O governo quer, no quadro do anteprojeto de reforma da legislação laboral, anunciado a 24 de julho, revogar o artigo 38.º-A do Código do Trabalho (CT), que, desde 2023, garante até três dias consecutivos de luto gestacional à mãe e ao pai (ou acompanhante), em caso de perda precoce da gravidez.
O executivo garante que a gestante fica com mais direitos, mas a oposição, à esquerda, aponta “retrocesso inequívoco”, postura reforçada pelas mulheres socialistas, o que levou o ministério do Trabalho, Solidariedade e da Segurança Social (MTSSS), liderado por Maria do Rosário Palma Ramalho, a desdobrar-se em comunicações em defesa da proposta, quer nas redes sociais, quer através de comunicado enviado às redações.
Em artigo intitulado “O que muda, afinal, com o fim do luto gestacional proposto pelo governo”, publicado no Diário de Notícias online (DN), a 26 de julho, Rui Frias explica o que está em causa e “porque está a gerar tanta polémica”.
A figura de “luto gestacional” foi criada em 2023 e “o direito a falta pelo luto gestacional está contemplado no artigo 38.º-A do Código do Trabalho” (aditado pela Lei n.º 13/2023, de 3 de abril), permitindo “à mãe e ao outro progenitor faltarem, até três dias consecutivos ao trabalho, com direito a salário, após uma perda gestacional precoce – normalmente, nas primeiras semanas de gravidez” e aplicando-se “a perdas gestacionais precoces não abrangidas por baixa médica”, por exemplo, “abortos espontâneos nas primeiras semanas, sem intervenção clínica”.
O governo de Luís Montenegro propõe a revogação deste artigo, “que define o direito por luto gestacional” e aplicar a licença por interrupção da gravidez, nos termos do artigo 38.º do CT “a todas as situações de perda gestacional, sejam espontâneas, voluntárias ou por razões médicas”.
É certo que “a licença por interrupção da gravidez estipulada no artigo 38.º tem um período mais alargado, ou seja, “entre 14 a 30 dias, definido pelo médico”, aplicando-se “a todas as perdas gestacionais, sejam espontâneas, voluntárias ou involuntárias, independentemente da fase da gravidez”, como garante o MTSSS. Porém, ao invés do que sucede no luto gestacional, “a licença por interrupção da gravidez é paga pela Segurança Social, como se fosse uma baixa por doença, e não pelas empresas empregadoras”, embora, segundo o governo seja subsidiada a 100%. Além disso, “exige atestado médico com indicação explícita da interrupção da gravidez e [com] sugestão de duração da licença”.
Para já, está subjacente um favorecimento ao patronato e uma sobrecarga desnecessária para a Segurança Social. Por outro lado, se não houver necessidade de intervenção médica, o período de duração, mesmo que mínimo (14 dias) é desproporcionado.
Se, para a gestante, a alteração já é gravosa, para o pai ou acompanhante, é pior.
Na verdade, como escreve Rui Frias, o direito do outro progenitor desaparece, enquanto “luto gestacional”, podendo, em alternativa, “usar o regime das faltas por assistência a membro do agregado familiar, até 15 dias por ano”. Contudo, como toda a gente sabe, estas faltas podem não ser remuneradas.
Não obstante, o MTSSS sustenta que a proposta não elimina proteção, só “uniformiza o regime” e evita “interpretações confusas” e “é mais favorável à gestante, por prever uma licença mais longa e subsidiada a 100%”.
“Na eventualidade de interrupção da gravidez, a trabalhadora terá sempre direito ao gozo da licença de 14 a 30 dias, nos termos dispostos no artigo 38.º, n.º 1 (subsidiada a 100 %). Deste modo, não faz sentido prever, em alternativa, o direito a faltar nesta situação”, atira o governo, aduzindo que “a revogação da norma resulta num regime mais favorável à gestante”.
Adicionalmente, considera o executivo, “o direito a faltar ao trabalho pelo outro progenitor já se encontra acautelado, através da previsão do direito a faltar para assistência a membro do agregado familiar, até ao um limite de 15 dias”, enquanto, ao abrigo do artigo referente ao luto gestacional, poderia faltar apenas três dias consecutivos. “Deste modo, também neste segmento, a revogação da norma resulta num regime mais favorável ao companheiro da gestante”, diz o comunicado enviado às redações pelo MTSSS.
Porém, esquece que tais faltas têm um limite fixado, podem ser necessárias para outras situações de assistência ao agregado familiar e podem não ser remuneradas.
Alguns especialistas e a oposição à esquerda alertam para uma perda de direitos concretos e simbólicos. Com efeito, diz Rui Frias, “o luto gestacional reconhecia a dor emocional de perdas precoces, sem condicionar a mulher à lógica da doença ou da baixa médica”. Assim, “o novo regime seria mais burocrático, menos inclusivo para o pai ou acompanhante, e retiraria o reconhecimento simbólico e humano que o atual luto gestacional representa”.
“A concretizar-se, esta alteração representará um inequívoco retrocesso nos direitos laborais e sociais das famílias, em contexto de perda gestacional”, criticaram, no dia 26, as Mulheres Socialistas, Igualdade e Direitos (MS-ID), órgão do partido Socialista (PS) presidido pela deputada Elza Pais.
Para a MS-ID, “a tentativa de fundir juridicamente regimes distintos, com objetivos e fundamentos legais diferentes, configura uma distorção da verdade e um exercício de desinformação inaceitável”. “É importante dizer, com clareza: ‘Esta alteração representa uma subtração de direitos.’ O governo pode tentar mascará-la com comunicados de esclarecimento, mas a verdade é que não há qualquer ganho. O que há é perda, perda de dignidade, perda de proteção e perda de reconhecimento”, considerou.
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O governo
esclarece que o fim do luto gestacional é para dar lugar a “regime mais
favorável à gestante”.Sob o título “Governo esclarece que fim do luto gestacional é para dar lugar a ‘regime mais favorável à gestante’”, uma peça jornalística de Vítor Moita Cordeiro, publicada no DN, a 25 de julho, dá conta da reafirmação da postura do executivo.
Assim, em resposta às notícias segundo as quais “o governo pretende revogar a falta por luto gestacional, que, atualmente, é de três dias, sem perda de direitos – um acréscimo à licença por interrupção de gravidez, que pode ir de 14 a 30 dias – o governo sublinha que ‘não faz sentido’ manter os dois regimes”.
Uma nota do MTSSS esclarece que, “nos termos da atual redação do artigo 38.º-A, n.º 1, do [CT], a trabalhadora está legitimada a faltar ao trabalho, por motivo de luto gestacional, até três dias consecutivos, no caso de não haver lugar ao gozo da licença por interrupção da gravidez”. Porém, segundo o MTSSS, “a licença por interrupção da gravidez aplica-se a todos os casos de perda gestacional que impliquem uma gestação que não alcançou o seu termo, ou seja, quando não se tenha verificado o parto”, situação que inclui interrupções voluntárias ou involuntárias “da gravidez, bem como o aborto espontâneo”. Nestes termos, “na eventualidade de interrupção da gravidez, a trabalhadora terá sempre direito ao gozo da licença de 14 a 30 dias, nos termos dispostos no artigo 38.º, n.º 1 (subsidiada a 100 %). Deste modo, não faz sentido prever, em alternativa, o direito a faltar nesta situação”, conclui o governo, argumentando que “a revogação da norma resulta num regime mais favorável à gestante”.
Como refere Vítor Moita Cordeiro, o artigo 38.º-A do CT, “que legitimava a falta ao trabalho, durante três dias, por luto gestacional foi incluído no Código do Trabalho, em janeiro de 2023, na sequência de uma proposta de alteração do PS [Partido Socialista] à agenda do trabalho digno”, visto que “o entendimento do PS era que a licença por interrupção de gravidez não abrangia casos em que os médicos consideram não ter existido impacto físico na mãe”.
O atual governo não tem esse entendimento. Por isso, de acordo com o MTSSS, a revogação da norma “resulta num regime mais favorável à gestante”.
Adicionalmente, ainda segundo o MTSSS, “o direito a faltar ao trabalho pelo outro progenitor já se encontra acautelado, através da previsão do direito a faltar para assistência a membro do agregado familiar, até ao um limite de 15 dias, como aliás, no termos do presente disposto, o outro progenitor poderia faltar, apenas três dias consecutivos. Deste modo, também neste segmento, a revogação da norma resulta num regime mais favorável ao companheiro da gestante”.
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A 26 de julho,
as Mulheres Socialistas acusaram o governo de querer levar a cabo um “inequívoco
retrocesso” no luto gestacional e afirmam que os pretensos “comunicados de esclarecimento”
não vão mascarar o que sustentam ser uma “subtração de direitos”.Em comunicado, o secretariado nacional das Mulheres Socialistas, Igualdade e Direitos (MS-ID) referiu que, nos últimos dias, foi “tornada pública a intenção do governo de revogar” os três dias de licença remunerada por luto gestacional. “A concretizar-se, representará um inequívoco retrocesso nos direitos laborais e sociais das famílias, em contexto de perda gestacional”, considerou este órgão do PS.
O secretariado da MS-ID afirmou que o executivo alegou, “falsamente, que a licença seria ‘alargada’ de três para 15 dias”, mas frisou que o regime de 15 dias a que o executivo se refere “já existe e corresponde à licença por interrupção da gravidez, aplicável exclusivamente à grávida, mediante avaliação médica e em qualquer fase de gestação”.
“A licença cuja revogação está em curso é diferente: trata-se de uma licença laboral autónoma, remunerada e sem perda de direitos, aplicável a ambos os progenitores, nas situações de perda gestacional até às 24 semanas”, salientou.
Para a MS-ID, “a tentativa de fundir, juridicamente, regimes distintos, com objetivos e fundamentos legais diferentes, configura uma distorção da verdade e um exercício de desinformação inaceitável”.
As Mulheres Socialistas vincaram que a alteração proposta pelo governo introduz a “eliminação da possibilidade de ambos os progenitores usufruírem de três dias de luto, quando não se verifique uma interrupção médica da gravidez, o que sucede em muitas perdas gestacionais precoces”. “A proposta do governo ignora que muitas perdas gestacionais ocorrem fora de qualquer decisão médica ou voluntária. Muitas são espontâneas, traumáticas e inesperadas. É, precisamente, nesses casos que a licença de três dias se aplicava, permitindo um tempo mínimo de luto e dignidade”, afirmaram, reiterando que a alteração do governo não representa “qualquer ‘alargamento’, mas, sim, a eliminação de uma medida de equidade e justiça social”.
“É importante dizer, com clareza: ‘Esta alteração representa uma subtração de direitos.’ O governo pode tentar mascará-la com comunicados de ‘esclarecimento’, mas a verdade é que não há qualquer ganho. O que há é perda”, consideram.
Para a MS-ID, o que há é “perda de dignidade, perda de proteção e perda de reconhecimento”.
“O governo cede, novamente, a uma agenda populista e desumana que desvaloriza a dor, omite o luto e desumaniza a sociedade, desvalorizando as emoções que envolvem a perda de uma gravidez”, acentuam.
As Mulheres Socialistas disseram repudiar, “com veemência, esta intenção política, que desvaloriza a experiência da perda e ignora a vivência emocional e psicológica de milhares de casais”. “Não aceitamos recuos nos direitos de quem sofre. Não aceitaremos que se apague o luto com falsos pretextos legais, muito menos com falta de verdade e afirmações, desviantes, de que as alterações são no interesse de quem perde. Responderemos sempre”, prometem.
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A alteração à
lei não é meramente cirúrgica. Há, de facto, um desvio no entendimento do
conceito de luto gestacional, que implica uma subtração de direitos, mascarada
de remissão para situações diferentes, havidas como similares. O governo parece
não perceber a situação do luto gestacional, no que tem de sentido emocional e solidário
de perda, contrariando uma vontade esperançosa dos progenitores. E também
confunde uma informação, embora com prova futura, com a necessidade de uma intervenção
médica, eventualmente com a necessária terapêutica. Por isso – como o governo, em vez de atender às vozes que estão a clamar contra a subtração de um direito, multiplica as explicações que não abrangem a totalidade da proposta, mas a mascaram –, é de toda a justiça apoiar o posicionamento da MS-ID.
2025.07.27 – Louro de Carvalho
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