Conhecidas as decisões governamentais da não recondução de Mário Centeno como governador do Banco de Portugal (BdP) e da nomeação de Álvaro Santos Pereira para lhe suceder no cargo, o ainda responsável pela política monetária do país, em articulação com o Banco Central Europeu (BCE) teve a oportunidade de se explicar, não propriamente sobre a não recondução, que será, na ótica do governo, um não caso, mas no respeitante a algumas questões que se levantaram, nos últimos tempos, que beliscaram o seu perfil.
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Na
“Grande Entrevista” à RTP 1, a 25 de
julho, conduzida pelo
jornalista Vítor Gonçalves, disse não
ter “desilusões” sobre a não recondução no cargo e garantiu “rigor financeiro
inquebrantável” nas decisões do BdP.Não obstante, o ainda governador do BdP afirmou que o seu desempenho “está aí para ser avaliado”; revelou que não recebera justificação do ministro de Estado e das Finanças, acerca da decisão do governo; garantiu que a escolha do local da nova sede do BdP foi decisão coletiva; informou que o contrato é de 192 milhões de euros, sob um “rigor financeiro inquebrantável”, por parte da instituição.
“O meu desempenho está aí para ser avaliado. A decisão que foi tomada é uma decisão que só cabia ao governo. É assim que deve ser feito e respeito, obviamente, todas essas decisões”, considerou, avançando também que foi o ministro das Finanças quem o informou da decisão. Questionado sobre se houve uma justificação, respondeu que apenas houve um agradecimento pelo seu trabalho, acrescentando: “Todo este meu trajeto foi marcado por uma caraterística de estabilização do sistema financeiro muito significativa, de reforço da posição de Portugal, internacionalmente. Estou muito satisfeito por todos estes anos de serviço público.”
O também antigo ministro das Finanças e líder do Eurogrupo garantiu que, pessoalmente, não sente a saída como desilusão e desejou “muitas felicidades” ao sucessor Álvaro Santos Pereira, nas novas funções.
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Acerca do
processo de construção do novo edifício-sede do BdP, em Entrecampos, em
terrenos da antiga feira popular, Mário Centeno garantiu que “é uma decisão
coletiva”, não do governador. “O banco tem quase 180 anos de História e o banco
não é o seu governador. O banco tem décadas de espera por este investimento”,
explicou, detalhando: “Passaram oito
governadores e 22 ministros das Finanças, até conseguirmos, hoje, chegar a este
ponto. É com enorme ansiedade e expectativa que o banco vê este passo. É muito
importante respeitá-lo. O banco segue sempre as melhores práticas e
tem um rigor financeiro inquebrantável em todas as suas decisões.”Mário Centeno relembrou que se trata de um contrato entre o banco central e a maior seguradora portuguesa (agora, detida pela chinesa Fosun), realçando que “a grande maioria dos Portugueses tem ou teve um contrato com a Fidelidade”. “Eu acho muito leviano que se levantem dúvidas sobre estas relações contratuais feitas pelo banco central”, opinou.
O economista realçou ainda que o BdP olhou para mais de 20 localizações possíveis em Lisboa, desde o Parque Eduardo VII à Praça de Espanha ou ao Parque das Nações. “Nunca nenhuma foi concretizada ao ponto onde estamos hoje”, frisou.
Ainda sobre a sede, Mário Centeno assegurou que o contrato-promessa de compra e venda (CPCV) assinado com a Fidelidade, que é a promotora do empreendimento, é de 192 milhões de euros. “Não há nem mais um euro nem menos um euro do que aquilo que foi assumido”, vincou.
“Depois, naturalmente, para um novo edifício moderno que albergue, finalmente, os 1300 postos de trabalho que o banco tem na cidade de Lisboa, há que dotar este edifício das condições que tenham de existir. Esse trabalho ainda não foi feito e não há estimativas que possam ser divulgadas sobre esse valor”, explicitou.
No entanto, a 20 de julho, o jornal “Observador” revelou que o custo poderá, afinal, ultrapassar os 235 milhões de euros, sendo o preço anunciado pelo BdP apenas uma parte do custo total, já que não inclui o recheio e os acabamentos do edifício. Sobre isso, Mário Centeno admitiu que o encargo total será mais alto do que os 192 milhões de euros, mas não avançou um valor concreto, defendendo que, se o fizesse, condicionaria a apresentação de ofertas para essa fase da obra.
Porém desvalorizou a polémica, aduzindo: “Quando faz a escritura de uma casa, não faz com o valor do mobiliário. É a mesma coisa.”
O governador, sobre potenciais problemas no licenciamento do edifício, sustentou que o contrato-promessa tem cláusulas que permitem ao BdP “sair do contrato, sendo reembolsado das verbas que pagou”. Porém, frisou a credibilidade da Fidelidade. “Estamos a falar de um contrato com a maior seguradora do país, não é com uma consultora do interior do país”, comentou.
O ainda governador, que se mantém com plenos poderes, até à tomada de posse do sucessor (previsivelmente, em setembro ou em outubro), garantiu que todos os alertas de consultores internos e externos sobre o projeto foram contemplados no CPCV, para acautelar os direitos do banco central.
Confrontado com a posição de que o Ministério das Finanças (MF) apenas recebera parte da informação relevante sobre o tema, o que justificaria o pedido de uma auditoria à Inspeção-Geral de Finanças (IGF), Mário Centeno afirmou que “o Ministério das Finanças recebeu toda a lista das questões levantadas em fevereiro deste ano [sobre os riscos do projeto]”, bem como os dados sobre os custos da futura sede e os valores das duas avaliações que serviram de base à aquisição, que distavam 15 milhões de euros, tendo o BdP seguido “a de menor valor”. “Nós não avençámos uma empresa para vir trabalhar connosco. Foram os melhores assessores e consultores que existiam no mercado”, referiu, adiantando que, após o envio da informação, Joaquim Miranda Sarmento não manifestou nenhuma dúvida. “Não chegou nenhuma pergunta do ministro das Finanças”, assegurou.
Além disso, o governador disse que, se o governo tivesse dúvidas sobre a operação de compra do edifício, poderia tê-las manifestado, formalmente, pelos canais existentes. “Há um conselho de auditoria do banco que é nomeado pelo Ministério das Finanças”, assinalou.
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Sobre as
nomeações de última hora, no BdP (contestadas pelo partido Chega), nomeadamente,
a recondução de Álvaro Novo, como chefe de gabinete de apoio ao governador, e a
indicação, para diretora-adjunta Departamento
de Estatística, de Rita
Poiares (casada com
Ricardo Mourinho Félix, que foi secretário de Estado, quando Centeno era
ministro das Finanças), Mário
Centeno respondeu que ambos
têm carreiras muito longas e “absolutamente exemplares”, na instituição.O governador mostrou-se incomodado com as insinuações de favorecimento, defendendo o mérito de ambos e atacando os autores das notícias. “As pessoas que fizeram essas notícias não têm currículo para entrar no Banco de Portugal. Para entrar no Banco de Portugal não se pode ter média de 10”, afirmou, declarando que os funcionários em causa “não merecem” as referências que lhes foram feitas na imprensa.
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Questionado sobre se é papel do BdP fazer reparos às opções do governo, Mário Centeno respondeu que, nos últimos 180 anos, a instituição sempre avaliou a situação económica do país.
“O Banco de Portugal nunca deixou de dizer o que tinha a dizer sobre a economia portuguesa, porque é essa a sua função. O BdP olha para riscos e faz alertas”, vincou, reforçando: “O primeiro texto do Banco de Portugal sobre IRC [imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas] é anterior à crise financeira… e é igual ao último.”
Centeno recordou o filme de animação “À Procura de Nemo” e a sua personagem Dory. “A Dory é um peixinho que não tem memória. Os países não podem ser governados sem memória”, comentou, defendendo que “não podemos querer silenciar a análise económica”, que é feita pelos especialistas do BdP. “Ou respeitamos as pessoas que se dedicam ao serviço público, as boas, ou então vamos ter as que levam oito anos a fazer um curso de quatro”, frisou Mário Centeno, em defesa do trabalho das equipas que lidera no banco central.
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Mário Centeno
estranha que o ministro de Estado e das Finanças, Joaquim Miranda Sarmento (o
Centeno da direita), tenha pedido à IGF uma auditoria sobre a futura sede do
banco central: “Não nos chegou nenhuma pergunta do ministro das Finanças”,
declarou.Sobre a legitimidade de a IGF poder fiscalizar a atividade do BdP, vale a pena ler o texto do jornalista Gonçalo Almeida, publicado no Expresso online, a 24 de julho, intitulado “IGF no fogo cruzado entre Governo e Banco de Portugal: o que diz o BCE?”.
Na semana em que o governador do BdP conheceu o sucessor, o MF pediu uma auditoria à IGF, sobre as obras da nova sede do regulador da banca. Todavia, o BdP garante que o MF tem toda a informação, desde fevereiro e não é claro se um auditor do Estado pode supervisionar uma entidade independente como o BdP, integrada no sistema financeiro europeu, ao nível da autoridade da política monetária da Zona Euro.
A polémica teve início com as contas do banco central, que entraram no vermelho, passou pelas previsões económicas do BdP, pelos avisos sobre a (in)sustentabilidade das contas públicas, até à falhada contratação de Hélder Rosalino para o cargo e secretário-geral do governo (o BdP entendeu não dever pagar a diferença entre o que este deveria auferir do Estado, pelo exercício do novo cargo e o que lhe era devido como quadro do BdP). Agora, a dias ou a meses de substituir o governador, Sarmento alega que Centeno escondeu informação sobre a nova sede.
Mário Centeno garantiu que enviou todos os documentos, entre fevereiro e junho deste ano. Ao Expresso, detalhou as datas. Diz ter seguido, a 27 de fevereiro, o memorando de entendimento assinado com a Fidelidade, dona do terreno, bem como as due diligences técnica e jurídica; 30 de abril, a minuta do CPCV e as avaliações de mercado solicitadas a consultores imobiliários; e, a 27 de junho, a versão assinada do CPCV.
Em 2019, Mário Centeno, ministro das Finanças, pretendeu que a IGF auditasse o BdP, mas o BCE achou que isso minava a independência do banco central.
Porém, segundo Gonçalo Almeida, o MF garantiu ao Expresso que “apenas teve conhecimento parcial da documentação, referida como crítica, nas diversas notícias sobre o novo edifício do Banco de Portugal, para as decisões tomadas pelo Banco de Portugal sobre este assunto” e que “nunca o Banco de Portugal informou de decisões que tinha tomado antes e que são contrárias à compra do edifício, agora em causa, nem de avaliações anteriores que demonstram que o custo atual do edifício aumentou significativamente”.
Mais tarde, já com as respostas do BdP a detalhar as datas dos envios, o Expresso voltou a questionar o MF, para despistar os motivos das aparentes contradições entre as duas versões, mas não obteve resposta.
Contudo, persiste a questão se uma entidade como a IGF, tutelada pelo MF, pode lançar uma auditoria a uma instituição independente. O BCE não comenta o caso, mas remete para um parecer de 2019 sobre uma proposta de revisão da supervisão financeira, feita pelo então ministro das Finanças, Mário Centeno. Na altura, Mário Centeno propunha que a IGF tivesse poderes de fiscalização sobre o BdP.
Mario Draghi, presidente do BCE, ao tempo, entendeu que o banco central poderia estar sujeito a auditorias, desde que fosse respeitado “um conjunto de garantias destinadas a preservar a independência”, que não estava assegurada. Pelo facto de a IGF ser um organismo criado e sob controlo direto do MF, “as inspeções e auditorias realizadas por tal entidade não seriam compatíveis com as garantias referidas”, destinadas a preservar a independência do BdP.
Também o próprio BdP, na altura governado por Carlos Costa, emitiu um parecer sobre o tema, defendendo que os novos poderes da IGF colidiam com a sua independência, estabelecida na lei da União Europeia e Lei Orgânica do Banco de Portugal.
A proposta foi aprovada pelo Conselho de Ministros, a 7 de março de 2019, mas não viu a luz do dia. Em 2020, Centeno saiu do MF para o BdP, que, em tempos, quis colocar sob o radar da IGF.
Sobre este tema, o MF não respondeu. E, questionado, o BdP garante que “colaborará com todas as formas de escrutínio”, mas, sublinha, “para as quais exista quadro legal”. A questão passa para Álvaro Santos Pereira, que deixou, recentemente, em entrevista ao Expresso um beliscão ao seu antecessor, acentuando que o BdP deve ser “uma entidade independente”.
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Todos os governos fazem nomeações
de confiança política ou pessoal, alegando competência técnica e perfil adequado
(foi, em tempos, badalado o caso de um candidato admitido num serviço público,
dito especialista em cinco áreas), mas as oposições, como é óbvio, contestam. Os
gestores públicos não acertam uma em orçamentação de obras, não se conhecendo
obra pública em que não haja derrapagem orçamental e/ou corte no caderno de encargos, e os críticos apontam o
dedo.Normalmente, as polémicas eclodem na altura mais conveniente para a agitação. O BdP e Mário Centeno não iriam ser exceção. É a vida!
2025.07.26 – Louro de Carvalho
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