segunda-feira, 7 de julho de 2025

Repúdio a “declarações xenófobas e exposição indevida de menores”

 

Sob o título “Associações de pais divulgam carta de repúdio a ‘declarações xenófobas e exposição indevida de menores’ pelo Chega”, João Sundfeld, no Expresso online, dá nota, a 7 de julho, de uma carta aberta de sete associações de mães, pais e encarregados de educação de escolas em Lisboa a repudiar o que entendem como declarações xenófobas e exposição indevida de menores por deputados do partido do Chega.
O episódio ocorreu nas redes sociais e na Assembleia da República (AR), no final da semana anterior, no âmbito da discussão parlamentar sobre propostas de lei do governo (e de projetos de lei de alguns partidos, nomeadamente, do Chega) atinentes às alterações à Lei da Nacionalidade (Lei n.º 37/81, de 3 de outubro, cuja última alteração lhe foi introduzida pela Lei Orgânica n.º 1/2024, de 5 de março) e à Lei dos Estrangeiros (Lei n.º 23/2007, de 4 de julho, cuja última alteração lhe foi introduzida pela Lei n.º 9/2025, de 13 de fevereiro), com a divulgação, por Rita Matias e por André Ventura, dos nomes de alunos de uma turma de jardim de infância de uma escola pública.

Na carta aberta – endereçada ao Presidente da República (PR), ao presidente da Assembleia da República (PAR), aos partidos políticos com assento parlamentar e ao presidente da Câmara Municipal de Lisboa (CML) –, as associações em causa sustentam que os autores da referida divulgação procederam à exposição destas crianças, para alimentar uma narrativa de ódio que vai contra a Constituição, da República Portuguesa (CRP), cujo artigo 26.º, n.º 2, prevê que “a lei estabelecerá garantias efetivas contra a obtenção e utilização abusivas, ou contrárias à dignidade humana, de informações relativas às pessoas e famílias”. Isto, em consonância com o n.º 1 do mesmo artigo, que estabelece: “A todos são reconhecidos os direitos à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade, à capacidade civil, à cidadania, ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra, à reserva da intimidade da vida privada e familiar e à proteção legal contra quaisquer formas de discriminação.

Num primeiro ponto da carta aberta, as entidades subscritoras “repudiam, veementemente, as atitudes dos deputados do Chega”, aduzindo que tal ato é de uma gravidade extrema, viola o direito à privacidade [das crianças] e coloca-as como alvo de ódio e discriminação num espaço onde deveriam estar protegidas: a escola públicaPor outro lado, declaram que “a instrumentalização de crianças, especialmente, num contexto político, é irresponsável e perigosa”.

Depois, desmentem a alegação daqueles políticos de que “os imigrantes são favorecidos no processo de matrícula em instituições de ensino públicas”, uma vez que, segundo as entidades subscritoras, o processo de colocação em jardins de infância públicos obedece a critérios legais claros, transparentes e públicos”, para o que citam o Despacho Normativo n.º 10-B/2021, de 14 de abril, que “define a ordem de prioridade para alunos se inscreverem em instituições de ensino, sem qualquer menção à nacionalidade do estudante ou dos pais”.

Além disso, como afirmam, “qualquer encarregado de educação tem ao seu dispor mecanismos legais e administrativos para apresentar reclamações e pedidos de esclarecimento adicionais nas entidades.”

***

Embora concorde com o teor da carta aberta e com os seus fundamentos, como a discurso frívolo se há de responder com rigor, entendo por conveniente precisar que o despacho normativo a referir deveria ter sido o Despacho Normativo n.º 6/2018, de 12 de abril, que “estabelece os procedimentos da matrícula e respetiva renovação e as normas a observar na distribuição de crianças e alunos”, com as alterações introduzidas pelos despachos normativos n.os 5/2020, de 21 de abril, e 10-B/2021, de 14 de abril, tendo cada um deles republicado o diploma original, com as respetivas alterações.

A norma específica em causa é o seu artigo 10.º, cuja epígrafe é “Prioridades na matrícula ou renovação de matrícula na educação pré-escolar” e cujo teor se transcreve, para que não restem dúvidas:

“1 - Na educação pré-escolar, as vagas existentes em cada estabelecimento de educação, para matrícula ou renovação de matrícula, são preenchidas de acordo com as seguintes prioridades:

1.ª Crianças que completem os 5 e os 4 anos de idade até dia 31 de dezembro, sucessivamente, pela ordem indicada;

2.ª Crianças que completem os 3 anos de idade até 15 de setembro;

3.ª Crianças que completem os 3 anos de idade entre 16 de setembro e 31 de dezembro.”

“2 - No âmbito de cada uma das prioridades referidas no número anterior, e como forma de desempate em situação de igualdade, são observadas, sucessivamente, as seguintes prioridades:

1.ª Crianças com necessidades educativas específicas de acordo com o previsto nos artigos 27.º e 36.º do Decreto-lei n.º 54/2018, de 6 de julho [que “estabelece o regime jurídico da educação inclusiva”], na redação conferida pela Lei n.º 116/2019, de 13 de setembro (em virtude da apreciação parlamentar);

2.ª Filhos de mães e pais estudantes menores, nos termos previstos no artigo 4.º da Lei n.º 90/2001, de 20 de agosto [que “define medidas de apoio social às mães e pais estudantes], na redação conferida pela Lei n.º 60/2017, de 1 de agosto [que lhe introduziu a primeira alteração];

3.ª Crianças com irmãos ou com outras crianças e jovens, que, comprovadamente, pertençam ao mesmo agregado familiar, a frequentar o estabelecimento de educação e de ensino pretendido, nos termos previstos no n.º 4 do artigo 2.º;

4.ª Crianças beneficiárias de ASE [Ação Social Escolar], cujos encarregados de educação residam, comprovadamente, na área de influência do estabelecimento de educação e de ensino pretendido;

5.ª Crianças beneficiárias de ASE, cujos encarregados de educação desenvolvam a sua atividade profissional, comprovadamente, na área de influência do estabelecimento de educação e de ensino pretendido;

6.ª Crianças cujos encarregados de educação residam, comprovadamente, na área de influência do estabelecimento de educação e de ensino pretendido;

7.ª Crianças mais velhas, contando-se a idade, para o efeito, sucessivamente, em anos, meses e dias;

8.ª Crianças cujos encarregados de educação desenvolvam a sua atividade profissional, comprovadamente, na área de influência do estabelecimento de educação e de ensino pretendido;

9.ª Outras prioridades e ou critérios de desempate definidos no regulamento interno do estabelecimento de educação e de ensino.”

“3 - Na renovação de matrícula na educação pré-escolar é dada prioridade às crianças que frequentaram, no ano anterior, o estabelecimento de educação e de ensino que pretendem frequentar, aplicando-se, sucessivamente, as prioridades definidas nos números anteriores.”

***

Por fim, as referidas sete associações reconhecem os problemas de oferta pública para a educação pré-escolar em Lisboa (não só em Lisboa, digo eu), reiteram que a solução não está, nem nunca poderá estar, na discriminação e exclusão de crianças, mas no investimento e [no] aumento da oferta pública ou em parceria com a rede de IPSS [Instituições Particulares de Solidariedade Social]. E, antes de finalizarem o documento, afirmam que a diversidade nas nossas escolas reflete a riqueza e pluralidade das comunidades onde vivemos, recusando o medo, a divisão e o preconceito.

O texto, como refere o articulista, é assinado por organizações de pais, mães e encarregados de educação dos seguintes estabelecimentos de ensino: Agrupamento de Escolas Gil Vicente, Agrupamento de Escolas Patrício Prazeres, EB1 Arquiteto Victor Palla, EB1 Sampaio Garrido, EB1+JI Rainha Santa Isabel, Escola Mestre Arnaldo Louro de Almeida e Associação de Pais de São José.
O tema, que foi mencionado no Expresso Curto, do dia 7, foi também desenvolvido em dois artigos de opinião, no mesmo dia, assinados por Henrique Raposo (“André Ventura e Rita Matias: portugueses de mal”) e por Daniel Oliveira (“Morreu o ‘não é não’. A abjeção foi manobra de diversão”).
Não obstante, é estranho que não tenha havido uma pública tomada de posição da parte das confederações interessadas na matéria, nomeadamente, a Confederação Nacional das Associações de Pais (Confap) e a Confederação Nacional Independente de Pais e Encarregos de Educação (CNIPE). Isto, para não falar do próprio Ministério da Educação, Ciência e Inovação (MECI) ou do Conselho Nacional de Educação (CNEDU), órgão independente integrado no MECI, e do Conselho das Escolas (CE), órgão consultivo do MECI.   

Como foi referido, os deputados André Ventura (na AR) e Rita Matias (nas redes sociais), do Chega, “divulgaram os nomes de crianças, alegadamente imigrantes, que frequentam o jardim de infância numa escola pública de Lisboa”. Tais políticos defendem, sem provas, que “jovens nascidos noutros países têm prioridade no acesso escolar, em Portugal”.

O caso foi objeto de várias críticas, entre as quais se destaca, a 4 de julho, após as declarações de André Ventura, a reação de Isabel Mendes Lopes, líder parlamentar do Livre, que se emocionou e pediu à Mesa da Assembleia da República que não deixasse que sejam ditos nomes de crianças no Parlamento. E, mais tarde, André Ventura utilizou as redes sociais para criticar a deputada e para reiterar, novamente e sem provas, a existência de uma suposta transformação demográfica em curso.

***

O problema está longe de ser exclusivo de Lisboa e do setor da Educação. Para o discurso populista, que invadiu todos os contextos e que se tornou a pérola no debate social e político, tudo serve: o vazio legislativo, o excesso de legislação, a inexatidão, a mentira, as diversas discriminações, as imoralidades e as corrupções (nos outros), as suspeitas de criminalidade violenta e organizada (da parte dos outros) e a “perceção” de insegurança (muita da qual originada neles próprios).
Até há pouco tempo – na ausência de capacidade de resposta pelo discurso contundente, mas lúcido, e de incapacidade ou de falta de vontade de definição de política públicas que atalhassem os males que os sebastianistas denunciavam e para os quais acenavam com programas de limpeza geral –, procedia-se a cercas políticas, inclusive, no espaço parlamentar e nas viagens de representação. E, quanto mais críticas à flor da pele e quanto mais cercas, mais o partido crescia e ganhava simpatizantes! Agora, porém, a reação dominante é o silêncio e a introdução, ora subtil, ora ostensiva, da “cheguização” no discurso governativo e em diplomas legislativos estruturantes.
Assim, com o silêncio, pior do que a insuficiência de políticas públicas necessárias (Roma e Pavia não se fizeram num dia, mas fizeram-se), a democracia abre as portas aos seus detratores e aos seus inimigos.
Pela dignidade humana e pelo bem-estar comunitário, é preciso zelar pela democracia.

2025.07.07 – Louro de Carvalho

Sem comentários:

Enviar um comentário