quinta-feira, 3 de julho de 2025

Moção de censura à Comissão Europeia revela mal-estar persistente

 

Foi noticiado, a 2 de julho, que o Parlamento Europeu (PE) vai debater e votar, na segunda semana do mês, uma moção de censura (ou voto de desconfiança) à presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, e ao seu Colégio de Comissários.
Gheorghe Piperea, eurodeputado romeno, do partido ultraconservador AUR (Aliança para a União do s Romenos), diz ter recolhido 73 assinaturas para a moção – mais uma do que o limite mínimo de um em cada dez eurodeputados (72) necessário para iniciar o processo.
Segundo o seu gabinete, 32 membros do seu grupo político, Conservadores e Reformistas Europeus (ECR), apoiaram o pedido. As demais assinaturas vieram dos grupos de extrema-direita Patriotas pela Europa (6), Europa das Nações Soberanas (26) e de eurodeputados não inscritos. As assinaturas estão a ser verificadas e validadas pelos serviços do PE.
Se for, oficialmente, confirmada a apresentação da moção – cabendo tal competência à presidente, Roberta Metsola –, o debate e a votação ocorrerão na sessão plenária de julho, em Estrasburgo.
O debate em plenário sobre o pedido de demissão deve  ser agendado, pelo menos, 24 horas após o anúncio, e a votação deve ocorrer, pelo menos, 48 horas após o início do debate.
Fontes do PE disseram que o debate poderá ter lugar a 8 de julho, e a votação a 10 de julho, desde que a presidente Roberta Metsola anuncie a moção, até ao final desta semana. Porém, qualquer eurodeputado signatário pode retirar o seu apoio à moção, em qualquer altura. E, se o limiar de um décimo deixar de ser atingido, o processo é interrompido.
Para que a moção de censura seja adotada, é necessário que, pelo menos, a apoiem dois terços dos votos expressos, representando a maioria dos deputados. E esta moção tem poucas hipóteses de ser aprovada, como reconheceu o próprio proponente, o qual espera, no entanto, que a iniciativa possa “abrir uma caixa de Pandora”, encorajando novas moções de censura, nos próximos meses. “É importante que tenhamos este processo democrático para forçar este tipo de debate. Mesmo que a minha moção não seja bem-sucedida, provavelmente, haverá outras, no futuro, que serão bem-sucedidas”, afirmou.
A moção de censura assenta em três acusações principais, a primeira conexa com mensagens de texto trocadas entre a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, e o diretor executivo da Pfizer (Pfizergate), Albert Bourla, nas negociações da vacina contra a covid-19.
Segundo o eurodeputado, o Tribunal de Justiça da UE declarou que a Comissão Europeia devia divulgar tais mensagens e não cumpriu. Está em causa a separação de poderes em democracia e não aceitar uma decisão da Justiça é quebrar o Estado de direito.
Outras acusações incluem a alegada utilização incorreta dos fundos pós-covid-19 e uma alegada tentativa da Comissão Europeia de promover as suas políticas ecológicas.

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O debate em plenário sobre o pedido de demissão deve ser agendado, pelo menos, 24 horas após a comunicação e a votação deve ter lugar, pelo menos, 48 horas após o início do debate. O debate e a votação devem ocorrer, o mais tardar, na sessão plenária seguinte à apresentação do requerimento. Porém, todos os deputados que assinaram a moção podem retirar o seu apoio, posteriormente e, se o limiar de um décimo deixar de ser atingido, o processo será interrompido.

A sessão de votação é nominal, o que significa que todos os deputados votam em público. Para que a moção de censura seja adotada, é necessário o apoio de, pelo menos, dois terços dos votos expressos, representando a maioria dos eurodeputados, o que derrubaria a presidente da Comissão, Ursula von der Leyen, arrastando consigo todo o colégio de comissários.

A moção de censura é da iniciativa de um ou mais eurodeputados em exercício de funções, devendo ser apoiada pelo mínimo de um em cada 10. Depois de as assinaturas serem verificadas e validadas pelos serviços, a presidente deve informar, imediatamente, os eurodeputados.

Já houve nove tentativas anteriores de derrubar a Comissão Europeia.

Em 1990, o Grupo da Direita Europeia tentou forçar a demissão da Comissão, por causa da política agrícola, mas falhou, obtendo apenas 16 votos a favor e 243 contra.

A tentativa mais recente ocorreu em novembro de 2014, contra a Comissão liderada pelo presidente luxemburguês, Jean-Claude Juncker. Foi iniciativa do grupo político eurocético Europa da Liberdade e da Democracia Direta, em resposta ao escândalo financeiro “Luxembourg Leaks”, que expôs o regime fiscal do país. Apenas 101 dos 670 eurodeputados votaram a favor.

Outras tentativas centraram-se em questões, como o orçamento da União Europeia (UE), o impacto da encefalopatia espongiforme bovina, na Europa, e a gestão do Eurostat, o serviço de estatística da Comissão.

Só uma vez é que uma moção de censura resultou na demissão da Comissão – e isso aconteceu sem votação formal em sessão plenária. Em março de 1999, a Comissão liderada por Jacques Santer, presidente luxemburguês, demitiu-se, devido a alegações de fraude e a preocupações com a transparência, sem que o PE tivesse de proceder a votação formal. Este facto ocorreu, apesar de a Comissão ter sobrevivido a três moções separadas, sobre outros temas, em anos anteriores.

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Entretanto, é de referir que a moção de censura em referência não é um ato isolado. Tem havido vários sintomas de mal-estar entre o PE e o executivo comunitário.
Por exemplo, o PE opõe-se à atualização da lista negra da Comissão Europeia, que elimina várias jurisdições de países terceiros, incluindo os Emirados Árabes Unidos (EAU), o Panamá e Gibraltar, que os eurodeputados consideram insuficientes, nos seus regimes de combate ao branqueamento de capitais e ao financiamento do terrorismo.
Há mais de um ano e meio que a “lista negra” da UE não está alinhada com a do Grupo de Ação Financeira Internacional (GAFI), o organismo mundial de vigilância do branqueamento de capitais e do financiamento do terrorismo. E, de acordo com a comissária europeia para os Serviços Financeiros, a portuguesa Maria Luís Albuquerque, tal desalinhamento criou “irritações significativas com os parceiros internacionais”.Se formos vistos como não respeitadores dos resultados do processo, corremos o risco de comprometer a nossa capacidade futura de influenciar as avaliações técnicas e de garantir os compromissos que gostaríamos de ver assumidos por outras jurisdições, argumentou, em reunião da comissão parlamentar europeia, a 30 de junho.
No início deste mês, a Comissão atualizou a sua lista, acrescentando países como a Argélia, Angola, Quénia, Mónaco e Venezuela, mas retirou várias jurisdições, como Barbados, Gibraltar, o Panamá e os EAU. Porém, a lista não pode entrar em vigor sem o escrutínio e o parecer favorável do PE e do Conselho Europeu. E a Comissão não convenceu os eurodeputados a apoiá-la.
Numa resolução de abril de 2024, os eurodeputados opuseram-se à decisão da Comissão de retirar Gibraltar, os EAU e o Panamá da lista, citando provas irrefutáveis de que estas jurisdições não tomaram medidas suficientes para abordar – ou para facilitar ativamente – a evasão das sanções contra a Rússia, que incluem medidas financeiras específicas impostas em resposta à guerra da Ucrânia pela Rússia. E o PE receia que países retirados da lista possam contornar sanções contra a Rússia, prejudicando os esforços da UE para travar a máquina de guerra russa.
Albuquerque argumentou que tais preocupações foram abordadas e que estas jurisdições fizeram “progressos tangíveis”, mas os eurodeputados manifestaram a sua frustração com o processo.
A própria comissária manifestou preocupação com o atual impasse. “O facto de os países que constam da lista do GAFI ainda não constarem da lista da UE expõe o sistema financeiro da UE a vulnerabilidades e pode criar lacunas que têm de ser resolvidas”, afirmou, sustentando que a ausência de uma lista europeia atualizada gera confusão e insegurança jurídica para as entidades que têm de aplicar as regras de combate ao branqueamento de capitais, pois os operadores da UE “têm de cumprir listas divergentes, o que aumenta a sua carga de cumprimento, acrescenta custos adicionais e afeta a sua competitividade global”, segundo Albuquerque.
Contudo, nem o argumento diplomático sobre as negociações com os EAU, nem as preocupações com os riscos económicos e de reputação protegeram a comissária de troca de acusações com os eurodeputados. A eurodeputada alemã Birgit Sippel (Grupo do Partido Popular Europeu e dos Democratas Europeus) acusou a Comissão de reproduzir as avaliações do GAFI.
A comissária contrapôs que a lista negra era o produto de mais de um ano de “trabalho intenso”, baseado nas conclusões do GAFI, em diálogos bilaterais e em visitas, no local, aos países terceiros em causa. Todavia, não se entende como a Comissária, verificando todos os riscos que aponta, subscreve a lista.

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A 14 de maio, o Tribunal de Justiça da UE (TJUE) condenou a Comissão por não ter justificado a recusa em divulgar mensagens entre Ursula von der Leyen e o diretor-executivo da Pfizer.
As organizações não-governamentais (ONG) e outras entidades afetadas por questões de transparência saudaram a decisão que penaliza o executivo da UE, por não ter apresentado explicação plausível para não possuir documentos relacionados com os contratos de compra da vacina contra a covid-19 celebrados com a Pfizer, o que se tornou um caso crucial para a transparência institucional.
Na sequência das revelações do The New York Times (NYT) sobre a existência de mensagens de texto entre a presidente da Comissão Europeia e o diretor-executivo da Pfizer, o jornal apresentou um pedido de acesso às mensagens. Porém, a Comissão recusou-o, aduzindo que as mensagens de texto são, por natureza, de curta duração e não cumprem os critérios de inclusão no sistema de gestão de documentos da instituição.
“A decisão de hoje é uma vitória da transparência e da responsabilidade na União Europeia. Envia uma mensagem poderosa de que as comunicações efémeras não estão fora do alcance do escrutínio público”, afirmou um porta-voz do NYT, em comunicado, vincando que a decisão deixa claro que os responsáveis são obrigados a tratar as mensagens de texto, como qualquer outro registo, e reconheceu que a Comissão Europeia tratou mal o pedido.
Segundo o TJUE, a Comissão não pode, simplesmente, alegar que não possui os documentos solicitados, mas tem de dar explicações credíveis que permitam ao público e ao Tribunal compreender razão por que não podem ser localizados os documentos.
Também se manifestaram a favor da decisão do TJUE vários eurodeputados, entre os quais Tilly Metz (Luxemburgo/Verdes), que esteve envolvida noutro processo judicial, lançado em 2021, contra Ursula von der Leyen, em relação à transparência dos contratos de vacinas.
Nesse caso, a Comissão publicou documentos “fortemente” redigidos, medida que o TJUE condenou, mais tarde, considerando que a decisão do executivo de publicar apenas versões censuradas dos contratos envolvia irregularidades processuais.
Em 2022, o provedor europeu de Justiça também criticou a forma como a Comissão Europeia lidou com o pedido do NYT, descrevendo-o como “chamada de atenção” para a responsabilidade da UE e confirmando a sua conclusão de má administração, nesta matéria.
Reagindo à decisão de 14 de maio, a provedora europeia de Justiça declarou: “O Tribunal – tal como o provedor de Justiça – sublinhou, mais uma vez, que o direito de acesso aos documentos exige que as instituições em causa, na medida do possível e de forma não arbitrária e previsível, elaborem e conservem sempre a documentação relativa às suas atividades.”
Frisando que, se as instituições não registarem e conservarem essa documentação, o direito de acesso aos documentos perde o seu sentido, Teresa Anjinho apela à Comissão para que tire as conclusões necessárias do acórdão e assegure que o direito de acesso do público aos documentos seja plenamente respeitado.
A Comissão Europeia afirmou que analisará, atentamente, a decisão do tribunal, antes de tomar uma decisão sobre as próximas medidas a aplicar. A Comissão dispõe de dois meses para apresentar recurso, mas revelou a intenção de adotar uma nova decisão que ofereça uma explicação mais pormenorizada, em resposta ao pedido inicial do NYT.
Entretanto, como revelou, a 27 de junho, Teresa Anjinho, estão a aumentar, neste ano, as queixas dos cidadãos à Provedoria Europeia de Justiça, consistindo as principais críticas nas dificuldades de acesso a documentos e na falta de transparência. Por isso, a provedora defende a aposta na prevenção e na proatividade, para aumentar a transparência das instituições da UE. E sustenta que “é possível fazer mais”, sobretudo, na Comissão Europeia, porque há atrasos sucessivos na entrega dos documentos, sendo o acesso à informação, muitas vezes, adiado e, depois, negado.
A provedoria participou, através da antecessora de Teresa Anjinho, no processo das queixas contra a presidente da Comissão, por causa das mensagens Pfizergate. Agora, a nova provedora apresentou o relatório anual, segundo o qual, em termos gerais, os cidadãos continuam a criticar a falta de transparência, sendo 42,2% das queixas nesta área, “essencialmente, no acesso aos documentos”.
A provedora portuguesa deixa claro que a Provedoria Europeia não tem o poder judicial, mas está do lado dos cidadãos. E avisa: “a Provedoria é uma instituição independente que funciona como ponte entre os cidadãos e as instituições; estamos no meio e aquilo que servimos é a boa administração europeia. Qualquer instituição, seja o Parlamento, seja a Comissão, seja o Conselho, percebendo isto, perceberá sempre que tem na Provedoria um aliado em função da boa administração. O facto de criticarmos não tem de prejudicar as relações institucionais.”
Teresa Anjinho está a avançar com um inquérito de sua iniciativa, no caso das portas giratórias, isto é, quando detentores de cargos públicos fazem lóbi ou ocupam funções em benefício próprio, após o mandato, ficando em situação de conflito de interesse entre a esfera pública e privada.

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Há um problema nas instituições políticas democráticas. Para um parlamento deliberar a destituição de um executivo, são necessários vários requisitos formais, o que dificulta (ou mesmo torna impossível) a mobilização da maioria necessária para o efeito. No caso do PE, como revela a experiência, tal mobilização tem sido quase impossível.    

Por sua vez, quando os casos de incumprimento vão a tribunal, o cumprimento dos requisitos formais torna-se mais viável, não precisando de concitar um grande número de votos. Contudo, passa o tempo e as decisões são tomadas tardiamente e, na maior parte dos casos, pelo sistema de pinças e sem efeito imediato (passando por reclamações, por recursos vários e até por aclarações).
Todavia, os regimes antidemocráticos procedem bem pior!   

2025.07.03 – Louro de Carvalho

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