”: uma, pequena em número, “que gozava de quase todo conforto”; e a outra, composta por uma imensa multidão de trabalhadores “oprimidos por uma penúria ruinosa”. Acusa o “imperialismo internacional do dinheiro” e descreve os danos de um sistema em que as finanças dominam a economia e a subterrânea a economia real.
No 50.º aniversário da “Rerum Novarum”, Pio XII, em mensagem radiofónica para o Pentecostes de 1941, num tempo marcado pelo drama da guerra, enfatiza que da encíclica de Leão XIII brotou “uma fonte de espírito social forte, sincero e desinteressado”, que, “removidas as ruínas deste furacão mundial, quando começar a obra de reconstrução de uma nova ordem social, implorada como digna de Deus e do homem, infundirá novo impulso vigoroso e uma nova onda de florescimento e crescimento em todo o florescimento da cultura humana”. A encíclica, no dizer de Pio XII, “penetrou nos corações e nas mentes da classe operária e incutiu nela o sentimento cristão e a dignidade cívica”. E, na mensagem radiofónica de 1942, na véspera do Natal, Pio XII enfatiza que a Igreja deduz “as consequências práticas derivadas da nobreza moral do trabalho”.
A “Rerum Novarum” indica as necessidades do trabalhador, que incluem, o salário justo, suficiente para as necessidades do trabalhador e da família, a preservação e o aperfeiçoamento de uma ordem social que torne possível a propriedade privada segura, ainda que modesta, para todas as classes, que favoreça uma educação superior para os filhos das classes trabalhadoras, particularmente dotados de inteligência e de boa vontade, que promova o cuidado e a atividade prática do espírito social no bairro, no país, na província, no povo e na nação, que, atenuando os conflitos de interesse e de classe, afaste dos trabalhadores o sentimento de segregação com a experiência reconfortante da solidariedade genuinamente humana e cristãmente fraterna.
Em 14 de maio de 1961, São João XXIII fez um discurso aos povos do Mundo inteiro, no qual anunciou uma nova encíclica e recordou a contribuição da “Rerum Novarum”. Disse que Leão XIII “quisera haurir dos tesouros do ensinamento secular da Igreja a doutrina justa e santa, a verdade iluminadora para a direção da ordem social, segundo as necessidades do seu tempo”, colocando-se nas “diversas relações entre agricultores e operários, chamados proletários, de um lado, e proprietários e empresários, de outro, indicou quão indispensável era recompor as razões de justiça e de equidade, em benefício e vantagem de ambos, invocando, como necessárias, a intervenção do Estado e a ação honesta e leal das partes interessadas”.
No 70.º aniversário da “Rerum Novarum”, o Papa São João XXIII promulga a encíclica “Mater et Magistra”, com duas palavras-chave: “comunidade e socialização”. No dizer do Papa Roncalli, a Igreja é chamada a colaborar para construir uma comunhão autêntica. Assim, o crescimento económico não deve limitar-se a satisfazer as necessidades dos homens, mas deve também promover a sua dignidade.
No 80.º aniversário da “Rerum Novarum”, São Paulo VI publicou a carta apostólica “Octogesima Adveniens”, apontando as mudanças profundas do Mundo, incluindo “o crescimento excessivo das cidades”. E, em 1967, promulgou a encíclica “Populorum Progressio”, sobre o desenvolvimento dos povos, que “acompanha a expansão industrial, sem se identificar com ela”. Nela evidencia que, “enquanto algumas empresas se desenvolvem e se concentram, outras se extinguem ou se deslocam, criando novos problemas sociais: desemprego profissional ou regional, requalificação e mobilidade das pessoas, adaptação permanente dos trabalhadores, desigualdade de condições nos vários setores da indústria”.
No 90.º aniversário da “Rerum Novarum”, São João Paulo II publicou a encíclica “Laborem Exercens”, na véspera de novos progressos nas condições tecnológicas, económicas e políticas que, segundo muitos especialistas, influenciarão o mundo do trabalho e da produção, não menos do que a revolução industrial do século passado” (o século XIX). E, no centenário da “Rerum Novarum”, publicou, a encíclica “Centesimus Annus”, uma “releitura” da encíclica leonina, que vislumbra “o terceiro milénio da era cristã, cheio de incógnitas, mas também de promessas e de incógnitas que apelam à nossa imaginação e criatividade”.
Na encíclica “Caritas in Veritate”, de 2009, Bento XVI retrata diversas mudanças que afetam o tecido social e trabalhista. “O conjunto de mudanças sociais e económicas significa”, escreve o Papa Ratzinger, “que os sindicatos enfrentam maiores dificuldades para cumprir sua tarefa de representar os interesses dos trabalhadores, também porque os governos, por razões de utilidade económica, muitas vezes, limitam as liberdades sindicais ou a capacidade de negociação dos próprios sindicatos. As redes tradicionais de solidariedade encontram, assim, obstáculos crescentes a serem superados.” O convite da DSI, a partir da “Rerum Novarum”, para criar associações de trabalhadores para a defesa dos seus direitos deve, pois, ser honrado, hoje, ainda mais do que ontem, antes de tudo, dando resposta pronta e clarividente à urgência de estabelecer novas sinergias, a nível internacional e a nível local. “A mobilidade trabalhista, associada à desregulamentação generalizada, tem sido fenómeno importante, não isento de aspetos positivos, pois é capaz de estimular a produção de novas riquezas e o intercâmbio entre diferentes culturas”, escrevia Bento XVI. Porém, quando a incerteza sobre as condições de trabalho, como consequência dos processos de mobilidade e de desregulamentação, se torna endémica – lê-se na “Caritas in Veritate”, que também parece aplicar-se ao período recente abalado pela pandemia –, “criam-se formas de instabilidade psicológica, de dificuldade em construir os próprios caminhos coerentes na existência”.
A 24 de maio de 2015, foi assinada a “Laudato si”, encíclica do Papa Francisco sobre o cuidado da Casa comum. Nesse ano, o cardeal Gualtiero Bassetti escreveu, em artigo para o jornal “L’Osservatore Romano”, que “a importância desta encíclica é comparável à relevância da “Rerum Novarum”. “Aquela encíclica do Papa Pecci abriu o olhar maternal da Igreja para um Mundo então ainda inexplorado pelo magistério pontifício: o da questão operária”. Com ela, segundo o cardeal, surgiu “uma fase de transição muito importante: a passagem de uma sociedade agrícola para uma sociedade industrial, do campo para a fábrica e, por fim, dos notáveis para a sociedade de massas. Hoje, há nova passagem: “a sociedade de massas tornou-se uma sociedade global cada vez mais pulverizada e líquida”. “Na encíclica de Leão XIII”, enfatiza o cardeal Bassetti, “as referências ambientais eram o ‘edifício’ em que os operários trabalhavam e o ‘solo’ ocupado por essa fábrica, enquanto os sujeitos que ali atuavam eram os operários e os patrões”, ao passo que hoje, “essas realidades mudaram profundamente”. Na verdade, “o sistema de produção está em toda parte. E cada aspeto da criação pode, potencialmente, ser usado e manipulado pelas tecnociências, com profundas repercussões na vida de cada ser humano.”
***
As novas tecnologias acompanharam, frequentemente, o caminho do ministério petrino, ao longo dos dois mil anos da História da Igreja. Focando o pontificado de Leão XIII, encontram-se documentos preciosos. O Papa Pecci é o primeiro Pontífice da História imortalizado por uma câmara. Estamos nos primórdios do cinema. No filme, o mais antigo existente na Itália, o Pontífice foi visto a abençoar. A sua voz é a primeira de um Pontífice a ser gravada e está guardada nos arquivos da Rádio Vaticano. Ouve-se Leão XIII a ler alguns trechos da encíclica “Humanum Genus”, sobre a “Condenação do relativismo filosófico e moral da Maçonaria”. A gravação tem a data de publicação da encíclica: 20 de abril de 1884. Foi feita com o fonógrafo de rolo de cera Edison (patenteado em 1877) e enviada à Rádio Vaticano, posteriormente.
O caminho da “Rerum Novarum” ainda aponta a estrada, hoje, e é uma ponte entre o passado e o futuro. Se procurarmos a Via Rerum Novarum em mapas impressos e digitais, as placas coincidem em levar a Carpineto Romano. Na cidade, berço de Leão XIII, há uma estrada que leva o nome da encíclica. Este documento continua a ser um caminho para o qual os Pontífices, a Igreja e o Mundo olham. Como disse Leão XIV, em reunião com o Colégio Cardinalício, a família humana é chamada, ao percorrer este caminho, a enfrentar “novos desafios em defesa da dignidade humana, da justiça e do trabalho”.
***
É curioso anotar como os cristãos – e, obviamente, a hierarquia católica – eclipsaram tão profundos ensinamentos da “Rerum Novarum”. Por mim, devo ao padre Manuel Rodrigues Borges, que foi pároco de Penude, a abertura de pistas para a correta leitura da encíclica leonina. Devo-lhe este preito de gratidão.

2025.07.27 – Louro de Carvalho


O governo quer pôr fim ao luto gestacional

 
O governo quer, no quadro do anteprojeto de reforma da legislação laboral, anunciado a 24 de julho, revogar o artigo 38.º-A do Código do Trabalho (CT), que, desde 2023, garante até três dias consecutivos de luto gestacional à mãe e ao pai (ou acompanhante), em caso de perda precoce da gravidez.
O executivo garante que a gestante fica com mais direitos, mas a oposição, à esquerda, aponta “retrocesso inequívoco”, postura reforçada pelas mulheres socialistas, o que levou o ministério do Trabalho, Solidariedade e da Segurança Social (MTSSS), liderado por Maria do Rosário Palma Ramalho, a desdobrar-se em comunicações em defesa da proposta, quer nas redes sociais, quer através de comunicado enviado às redações.
Em artigo intitulado “O que muda, afinal, com o fim do luto gestacional proposto pelo governo”, publicado no Diário de Notícias online (DN), a 26 de julho, Rui Frias explica o que está em causa e “porque está a gerar tanta polémica”.
A figura de “luto gestacional” foi criada em 2023 e “o direito a falta pelo luto gestacional está contemplado no artigo 38.º-A do Código do Trabalho” (aditado pela Lei n.º 13/2023, de 3 de abril), permitindo “à mãe e ao outro progenitor faltarem, até três dias consecutivos ao trabalho, com direito a salário, após uma perda gestacional precoce – normalmente, nas primeiras semanas de gravidez” e aplicando-se “a perdas gestacionais precoces não abrangidas por baixa médica”, por exemplo, “abortos espontâneos nas primeiras semanas, sem intervenção clínica”.
A grande vantagem, face à alteração pretendida pelo executivo é que “a falta é justificada, paga integralmente pela entidade patronal e não afeta direitos laborais”, pois “a prova exigida é uma simples declaração do hospital ou [do] centro de saúde, sem necessidade de baixa médica”.
O governo de Luís Montenegro propõe a revogação deste artigo, “que define o direito por luto gestacional” e aplicar a licença por interrupção da gravidez, nos termos do artigo 38.º do CT “a todas as situações de perda gestacional, sejam espontâneas, voluntárias ou por razões médicas”.
É certo que “a licença por interrupção da gravidez estipulada no artigo 38.º tem um período mais alargado, ou seja, “entre 14 a 30 dias, definido pelo médico”, aplicando-se “a todas as perdas gestacionais, sejam espontâneas, voluntárias ou involuntárias, independentemente da fase da gravidez”, como garante o MTSSS. Porém, ao invés do que sucede no luto gestacional, “a licença por interrupção da gravidez é paga pela Segurança Social, como se fosse uma baixa por doença, e não pelas empresas empregadoras”, embora, segundo o governo seja subsidiada a 100%. Além disso, “exige atestado médico com indicação explícita da interrupção da gravidez e [com] sugestão de duração da licença”.
Para já, está subjacente um favorecimento ao patronato e uma sobrecarga desnecessária para a Segurança Social. Por outro lado, se não houver necessidade de intervenção médica, o período de duração, mesmo que mínimo (14 dias) é desproporcionado.
Se, para a gestante, a alteração já é gravosa, para o pai ou acompanhante, é pior.
Na verdade, como escreve Rui Frias, o direito do outro progenitor desaparece, enquanto “luto gestacional”, podendo, em alternativa, “usar o regime das faltas por assistência a membro do agregado familiar, até 15 dias por ano”. Contudo, como toda a gente sabe, estas faltas podem não ser remuneradas.
Não obstante, o MTSSS sustenta que a proposta não elimina proteção, só “uniformiza o regime” e evita “interpretações confusas” e “é mais favorável à gestante, por prever uma licença mais longa e subsidiada a 100%”.
“Na eventualidade de interrupção da gravidez, a trabalhadora terá sempre direito ao gozo da licença de 14 a 30 dias, nos termos dispostos no artigo 38.º, n.º 1 (subsidiada a 100 %). Deste modo, não faz sentido prever, em alternativa, o direito a faltar nesta situação”, atira o governo, aduzindo que “a revogação da norma resulta num regime mais favorável à gestante”.
Adicionalmente, considera o executivo, “o direito a faltar ao trabalho pelo outro progenitor já se encontra acautelado, através da previsão do direito a faltar para assistência a membro do agregado familiar, até ao um limite de 15 dias”, enquanto, ao abrigo do artigo referente ao luto gestacional, poderia faltar apenas três dias consecutivos. “Deste modo, também neste segmento, a revogação da norma resulta num regime mais favorável ao companheiro da gestante”, diz o comunicado enviado às redações pelo MTSSS.
Porém, esquece que tais faltas têm um limite fixado, podem ser necessárias para outras situações de assistência ao agregado familiar e podem não ser remuneradas. 
Alguns especialistas e a oposição à esquerda alertam para uma perda de direitos concretos e simbólicos. Com efeito, diz Rui Frias, “o luto gestacional reconhecia a dor emocional de perdas precoces, sem condicionar a mulher à lógica da doença ou da baixa médica”. Assim, “o novo regime seria mais burocrático, menos inclusivo para o pai ou acompanhante, e retiraria o reconhecimento simbólico e humano que o atual luto gestacional representa”.
“A concretizar-se, esta alteração representará um inequívoco retrocesso nos direitos laborais e sociais das famílias, em contexto de perda gestacional”, criticaram, no dia 26, as Mulheres Socialistas, Igualdade e Direitos (MS-ID), órgão do partido Socialista (PS) presidido pela deputada Elza Pais.
Para a MS-ID, “a tentativa de fundir juridicamente regimes distintos, com objetivos e fundamentos legais diferentes, configura uma distorção da verdade e um exercício de desinformação inaceitável”. “É importante dizer, com clareza: ‘Esta alteração representa uma subtração de direitos.’ O governo pode tentar mascará-la com comunicados de esclarecimento, mas a verdade é que não há qualquer ganho. O que há é perda, perda de dignidade, perda de proteção e perda de reconhecimento”, considerou.
***
O governo esclarece que o fim do luto gestacional é para dar lugar a “regime mais favorável à gestante”.
Sob o título “Governo esclarece que fim do luto gestacional é para dar lugar a ‘regime mais favorável à gestante’”, uma peça jornalística de Vítor Moita Cordeiro, publicada no DN, a 25 de julho, dá conta da reafirmação da postura do executivo.
Assim, em resposta às notícias segundo as quais “o governo pretende revogar a falta por luto gestacional, que, atualmente, é de três dias, sem perda de direitos – um acréscimo à licença por interrupção de gravidez, que pode ir de 14 a 30 dias – o governo sublinha que ‘não faz sentido’ manter os dois regimes”.
Uma nota do MTSSS esclarece que, nos termos da atual redação do artigo 38.º-A, n.º 1, do [CT], a trabalhadora está legitimada a faltar ao trabalho, por motivo de luto gestacional, até três dias consecutivos, no caso de não haver lugar ao gozo da licença por interrupção da gravidez”. Porém, segundo o MTSSS, a licença por interrupção da gravidez aplica-se a todos os casos de perda gestacional que impliquem uma gestação que não alcançou o seu termo, ou seja, quando não se tenha verificado o parto”, situação que inclui interrupções voluntárias ou involuntárias “da gravidez, bem como o aborto espontâneo”. Nestes termos, na eventualidade de interrupção da gravidez, a trabalhadora terá sempre direito ao gozo da licença de 14 a 30 dias, nos termos dispostos no artigo 38.º, n.º 1 (subsidiada a 100 %). Deste modo, não faz sentido prever, em alternativa, o direito a faltar nesta situação”, conclui o governo, argumentando que “a revogação da norma resulta num regime mais favorável à gestante”.
Como a redação da lei atual gerava “perplexidades e dúvidas interpretativas”, o executivo propõe a revogação do artigo artigo 38.º-A, n.º 1.
Devo dizer que o MTSSS não é exato, pois não está em causa só a revogação do n.º 1 do artigo 38.º-A. A proposta do governo implica a revogação de todo o artigo, pois o n.º 2 atribui ao pai “o direito de faltar ao trabalho, até três dias consecutivos”, o que, doravante, passaria a enquadrar-se nas faltas por assistência à família; o n.º 3 estabelece a obrigação de o trabalhador e a trabalhadora “os respetivos empregadores, apresentando, logo que possível, prova do facto invocado, através de declaração de estabelecimento hospitalar, ou centro de saúde, ou ainda atestado médico; e o n.º 4 estabelece uma cláusula penal, que deixa de fazer sentido.
Como refere Vítor Moita Cordeiro, o artigo 38.º-A do CT, “que legitimava a falta ao trabalho, durante três dias, por luto gestacional foi incluído no Código do Trabalho, em janeiro de 2023, na sequência de uma proposta de alteração do PS [Partido Socialista] à agenda do trabalho digno”, visto que “o entendimento do PS era que a licença por interrupção de gravidez não abrangia casos em que os médicos consideram não ter existido impacto físico na mãe”.
O atual governo não tem esse entendimento. Por isso, de acordo com o MTSSS, a revogação da norma “resulta num regime mais favorável à gestante”.
Adicionalmente, ainda segundo o MTSSS, “o direito a faltar ao trabalho pelo outro progenitor já se encontra acautelado, através da previsão do direito a faltar para assistência a membro do agregado familiar, até ao um limite de 15 dias, como aliás, no termos do presente disposto, o outro progenitor poderia faltar, apenas três dias consecutivos. Deste modo, também neste segmento, a revogação da norma resulta num regime mais favorável ao companheiro da gestante”.
A tutela de Palma Ramalho justifica este esclarecimento “por todas as perplexidades e dúvidas interpretativas suscitadas pela atual redação do referido artigo” pelo que se propõe a sua revogação. “Todas as gestantes conservam os direitos. Toda a confusão gerada resulta de uma leitura errada dos preceitos, garante.
Como vimos, não é bem assim. Aliás, dá para concluir que, afinal, é o governo que não está a ler bem a proposta que pretende fazer.
***
A 26 de julho, as Mulheres Socialistas acusaram o governo de querer levar a cabo um “inequívoco retrocesso” no luto gestacional e afirmam que os pretensos “comunicados de esclarecimento” não vão mascarar o que sustentam ser uma “subtração de direitos”.
Em comunicado, o secretariado nacional das Mulheres Socialistas, Igualdade e Direitos (MS-ID) referiu que, nos últimos dias, foi “tornada pública a intenção do governo de revogar” os três dias de licença remunerada por luto gestacional. “A concretizar-se, representará um inequívoco retrocesso nos direitos laborais e sociais das famílias, em contexto de perda gestacional”, considerou este órgão do PS. 
O secretariado da MS-ID afirmou que o executivo alegou, “falsamente, que a licença seria ‘alargada’ de três para 15 dias”, mas frisou que o regime de 15 dias a que o executivo se refere “já existe e corresponde à licença por interrupção da gravidez, aplicável exclusivamente à grávida, mediante avaliação médica e em qualquer fase de gestação”.
“A licença cuja revogação está em curso é diferente: trata-se de uma licença laboral autónoma, remunerada e sem perda de direitos, aplicável a ambos os progenitores, nas situações de perda gestacional até às 24 semanas”, salientou. 
Para a MS-ID, “a tentativa de fundir, juridicamente, regimes distintos, com objetivos e fundamentos legais diferentes, configura uma distorção da verdade e um exercício de desinformação inaceitável”.
As Mulheres Socialistas vincaram que a alteração proposta pelo governo introduz a “eliminação da possibilidade de ambos os progenitores usufruírem de três dias de luto, quando não se verifique uma interrupção médica da gravidez, o que sucede em muitas perdas gestacionais precoces”. “A proposta do governo ignora que muitas perdas gestacionais ocorrem fora de qualquer decisão médica ou voluntária. Muitas são espontâneas, traumáticas e inesperadas. É, precisamente, nesses casos que a licença de três dias se aplicava, permitindo um tempo mínimo de luto e dignidade”, afirmaram, reiterando que a alteração do governo não representa “qualquer ‘alargamento’, mas, sim, a eliminação de uma medida de equidade e justiça social”.
“É importante dizer, com clareza: ‘Esta alteração representa uma subtração de direitos.’ O governo pode tentar mascará-la com comunicados de ‘esclarecimento’, mas a verdade é que não há qualquer ganho. O que há é perda”, consideram.
Para a MS-ID, o que há é “perda de dignidade, perda de proteção e perda de reconhecimento”.
“O governo cede, novamente, a uma agenda populista e desumana que desvaloriza a dor, omite o luto e desumaniza a sociedade, desvalorizando as emoções que envolvem a perda de uma gravidez”, acentuam.
As Mulheres Socialistas disseram repudiar, “com veemência, esta intenção política, que desvaloriza a experiência da perda e ignora a vivência emocional e psicológica de milhares de casais”. “Não aceitamos recuos nos direitos de quem sofre. Não aceitaremos que se apague o luto com falsos pretextos legais, muito menos com falta de verdade e afirmações, desviantes, de que as alterações são no interesse de quem perde. Responderemos sempre”, prometem.
***
A alteração à lei não é meramente cirúrgica. Há, de facto, um desvio no entendimento do conceito de luto gestacional, que implica uma subtração de direitos, mascarada de remissão para situações diferentes, havidas como similares. O governo parece não perceber a situação do luto gestacional, no que tem de sentido emocional e solidário de perda, contrariando uma vontade esperançosa dos progenitores. E também confunde uma informação, embora com prova futura, com a necessidade de uma intervenção médica, eventualmente com a necessária terapêutica.  
Por isso – como o governo, em vez de atender às vozes que estão a clamar contra a subtração de um direito, multiplica as explicações que não abrangem a totalidade da proposta, mas a mascaram –, é de toda a justiça apoiar o posicionamento da MS-ID.  

2025.07.27 – Louro de Carvalho


sábado, 26 de julho de 2025

Está inteiramente inaugurado o Parque Papa Francisco, em Lisboa-Loures

 
A Câmara Municipal de Lisboa inaugurou, a 24 de julho, com a bênção do patriarca de lisboa, D. Rui Valério, o Parque Papa Francisco, espaço que acolheu a Jornada Mundial da Juventude Lisboa de 2023 (JMJ2023), e o patriarca de Lisboa considerou que tal ação constituiu um “gesto profético”. Ficou, deste modo, inaugurada a totalidade do parque que, dantes, era denominado “Parque Tejo”. Com efeito, a Câmara Municipal de Loures tinha já procedido à inauguração, com a bênção do mesmo dignitário eclesiástico, por ocasião das festas do seu município.   
“E é [gesto] profético no sentido em que, ao mesmo tempo que celebra um acontecimento belo, de verdade, de beleza, de encanto, de paz, denuncia todas aquelas situações que, atualmente, estão a acontecer, seja em Gaza, seja em tantas geografias do Mundo onde a paz ainda não existe”, afirmou D. Rui Valério, em declarações aos jornalistas, no final da cerimónia.
A inauguração do Parque Papa Francisco, realizada no altar-palco do antigo Parque Tejo, contou com a presença do presidente da Câmara Municipal de Lisboa, Carlos Moedas, do cardeal D. Américo Aguiar, então presidente da Fundação JMJ, além de vereadores da autarquia e do encarregado de negócios da Nunciatura Apostólica, monsenhor José António Teixeira Alves, que leu uma mensagem do Papa Leão XIV.
D. Rui Valério, patriarca de Lisboa considera que o “Parque Papa Francisco não está verdadeiramente só ao serviço de Lisboa e dos lisboetas”, mas “ao serviço da humanidade”, sobretudo, quando recorda que ali a “diversidade não foi fator de individualidade”, mas “criador da fraternidade, de proximidade e de paz”.
“Eu prevejo que vai ter muito sucesso e vai ser, não vou dizer que vai ser decisivo, mas vai ser muito importante, em termos de ser uma alavanca para uma cultura de proximidade e uma cultura de entendimento”, realçou.
Na cerimónia, D. Rui Valério abençoou o espaço e lembrou a JMJ2023, um “acontecimento que trouxe a Lisboa pessoas oriundas de todas as proveniências”, observando que, naqueles dias, a capital portuguesa foi “um microcosmos, um lugar onde a diversidade não foi motivo de conflitualidade, de desentendimento”. “Antes pelo contrário. Nós assistimos aqui a Lisboa a esse milagre, a essa maravilha de ver e de verificar como na diferença se constrói unidade”, enfatizou.
Para o patriarca e metropolita da província eclesiástica de Lisboa, a inauguração daquele lugar “não é apenas um memorial à paz, mas o Parque Papa Francisco quer ser uma fonte de inspiração para a paz”. E D. Rui Valério desejou que quem frequenta aquele parque verde “se sinta impelido para que, contemplando o Mundo”, emita dali “não só um desejo, mas uma vontade de construir a paz, para que todas as nações façam das suas diferenças, das suas diversidades, não fonte de conflito, mas fonte de unidade e de entendimento”.
Por sua vez, o presidente da Câmara Municipal de Lisboa, Carlos Moedas, acredita que a realização da JMJ2023 com um milhão e meio de jovens foi o “produto de um homem, do carisma de um homem”, que se chama Papa Francisco. E valoriza a marca que o antecessor de Leão XIV deixou em Lisboa e no Mundo, destacando os dias em que esteve na capital, em agosto de 2023, que “marcaram, de forma irrepetível, inesquecível”, aquilo a cidade lisboeta é. “Não houve nenhum evento no nosso país, não houve nenhum momento na nossa cidade que se comparasse àquilo que vivemos”, assinalou.
“Às vezes, estou com os jovens e digo-lhes: ‘Acreditem no futuro!’. Mas, para isso, temos de fazer esse esforço de união e temos de fazer esse esforço de falar uns com os outros, num Mundo tão polarizado. A mensagem do Papa Francisco era essa. O ‘todos, todos, todos’ era a capacidade de falarmos uns com os outros, era a capacidade de nos ouvirmos, nos compreendermos, da paz”, sublinhou o presidente da Câmara Municipal de Lisboa, na sua intervenção, durante a cerimónia.
***
A inauguração do Parque Papa Francisco, anteriormente designado de Parque Tejo, espaço verde que liga Lisboa ao concelho vizinho de Loures, ocorreu no palco-altar da JMJ e foi realizada no âmbito do 16.º World Scout Moot (WSM), um evento que reúne milhares de escuteiros de todo o Mundo, que estão acampados no local.
Acompanhado do patriarca de Lisboa, Rui Valério, que abençoou o Parque Papa Francisco, Carlos Moedas, lembrou a JMJ 2023 como um evento que foi “além da Igreja Católica, que tocou todas as religiões, que tocou todos os cidadãos desta cidade”.
“Nós tínhamos de agradecer ao Papa Francisco, dando-lhe o nome deste parque”, vincou o autarca, destacando a mensagem de união e de paz a JMJ, resumida a: “Todos, todos, todos”.
Carlos Moedas realçou ainda a marca “inesquecível” de Francisco, que, em 2023, juntou 1,5 milhões de pessoas, em Lisboa, durante a JMJ, em que se viveram “momentos únicos de união, de união da cidade, de união do Mundo”.
Do lado de Lisboa, o Parque Papa Francisco tem 30 hectares de espaço verde, que já a ser utilizado pela população, mas que a autarquia pretende “melhorar e ter mais projetos”, excluindo o betão.
O patriarca de Lisboa considerou a homenagem ao Papa Francisco como “um gesto profético”, lembrando – nunca é de mais insistir – a capacidade que teve de juntar “pessoas oriundas de todas as proveniências”, durante a JMJ: “Não é apenas um memorial à paz, mas o Parque Papa Francisco quer ser uma fonte inspiração para a paz”, considerando que este espaço denuncia também as situações onde a paz ainda não existe, desde a Ucrânia a Gaza.
Papa Leão XIV também se fez presente nesta cerimónia, com uma mensagem escrita, em que agradeceu aos municípios de Lisboa e de Loures a decisão de dar ao Parque Tejo o nome do Papa Francisco. Nessa mensagem, Leão XIV disse que “revive, com gratidão, os lindos momentos passados em Portugal [ele também esteve em Lisboa na JMJ] e recorda o rosto feliz do Papa Francisco no meio dos jovens de todas as partes do Mundo, marcados pelas mais variadas culturas e unidos pela mesma alegria”, esperando que se perpetue “o eco do seu veemente apelo à paz”.
***
Considerando que as próximas eleições autárquicas já estão marcadas para 12 de outubro e que, por isso, está já proibida a publicidade institucional, por parte da administração pública, inclusive de obras, “salvo em caso de grave e urgente necessidade pública” (e o caso do 16.º World Scout Moot equipara-se-lhe), Carlos Moedas, que é candidato, foi questionado sobre esta inauguração.
“Sou presidente da câmara durante quatro anos e aquilo que faço é como presidente da câmara [...]. Todos os dias estou a trabalhar, todos os dias estou a concluir obras, todos os dias estou a fazer cidade e, portanto, eu tenho de estar presente e, portanto, vou estar presente, porque sou presidente da câmara. Sou também candidato para as próximas eleições, como é óbvio, mas não vou fazer mais nenhum comentário”, declarou.
***
Como referimos, Leão XIV uniu-se à cerimónia de inauguração do Parque Papa Francisco, em Lisboa, através de uma mensagem, manifestando a vontade de que o apelo à paz do antecessor se eternize. “O atual sucessor de Pedro formula votos de que, com o ato de vincular o espaço onde decorreu a última fase da Jornada Mundial da Juventude à figura inspiradora do Papa Francisco, se perpetue o eco do seu veemente apelo à paz, à convivência fraterna, à construção de pontes, ao diálogo entre gerações, ao cuidado da natureza, à oferta de uma sólida esperança para os nossos jovens e crianças”, refere o texto.
O encarregado de negócios da Nunciatura Apostólica, monsenhor José António Teixeira Alves, foi o responsável pela leitura da mensagem, assinada pelo cardeal Pietro Parolin, secretário de Estado do Vaticano, numa cerimónia em que participaram também o presidente da Câmara Municipal de Lisboa, Carlos Moedas, o patriarca de Lisboa, D. Rui Valério, e o cardeal D. Américo Aguiar.
O Papa Leão XIV agradeceu a quem teve “tão nobre iniciativa” de atribuir o nome do Papa Francisco ao Parque Tejo, que acolheu a JMJ2023, associando-se ao momento e saudando todos os que nele participam.
O Sumo Pontífice “revive, com gratidão, os lindos momentos passados em Portugal e recorda o rosto feliz do Papa Francisco no meio dos jovens de todas as partes do Mundo, marcados pelas mais variadas culturas e unidos pela mesma alegria”.
Leão XIV recordou o momento da vigília durante a JMJ Lisboa 2023, a 5 de agosto, em que, naquela zona ribeirinha, Francisco “desafiou os presentes a pensar em alguém que tivesse sido nas suas vidas um raio de luz”. “Hoje, com a presente homenagem, evocar a pessoa luminosa de Francisco não faz olhar só para trás, mas convoca a promover a cultura da amizade social de abertura a todos, todos, todos, com uma particular preferência pelos pobres, tal como o ensina Jesus Cristo”, destacou.
No final da mensagem, confiante de que o testemunho do seu antecessor será guardado, o Papa, com sentimentos de viva comunhão, assegurou, nas suas orações, uma particular lembrança de D. Rui Valério e de todos os habitantes da zona metropolitana de Lisboa e, de bom grado, invocou “sobre as respetivas autoridades civis, eclesiásticas e militares copiosas bênçãos celestiais”.
A cerimónia ficou marcada pelo descerramento de uma placa evocativa da atribuição do topónimo “Parque Papa Francisco”, das intervenções de D. Rui Valério, que abençoou o espaço, e de Carlos Moedas, seguindo-se um momento musical protagonizado pelo padre Vítor Silva.
***  
Por sua vez, no recinto do Parque Papa Francisco, nos dia 24 e 25 de julho cerca de sete mil e 500 escuteiros católicos e escoteiros de todo o Mundo reuniram-se para o arranque do WSM, que decorre, em todo o país, até 2 de agosto.
No dia 24, junto ao rio Tejo, já se viam centenas de tendas e foram vários os jovens que aproveitaram para assistir à inauguração do parque Papa Francisco e rezar durante a cerimónia. Para Inês Graça, diretora do evento, este foi um momento “marcante e emocionante”.
“É um sentimento e uma vivência de homenagear o Papa Francisco, de homenagear a fraternidade e a paz, neste momento, mas também, neste momento em que o Mundo está, de conseguirmos dar esta luz e este brilho aos jovens com o Papa Francisco. É um sinalzinho muito grande de esperança e de iluminação que temos”, acredita.
O programa do WSM conta com percursos pedestres, organização de debates, visitas a monumentos e atividades de serviço à comunidade, realização de jogos e “workshops” e visitas aos arredores, enquanto se deslocam em diferentes rotas por Portugal. A 30 de julho, em Ovar, os participantes chegarão a Cortegaça, no concelho de Ovar, para o acampamento final.
Enfim, mais uma iniciativa a mobilizar pessoas, nomeadamente, jovens!

2025.07.26 – Louro de Carvalho