domingo, 27 de julho de 2025

Para uma releitura, com os Papas, da encíclica de Leão XIII

 
A 15 de maio, passou o 134.º aniversário da publicação da encíclica “Rerum Novarum”. Por ocasião de aniversários desta encíclica, foram publicados documentos de outros Pontífices. Pouco depois da sua eleição, o Papa Prevost enfatizou que a Igreja, inspirando-se no património da Doutrina Social da Igreja (DSI), é chamada a responder a “outra revolução industrial e ao desenvolvimento da inteligência artificial [IA]”.
A este respeito, Amedeo Lomonaco publicou no Vatican News, longo texto em que salienta o facto de o Papa Leão XIII, com a “Rerum Novarum”, ter abordado “a questão social no contexto da primeira grande revolução industrial”. Hoje, está patente, a todos, o património da DSI, para responder a uma nova revolução industrial e ao desenvolvimento da IA, que “traz novos desafios para a defesa da dignidade humana, da justiça e do trabalho". Ao encontrar os cardeais, 10 de maio, o Papa Prevost explicou, assim, a escolha de “assumir o nome de Leão XIV”, nesta era dominada por desequilíbrios económicos e de novos desafios.
Como no final do século XIX, o mundo do trabalho é um dos pilares que sustentam o tecido social. Relendo a encíclica do Papa Vincenzo Pecci, focada nas condições das massas operárias, e situando tais reflexões no contexto atual, projeta-se uma releitura da “Rerum digitalium”, uma releitura das “coisas digitais”. E, no encalço de Leão XIII, pode considerar-se o trabalho e os direitos dos trabalhadores, à luz das profundas mudanças trazidas pelas novas tecnologias. Por isso, a “Rerum Novarum” também fala aos homens e às mulheres de hoje.
“As coisas temporais não podem ser compreendidas e avaliadas adequadamente, se a alma não se elevar a outra vida, isto é, à vida eterna, sem a qual a verdadeira noção de bem moral necessariamente se desvanece. De facto, toda a criação torna-se um mistério inexplicável. O que a própria natureza nos dita, portanto, no cristianismo, é um dogma sobre o qual todo o edifício da religião se apoia como seu principal fundamento: isto é, a verdadeira vida do homem é a do Mundo vindouro” – palavras de Leão XIII a ressoar nesta era digital: “Quer tenhas riquezas e outros bens terrenos em abundância, quer não os tenhas, isso não importa para a felicidade eterna; mas o bom ou mau uso desses bens, isso é o que mais importa”, escreve Leão XIII.
A tradição das encíclicas sociais, na fase moderna, inicia-se com a “Rerum Novarum”, atestando a preocupação dos Papas, em diferentes contextos históricos, com as questões sociais e económicas. A encíclica promulgada em 1891 inaugura a era da modernidade da DSI e insere-se num contexto em que o trabalho era concebido como mercadoria. O mundo do trabalho mudou muito, mas os direitos dos trabalhadores precisam de ser salvaguardados. Entre os riscos associados às novas tecnologias e, em particular, à IA, encontram-se os das novas formas de escravidão e exploração. Porém, ao lado das sombras, há muitas luzes ligadas às oportunidades que esta era digital pode oferecer a toda a família humana e, em particular, às novas gerações.
A “Rerum Novarum” enfatiza que o fator discriminante é o bom ou mau uso dos bens e que todos os homens “estão unidos pelo vínculo de uma santa fraternidade”, cuja vivência postula a compreensão de que “os bens da Natureza e da Graça são património comum do género humano”. Se todos são filhos, acrescenta o Papa Leão XIII, são também herdeiros: “herdeiros de Deus e co-herdeiros com Jesus Cristo. Este é o ideal de direitos e deveres contido no Evangelho". É o mesmo ideal indicado pelo Papa Francisco na encíclica “Fratelli tutti”: o de uma fraternidade humana. Como afirmou Leão XIV, no encontro com os cardeais, a 10 de maio, o Evangelho deve impelir-nos a procurar, “com alma sincera, a verdade, a justiça, a paz e a fraternidade”.
Na encíclica, Leão XIII concentra-se nas difíceis condições de trabalho dos operários industriais. “Não é justo nem humano”, afirma o documento, “exigir do homem tanto trabalho a ponto de a sua mente se tornar entorpecida por excesso de fadiga e o seu corpo enfraquecer. Como sua natureza, a atividade humana é limitada e circunscrita dentro de limites bem estabelecidos, além dos quais ele não pode ir. O exercício e o uso aprimoram-na, sob a condição, porém, de que seja suspensa, de tempos a tempos, para dar lugar ao descanso. O trabalho, portanto, não deve ser prolongado além dos limites das próprias forças”, diz o Santo Padre Pecci.
Outra questão presente na encíclica de 1891 é a da educação para a economia. “Quando o trabalhador recebe um salário suficiente para se manter a si mesmo e à sua família, com certo grau de conforto, se for sábio, naturalmente, pensará em poupar.” É reflexão para ser relida no nosso tempo, frequentemente, marcado por fronteiras, nem sempre bem definidas, entre o trabalho e a vida pessoal. E mesmo a economia, vista como instrumento capaz de sustentar a família, é muito atual e não marginal, pois trata-se de dar o devido valor ao salário, hoje cada vez mais agredido pelo consumismo desenfreado.
O tema central da encíclica é a instauração de uma ordem social justa. Na parte conclusiva, indica-se o caminho a seguir: o da caridade. “Cada um faça a sua parte e não demore, porque a demora poderia tornar mais difícil a cura de um mal já tão grave. Que os governos trabalhem para isso com boas leis e com medidas sábias; que os capitalistas e os empregadores tenham sempre em mente os seus deveres; que os proletários, diretamente interessados, façam, dentro dos limites da justiça, o que puderem”. “Quanto à Igreja, ela, nunca e de forma alguma, deixará faltar a sua obra”. “A salvação almejada – escreve Leão XIII – deve ser o fruto principal de uma efusão de caridade, queremos dizer, da caridade cristã que abrange todo o Evangelho”. Ora, o caminho da caridade é a estrada principal no terceiro milénio. Na era digital, com a lógica do algoritmo, o fator humano é imprescindível para a família humana não descurar a solidariedade.
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Os Papas foram seguindo e atualizando a “Rerum Novarum”, pois a Igreja não cessa de fazer ouvir a sua voz sobre a “res novae”, típicas da era moderna, e exorta todos a fazerem todos os esforços para que se afirme uma civilização autêntica, orientada para a busca do desenvolvimento humano integral e solidário. Nestes termos, surge a encíclica “Quadragesimo Anno”, do Papa Pio XI, de 15 de maio de 1931, inserida no contexto histórico marcado pela grande crise de Wall Street, em 1929, que abalou o mundo industrial. Neste documento, o texto de Leão XIII é definido como “carta magna” da ordem social. Pio XI denuncia os fenómenos que “chegaram ao ponto em que a sociedade, em quase todas as nações, parecia cada vez mais dividida em duas classes”: uma, pequena em número, “que gozava de quase todo conforto”; e a outra, composta por uma imensa multidão de trabalhadores “oprimidos por uma penúria ruinosa”. Acusa o “imperialismo internacional do dinheiro” e descreve os danos de um sistema em que as finanças dominam a economia e a subterrânea a economia real.
No 50.º aniversário da “Rerum Novarum”, Pio XII, em mensagem radiofónica para o Pentecostes de 1941, num tempo marcado pelo drama da guerra, enfatiza que da encíclica de Leão XIII brotou “uma fonte de espírito social forte, sincero e desinteressado”, que, “removidas as ruínas deste furacão mundial, quando começar a obra de reconstrução de uma nova ordem social, implorada como digna de Deus e do homem, infundirá novo impulso vigoroso e uma nova onda de florescimento e crescimento em todo o florescimento da cultura humana”. A encíclica, no dizer de Pio XII, “penetrou nos corações e nas mentes da classe operária e incutiu nela o sentimento cristão e a dignidade cívica”. E, na mensagem radiofónica de 1942, na véspera do Natal, Pio XII enfatiza que a Igreja deduz “as consequências práticas derivadas da nobreza moral do trabalho”.
A “Rerum Novarum” indica as necessidades do trabalhador, que incluem, o salário justo, suficiente para as necessidades do trabalhador e da família, a preservação e o aperfeiçoamento de uma ordem social que torne possível a propriedade privada segura, ainda que modesta, para todas as classes, que favoreça uma educação superior para os filhos das classes trabalhadoras, particularmente dotados de inteligência e de boa vontade, que promova o cuidado e a atividade prática do espírito social no bairro, no país, na província, no povo e na nação, que, atenuando os conflitos de interesse e de classe, afaste dos trabalhadores o sentimento de segregação com a experiência reconfortante da solidariedade genuinamente humana e cristãmente fraterna.
Em 14 de maio de 1961, São João XXIII fez um discurso aos povos do Mundo inteiro, no qual anunciou uma nova encíclica e recordou a contribuição da “Rerum Novarum”. Disse que Leão XIII “quisera haurir dos tesouros do ensinamento secular da Igreja a doutrina justa e santa, a verdade iluminadora para a direção da ordem social, segundo as necessidades do seu tempo”, colocando-se nas “diversas relações entre agricultores e operários, chamados proletários, de um lado, e proprietários e empresários, de outro, indicou quão indispensável era recompor as razões de justiça e de equidade, em benefício e vantagem de ambos, invocando, como necessárias, a intervenção do Estado e a ação honesta e leal das partes interessadas”.
No 70.º aniversário da “Rerum Novarum”, o Papa São João XXIII promulga a encíclica “Mater et Magistra”, com duas palavras-chave: “comunidade e socialização”. No dizer do Papa Roncalli, a Igreja é chamada a colaborar para construir uma comunhão autêntica. Assim, o crescimento económico não deve limitar-se a satisfazer as necessidades dos homens, mas deve também promover a sua dignidade.
No 80.º aniversário da “Rerum Novarum”, São Paulo VI publicou a carta apostólica “Octogesima Adveniens”, apontando as mudanças profundas do Mundo, incluindo “o crescimento excessivo das cidades”. E, em 1967, promulgou a encíclica “Populorum Progressio”, sobre o desenvolvimento dos povos, que “acompanha a expansão industrial, sem se identificar com ela”. Nela evidencia que, “enquanto algumas empresas se desenvolvem e se concentram, outras se extinguem ou se deslocam, criando novos problemas sociais: desemprego profissional ou regional, requalificação e mobilidade das pessoas, adaptação permanente dos trabalhadores, desigualdade de condições nos vários setores da indústria”.
No 90.º aniversário da “Rerum Novarum”, São João Paulo II publicou a encíclica “Laborem Exercens”, na véspera de novos progressos nas condições tecnológicas, económicas e políticas que, segundo muitos especialistas, influenciarão o mundo do trabalho e da produção, não menos do que a revolução industrial do século passado” (o século XIX). E, no centenário da “Rerum Novarum”, publicou, a encíclica “Centesimus Annus”, uma “releitura” da encíclica leonina, que vislumbra “o terceiro milénio da era cristã, cheio de incógnitas, mas também de promessas e de incógnitas que apelam à nossa imaginação e criatividade”.
Na encíclica “Caritas in Veritate”, de 2009, Bento XVI retrata diversas mudanças que afetam o tecido social e trabalhista. “O conjunto de mudanças sociais e económicas significa”, escreve o Papa Ratzinger, “que os sindicatos enfrentam maiores dificuldades para cumprir sua tarefa de representar os interesses dos trabalhadores, também porque os governos, por razões de utilidade económica, muitas vezes, limitam as liberdades sindicais ou a capacidade de negociação dos próprios sindicatos. As redes tradicionais de solidariedade encontram, assim, obstáculos crescentes a serem superados.” O convite da DSI, a partir da “Rerum Novarum”, para criar associações de trabalhadores para a defesa dos seus direitos deve, pois, ser honrado, hoje, ainda mais do que ontem, antes de tudo, dando resposta pronta e clarividente à urgência de estabelecer novas sinergias, a nível internacional e a nível local. “A mobilidade trabalhista, associada à desregulamentação generalizada, tem sido fenómeno importante, não isento de aspetos positivos, pois é capaz de estimular a produção de novas riquezas e o intercâmbio entre diferentes culturas”, escrevia Bento XVI. Porém, quando a incerteza sobre as condições de trabalho, como consequência dos processos de mobilidade e de desregulamentação, se torna endémica – lê-se na “Caritas in Veritate”, que também parece aplicar-se ao período recente abalado pela pandemia –, “criam-se formas de instabilidade psicológica, de dificuldade em construir os próprios caminhos coerentes na existência”.
A 24 de maio de 2015, foi assinada a “Laudato si”, encíclica do Papa Francisco sobre o cuidado da Casa comum. Nesse ano, o cardeal Gualtiero Bassetti escreveu, em artigo para o jornal “L’Osservatore Romano”, que “a importância desta encíclica é comparável à relevância da “Rerum Novarum”. “Aquela encíclica do Papa Pecci abriu o olhar maternal da Igreja para um Mundo então ainda inexplorado pelo magistério pontifício: o da questão operária”. Com ela, segundo o cardeal, surgiu “uma fase de transição muito importante: a passagem de uma sociedade agrícola para uma sociedade industrial, do campo para a fábrica e, por fim, dos notáveis para a sociedade de massas. Hoje, há nova passagem: “a sociedade de massas tornou-se uma sociedade global cada vez mais pulverizada e líquida”. “Na encíclica de Leão XIII”, enfatiza o cardeal Bassetti, “as referências ambientais eram o ‘edifício’ em que os operários trabalhavam e o ‘solo’ ocupado por essa fábrica, enquanto os sujeitos que ali atuavam eram os operários e os patrões”, ao passo que hoje, “essas realidades mudaram profundamente”. Na verdade, “o sistema de produção está em toda parte. E cada aspeto da criação pode, potencialmente, ser usado e manipulado pelas tecnociências, com profundas repercussões na vida de cada ser humano.”
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As novas tecnologias acompanharam, frequentemente, o caminho do ministério petrino, ao longo dos dois mil anos da História da Igreja. Focando o pontificado de Leão XIII, encontram-se documentos preciosos. O Papa Pecci é o primeiro Pontífice da História imortalizado por uma câmara. Estamos nos primórdios do cinema. No filme, o mais antigo existente na Itália, o Pontífice foi visto a abençoar. A sua voz é a primeira de um Pontífice a ser gravada e está guardada nos arquivos da Rádio Vaticano. Ouve-se Leão XIII a ler alguns trechos da encíclica “Humanum Genus”, sobre a “Condenação do relativismo filosófico e moral da Maçonaria”. A gravação tem a data de publicação da encíclica: 20 de abril de 1884. Foi feita com o fonógrafo de rolo de cera Edison (patenteado em 1877) e enviada à Rádio Vaticano, posteriormente.
O caminho da “Rerum Novarum” ainda aponta a estrada, hoje, e é uma ponte entre o passado e o futuro. Se procurarmos a Via Rerum Novarum em mapas impressos e digitais, as placas coincidem em levar a Carpineto Romano. Na cidade, berço de Leão XIII, há uma estrada que leva o nome da encíclica. Este documento continua a ser um caminho para o qual os Pontífices, a Igreja e o Mundo olham. Como disse Leão XIV, em reunião com o Colégio Cardinalício, a família humana é chamada, ao percorrer este caminho, a enfrentar “novos desafios em defesa da dignidade humana, da justiça e do trabalho”.
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É curioso anotar como os cristãos – e, obviamente, a hierarquia católica – eclipsaram tão profundos ensinamentos da “Rerum Novarum”. Por mim, devo ao padre Manuel Rodrigues Borges, que foi pároco de Penude, a abertura de pistas para a correta leitura da encíclica leonina. Devo-lhe este preito de gratidão.

2025.07.27 – Louro de Carvalho


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