Faleceu, a 4 de julho, aos 89 anos, na sua casa, em Lisboa, o general Amadeu Garcia dos Santos, responsável pelas transmissões no golpe de 25 de Abril e que denunciou a corrupção na Junta Autónomas das Estradas (JAE), antecessora da Infraestruturas de Portugal (IP).
Há quem lhe recuse o epiteto de “capitão de Abril”, por já ser, ao tempo, tenente-coronel, com 38 anos. Ora, “capitães de Abril” são os militares que tiveram participação ativa na organização e funções de comando no golpe militar que iniciou a Revolução dos Cravos, bem como os que não participaram ativamente, só porque o poder instituído os transferira para zonas do território nacional onde a participação era impossível, mas que estavam de alma e coração com o programa político-militar do Movimento das Forças Armadas (MFA). Assim, não se nega tal epíteto, por exemplo, a Otelo Saraiva de Carvalho, a Ramalho Eanes ou a Vasco Lourenço.
Garcia dos Santos foi um dos mais determinantes militares de Abril, responsável por montar a operação de transmissões a partir do Quartel da Pontinha, o que permitiu o sucesso do golpe militar. Mais tarde, foi chefe da Casa Militar de Ramalho Eanes, no seu primeiro mandato, chefe de Estado-Maior do Exército (CEME) e, no final da década de 1990, presidente da JAE, porque o primeiro-ministro, António Guterres, queria alguém íntegro para pôr ordem na casa.
Toda a estrutura de transmissões que permitiu aos revoltosos intercetarem as comunicações das forças inimigas – Guarda Nacional Republicana (GNR), Legião Portuguesa (LP), Direção- Geral de Segurança / Polícia Internacional de Defesa do Estado (DGS/PIDE) e Polícia de Segurança pública (PSP) – foi montada em menos de 24 horas, tendo sido instaladas escutas telefónicas permanentes ao ministro e ao subsecretário de Estado do Exército, ao CEME e ao ministro da Defesa. E, nas noites de 22 e 23 de abril, foi executada uma operação clandestina para instalar um cabo telefónico aéreo de quatro quilómetros a ligar a central telefónica do Exército ao Regimento de Engenharia n.º 1, na Pontinha, onde, a partir da noite de 24 de abril, se instalou o Posto de Comando (PC) do MFA.
A operação foi concretizada pelo capitão Fialho da Rosa, contando com os capitães Veríssimo da Cruz e Madeira. Uns vinte soldados – que só sabiam que estavam a executar uma “missão muito importante” – estenderam o cabo, dirigidos pelo furriel Carlos Cedoura. E esta constituiu a primeira operação no terreno do golpe que pôs fim a 48 anos de ditadura.
Montada toda a estrutura de transmissões e de escutas, reuniu-se, às 22h00 de 24 de abril no Regimento de Engenharia n.º 1, na Pontinha, em Lisboa, o PC do MFA, tendo Garcia dos Santos integrado o reduzido grupo de militares que, a partir dali, comandou as operações que levaram à queda do regime. Desse grupo já só continua vivo o então major do Exército Sanches Osório. Todos os restantes – Otelo, Garcia dos Santos, Vítor Crespo, Fisher Lopes Pires, Luís Macedo e Hugo dos Santos – já faleceram.
Pelas 3h30 de 25 de abril, com as tropas sublevadas em movimento, Otelo percebia que estava a funcionar, a 100%, a estrutura de comunicações delineada por Garcia dos Santos, pois ouviu uma conversa telefónica em que o ministro da Defesa, Silva Cunha, sugeria ao ministro do Exército, general Andrade e Silva, que não fosse, naquela manhã, visitar quartéis no Alentejo, porque as tropas estavam muito agitadas”. Silva Cunha parecia ter percebido que algo se passava.
Pouco depois das 4h00, Joaquim Furtado leu, na Rádio Clube Português (RCP), o primeiro comunicado do MFA. Cerca de uma hora depois, Otelo escutou outra comunicação fundamental, em que o diretor da PIDE/DGS, Silva Pais, dizia ao chefe do governo, Marcelo Caetano, que saísse de casa e se protegesse no quartel da GNR do Largo do Carmo, que veio a ser cercado pelas tropas do capitão Salgueiro Maia e onde, horas depois, se entregaria ao general Spínola.
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Amadeu Garcia dos Santos nasceu a 13 de agosto de 1935, no
Bairro Alto, em Lisboa. Estudou no Colégio Caliponense e no Liceu
Passos Manuel. Em 1960, completou o curso de Engenharia da Escola do Exército,
cumprindo, depois, duas comissões na Guerra Colonial: na Guiné, de 1962 a 1964,
e em Angola, de 1968 a 1970.Enquanto professor na Academia Militar (AM), foi contactado por Fisher Lopes Pires para se ocupar das transmissões no golpe de estado que estava em planeamento. Após a decisão de se passar para a ação armada, Otelo Saraiva de Carvalho entrou em contacto com Garcia dos Santos para lhe propor a parte das transmissões. A partir da ordem de operações de Otelo, Garcia dos Santos delineou as transmissões e, no dia 24 de abril, andou a montar as transmissões no Quartel da Pontinha com rádios que tinha retirado do depósito do material de transmissões.
Também participou, ao lado dos moderados e de Ramalho Eanes, na contenção do golpe de 25 de Novembro, que levou ao fim do Processo Revolucionário em Curso (PREC). E passou a integrar o Conselho da Revolução (CR).
Entretanto, entre 1974 e 1975, foi secretário de Estado das Obras Públicas no II, III e IV governos provisórios, liderados por Vasco Gonçalves, e, entre 1975 e 1976, no VI governo provisório, liderado por José Pinheiro de Azevedo.
Foi chefe da Casa Militar do Presidente da República, general António dos Santos Ramalho Eanes. Entre 1982 e 1983, foi o CEME, tendo sido exonerado pelo presidente da República, sob proposta do primeiro-ministro Mário Soares. Apesar da oposição de Ramalho Eanes, Mário Soares alegou razões políticas para propor a exoneração de Garcia dos Santos, que Ramalho Eanes aceitou. Segundo Garcia dos Santos, a exoneração coroou a manifestação de um conflito entre o Presidente da República e o primeiro-ministro, e que levou Ramalho Eanes a decidir, contra a vontade de Mário Soares, dissolver a Assembleia da República (AR) e a convocar as eleições legislativas intercalares, em 1979, após a rutura do acordo entre o partido Socialista (PS) e o partido do Centro Democrático Social (CDS), que sustentava o II governo constitucional, e depois de dois governos de iniciativa presidencial de curta duração (um viu o seu programa rejeitado na AR), a que se seguiu um terceiro para preparar as eleições e gerir os negócios do Estado.
O seu último cargo público foi, entre 1997 e 1998, o de presidente da JAE, no tempo do governo de António Guterres. Apresentou a demissão, em 1998, por discordância de João Cravinho, ministro do Equipamento, Planeamento e Administração do Território, relativamente às nomeações para completar o conselho de administração da JAE. Como presidente da JAE, o general exigiu a expulsão de um grupo de funcionários da JAE, nomeadamente, o administrador da JAE SA, Donas Botto, ao ministro, que aceitou, inicialmente, mas recuou. E João Cravinho referiu que o general nunca lhe expôs qualquer situação de corrupção na JAE, confirmando que o conflito entre Garcia dos Santos e Donas Botto esteve na origem da demissão do general.
Após entrevista de Garcia dos Santos ao Expresso, em outubro de 1998, três meses depois de se ter demitido da presidência da JAE, denunciou o caso da JAE, tendo assinalado, em 1998, a existência de profundo problema de corrupção naquele organismo, que incluía a passagem de dinheiro para o PS. O general denunciou um caso de corrupção na JAE, na Guarda, e o então procurador-geral da República, José Cunha Rodrigues, assegurou que um relatório da Inspeção-Geral de Finanças (IGF), cobrindo o período entre 1992 e 1994, desmentia a existência de corrupção na JAE. Porém, em carta a Garcia dos Santos, o ministro das Finanças, António de Sousa Franco, confirmou saber dos problemas de corrupção na JAE e quem eram as pessoas envolvidas. Ainda em outubro de 1998, foi publicado um relatório da IGF, dando conta de que haviam saído da JAE mais de 650 mil contos (3,25 milhões de euros), sem qualquer controlo.
Cunha Rodrigues recuou na sua posição inicial e o Ministério Público (MP) iniciou investigação a todos os processos da JAE. O ministro João Cravinho ordenou também uma sindicância à JAE. Foi constituída uma comissão parlamentar de inquérito (CPI) para averiguar o caso, à qual Garcia dos Santos compareceu, mas recusando revelar à AR o nome dos empreiteiros implicados na corrupção na JAE, alegando não possuir provas e que, se revelasse os nomes, arriscaria processos judiciais por difamação, além de nenhum dos empreiteiros ter autorizado que fosse divulgado o seu nome, publicamente.
A CPI solicitou então ao presidente da Assembleia da República que participasse a prestação de Garcia dos Santos na AR à Procuradoria-Geral da República (PGR), tendo Garcia dos Santos sido acusado de desobediência qualificada pelo MP e condenado, em maio de 2001, ao pagamento de multa no valor atual de 670 euros pelo Tribunal Criminal de Lisboa (TCL), a pena mínima pedida pelo MP, por não ter antecedentes criminais. E o ministro João Cravinho ordenou a extinção da JAE, em 1999, e as conclusões da sindicância à JAE foram entregues à PGR, de que resultou um processo com 19 arguidos pelos crimes de participação económica em negócio, corrupção ativa para ato lícito, corrupção passiva para ato lícito, burla agravada, peculato, falsificação de documento autêntico e recetação, entre os quais constava o último ministro das Obras Públicas, Transportes e Comunicações, dos governos de Cavaco Silva, e o seu secretário de Estado das Obras Públicas. No entanto, em maio de 2000, o processo acabou arquivado por falta de provas.
Em junho de 2009, um relatório do Tribunal de Contas (TdC) concluiu que, “se a gestão da JAE fosse eficaz, as estradas teriam custado menos 44%”. Em reação a tudo isto, Garcia dos Santos lamentou ter sido o único condenado, e não os responsáveis pela má gestão da JAE, e apontou especiais responsabilidades ao ministro João Cravinho, ao seu antecessor na presidência da JAE, Maranha das Neves, a quem acusou de, enquanto presidente do Laboratório Nacional de Engenharia Civil (LNEC), ter sido alvo de um processo de corrupção desaparecido da Polícia Judiciária (PJ), e ao seu sucessor na presidência da JAE, António Lamas, de quem disse: “Não sabe gerir, nunca geriu nada na vida, e de estradas não sabe rigorosamente nada.” E considerou que o então ministro das Finanças, Sousa Franco, tinha sido “cobarde”, por ter escrito uma carta a corroborar as acusações do general, sem assumir, depois, as responsabilidades.
Garcia dos Santos acusou António Guterres e Cunha Rodrigues, de não terem dado ouvidos às suas denúncias, bem como os deputados da AR presentes na sua audição na CPI, atirando que “os deputados não têm palavra, não têm noção da honestidade, nem da honradez”. E sustentou que o financiamento partidário ilícito, “por muitas leis que se façam, continuará a existir por debaixo da mesa”.
De facto, muita gente diz querer combater a corrupção, mas, na hora da verdade, todos se encolhem, até parecendo que ninguém quer a sério este combate. Entretanto, João Cravinho passa à História como o paladino do combate à corrupção, que também foi pouco ouvido.
Garcia dos Santos foi membro do Conselho das Ordens Nacionais durante a presidência de Aníbal Cavaco Silva, tendo apresentado a demissão do cargo em 2014, após classificar, num almoço da Associação 25 de Abril comemorativo do 40.º aniversário da Revolução dos Cravos, o presidente Aníbal Cavaco Silva como “o principal culpado pela atual situação do país”, por não ter obrigado a um entendimento entre os partidos políticos para a formação de um governo após as eleições legislativas de 2009, das quais não resultou maioria absoluta de nenhum partido.
Em 2023, o general explicou, em entrevista ao Público, como contactou com o MFA. Havia um grupo chamado “Movimento dos Capitães “, que fazia reuniões e discutia os problemas. Um dia, perguntaram-lhe se queria participar numa dessas reuniões. Respondeu que o faria com muito gosto e prazer. Começou a assistir às reuniões, em que se discutia o seu estatuto político e militar.
E, sobre a JAE, referiu que os “problemas passavam pela forma como se lançavam e realizavam as obras” e que a corrupção se sentia “através de projetos mal feitos e mal conduzidos”, o que se “fazia propositadamente, para que determinada empresa ganhasse, sabendo onde está o erro no anteprojeto”.
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De acordo com o Exército, o velório de Garcia dos Santos está
agendo para o dia 6, entre as 16h00 e as 23h00, na capela da AM, em Lisboa,
com retoma no dia 7, às 10h00, seguindo-se missa de corpo presente, pelas
11h00, e cortejo fúnebre para o Cemitério do Alto de São João, com cremação do
corpo às 13h00.Em nota, o Exército diz que o ramo “está de luto, por ter deixado de contar com um dos seus mais notáveis soldados”, justificando a sua vida e o seu legado “um profundo reconhecimento e perene respeito pela sua memória, constituindo fator de motivação e [de] orgulho para todos os que servem nesta secular instituição”.
Também o Presidente da República declarou, em comunicado, ter recebido, “com enorme tristeza”, a notícia do falecimento do general. Segundo o chefe de Estado, Garcia dos Santos “constituiu-se como uma das figuras fundamentais do 25 de Abril”, tendo servido, “dedicadamente”, a instituição militar. “Portugal perdeu uma referência do momento inicial e do avanço para a consolidação do 25 de Abril e da então democracia nascente”, considerou o Presidente da República.
Pessoalmente, habituei-me a olhar este homem com respeito e admiração. Na segunda parte do meu tempo do serviço militar obrigatório (SMO), o nosso general Garcia dos Santos era o CEME. Ouviu-me com muita atenção e dissipou a dúvida que surgiu sobre a data do términus da minha prestação, pois eu não queria perder direitos conexos com a minha profissão docente, o que não aconteceria se, apenas, me mantivesse ao serviço no estrito tempo do SMO. Mais tarde, num encontro que tive com ele, como presidente da JAE, reconheceu-me pela voz.
Aqui lhe deixo também o preito de homenagem como chefe militar de notável andragogia e como político que denunciou a corrupção.
2025.07.04
– Louro de Carvalho
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