O
Presidente da República (PR) prometeu, a 27 de setembro, avaliar o desempenho
da Ministra da Saúde, Ana Paula Martins, e o estado geral do Serviço Nacional
de Saúde (SNS). Esta promessa de avaliação, prevista para o final do verão, foi
adiada para o outono, para depois das eleições autárquicas, a 12 de setembro.
A
avaliação ocorre num contexto de pressão e de críticas à gestão do Ministério da
Saúde, por parte do chefe de Estado – missão que não é da sua competência (a
menos que entenda que as instituições democráticas não estão em regular funcionamento,
o que o deveria levar a demitir o executivo, nos termos constitucionais). Porém,
o SNS está em roda livre, sem que os partidos da oposição se pronunciem de modo
firme e convincente.
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Efetivamente,
o PR fez, a 30 de outubro, o prometido diagnóstico do estado da Saúde, que é “complicado”,
não lhe restando dúvidas de que a gestão tem sido “casuística”, com “soluções
para o curtíssimo prazo” e de “linhas cinzentas”. Porém, segurou a ministra da
Saúde, que tem sido alvo de insistentes pedidos de demissão, incluindo por
parte do Partido Socialista (PS), que acabou por viabilizar o Orçamento do Estado,
pela abstenção.
No
ISCTE - Instituto Universitário de Lisboa, no encerramento da conferência sobre
os 50 anos do Serviço Médico na Periferia (SMP), Marcelo Rebelo de Sousa
considerou que prevalece o “casuísmo” na gestão da Saúde, com “soluções para o
curtíssimo prazo” e com “linhas cinzentas” entre as responsabilidades do
Governo e da Direção Executiva do Serviço Nacional de Saúde (DE-SNS). “Passados
seis meses, um ano, um ano e meio, convém ter um quadro geral de referência,
sem embargo de haver sempre emergências”, disse o chefe de Estado.
Segundo
o PR, o panorama “é uma dispersão de decisões, é um desgaste de decisões,
são soluções para o curtíssimo prazo ou para o curto prazo, e fica, depois, por
definir, exatamente, qual é o objetivo a prazo”, o que corresponde ao “caminho
das pedras, que é o caminho mais difícil”.
“Resolve-se
um problema, pontualmente, hoje aqui, outra lá, encontra-se uma solução, não dá;
daqui a dois meses, há outra, depois daqui a três meses há outra. Isto,
até mesmo para o problema do financiamento da Saúde, de que eu não falei de
propósito, até este ponto, torna a vida muito difícil, mas[, mais ainda, a] de
qualquer responsável da Saúde”, vincou, para sugerir um acordo político de
regime, sobre o papel do SNS, do setor social e do setor privado, para que haja
um quadro de médio prazo.
Diz
o PR que acabou por se criar problemas, como o de, caso a caso, não se saber
quem é que deve intervir e deve falar pelo SNS, se é o governo, se é a DE-SNS.
Ou seja, falta a definição do “quatro de atuação” e “de organização e gestão do
SNS”, na sequência da criação da DE-SNS, no período final da governação do PS,
que ficou a meio. Aliás, a análise presidencial, a criação desta estrutura exigia
uma rapidez e uma eficácia de atuação muito grandes e, sobretudo, a delimitação
clara do que caberia ao Estado (governo) e do que caberia à nova entidade
gestora (DE-SNS), mas ficou-se “a meio da ponte” nesta mudança. E o
PR avisou que, sem essa definição, “fica tudo [em] linhas cinzentas”, isto
é, “a multiplicação de problemas e a dificuldade da sua resolução”, o que resulta
no grande desafio que “qualquer governo, independentemente da sua orientação
política, doutrinária, ideológica, tem de resolver”.
O
chefe de Estado julga que este é o caminho das pedras, difícil, complicado, “por
se entender que outro caminho prévio, de definição de um quadro geral, não
é desejável ou não é oportuno”.
Marcelo
Rebelo de Sousa disse que esta é a análise que foi fazendo, “ao longo do tempo”,
sobre o adiar constante de decisões e problemas que se vão avolumando. E
anteviu que, “mantendo-se esta indefinição, os problemas vão ser, todos os
dias, de alguma maneira, semelhantes uns aos outros”, [que] perdura “o
casuísmo”, com “um remendo”, aqui ou ali, e [há] “cada vez mais planos de
urgência ou de emergência, nomeadamente, no início dos vários executivos”.
Há,
pois, que “tentar resolver o impasse”, quanto à transição de modelo de
gestão do SNS. Ao invés, “será a realidade económica e social” a ditar os
termos da evolução na Saúde.
Para
Marcelo Rebelo de Sousa, em política, o mais importante é o tempo – não as
doutrinas, as ideologias, as lideranças; que deve ser feito e é feito fora de
tempo, podendo ser o melhor do Mundo, “passa a ser o pior do Mundo”; o que não
era tão bom, do ponto de vista de princípios, feito em tempo razoável, é
minimamente aceitável; e “não se pode é perder esse tempo”.
É
de apontar ao PR que, em política, são importantes as doutrinas e as ideologias,
que enformam a práxis, e as lideranças (caso contrário, para que servem as
eleições?).
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O
PR sugeriu um acordo político sobre o papel do SNS, do setor social e do setor
privado na Saúde, para que haja um quadro de médio prazo. Porém, o governo deve
decidir, primeiro, se quer ou não fazer acordo, mas, “mesmo sem acordo, tem de,
um dia, tomar uma decisão sobre isto”: o que deve ser SNS, setor social, setor
privado lucrativo – “com a flexibilidade suficiente para pensar nas interações”
– o que, no SNS, em termos de gestão, deve continuar público e o pode ou não
deve ser partilhado com o setor social ou com o setor privado lucrativo. Com
efeito, “sem definir isto, com alguma clareza, é muito difícil ter um quadro de
atuação política, e a atuação política passa a ser casuística”, na ótica do Presidente
da República.
O
chefe de Estado, comentando que “está cada vez mais difícil” estabelecer
convergências e que aparecem “clivagens”, em matérias tão importantes, como a
definição de quem é português, de quem, não sendo português, pode viver em
Portugal, “a definição da política externa ou da política de defesa ou de
segurança, a definição da política educativa”, voltou à Saúde, para lamentar: “Se
acaba o governo, entra outro com outra política de saúde. […] Não há Saúde que
aguente. Talvez valha a pena pensar que não é boa ideia, de cada vez que muda
de governo, mudar-se de política também no domínio da Saúde.”
Para
o chefe de Estado, as matérias em que se ganharia com a convergência são a
visão que se tem do SNS e a visão que se tem da sua gestão. Porém, é de
questionar se, para quem tem responsabilidades políticas, vale a pena arranjar
um acordo mais vasto sobre a política de saúde. Ele admite que se queira “governar
sem acordo e, depois, logo se verá, diploma a diploma, no parlamento” ou que se
pense que “é um acordo que o próprio governo faz consigo próprio e que vai
projetar durante a legislatura e para além dela – é uma opção”. Contudo, há que
fazer opções políticas sobre o SNS e reparar que há muitos pobres, muita gente
envelhecida, mais doenças e que o setor privado não tem a mesma experiência que
o SNS.
Segundo
o PR, “uma não opção sobre esta matéria é uma opção”, que leva a “deixar ao
casuísmo a evolução dos acontecimentos” e estes “irão no sentido de, onde se
aposta mais, tem-se mais sucesso; onde não se aposta, fica um vazio que é
preenchido por outros”.
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A
ministra da Saúde foi ouvida, a 31 de outubro, na Comissão da Saúde (CPS) da
Assembleia da República (AR), para apresentar, na especialidade, o Orçamento do
Estado 2026 (OE2026) para o setor. Na sua primeira declaração, disse que o
orçamento é “realista”, assumindo que “não podemos prometer o infinito, [pois]
tal não será possível”; e, vincando que “temos refletido muito sobre as opções
que este orçamento encerra, [sustenta que] ele encerra realismo e um acreditar
profundo de que a saúde dos portugueses é talvez um dos valores, se não o
valor mais importante de uma sociedade”.
Logo
que terminou, Marta Silva, deputada do Chega, questionou-a sobre o caso da grávida
de 38 semanas, que morreu na madrugada desse dia, depois de ter estado na
urgência e de ter sido enviada para casa, e se não ia fazer o mesmo que a sua
antecessora, Marta Temido, fez. “Não, não demito”, disse, perentoriamente, a
governante.
A
ministra da Saúde, face às notícias sobre cortes nas despesas no SNS, disse que
“o tema não é ter mais dinheiro, mas ter dinheiro para o que é preciso e
criar um sistema de saúde mais justo e eficiente, que não dependa do
código postal ou da condição económica e social de cada um de nós”. “Este
caminho é um caminho longo, um caminho que já começámos a traçar, um
caminho difícil, mas do qual não abdicamos. […] Um caminho onde temos de
encontrar o que nos une e aí centrar a nossa atenção. Discutir aquilo que nos
separa poderá constituir uma importante fonte de picardia política, mas
dificilmente servirá aos portugueses”, enfatizou.
Depois,
fez suas as palavras do Presidente da República, proferidas na véspera, no
sentido de haver “um pacto de regime para o SNS”. Conta com os deputados, para
construir um sistema de saúde e um SNS mais justo e eficiente, e prometeu ouvi-los
e integrar “as propostas que contribuam para o desidrato que a todos nos
deve unir”.
Porfiou
que o governo não quer gastar mais e gastar pior, mas “gastar o necessário e
gastar melhor, para que nada falte a todos”, e deixar de se dizer, de uma vez
por todas, que “temos um SNS subfinanciado e suborçamentado”. E referiu ter
a “certeza de que todos têm um papel neste caminho” comum: os médicos, os
enfermeiros, os administradores, os técnicos e todos os profissionais de saúde,
bem como os políticos e os cidadãos.
A
governante disse que a obrigação do Estado “é dar melhor saúde e combater melhor
a doença para todos os utilizadores do sistema de saúde, do qual o SNS é a
espinha dorsal”: dos cuidados primários aos cuidados paliativos, dos cuidados
hospitalares aos continuados, tendo todos um papel que deve ser
conhecido. Também enfatizou que os setores público, privado e social devem
ter um papel bem claro, porque todos são necessários.
Ana
Paula Martins sabe que este é um “caminho das pedras”, mas o governo está
disposto a ouvir com humildade e a agir em conformidade, mas não a alinhar com “exigências
que levem o sistema de saúde e o SNS a um caminho sem saída e sem
sustentabilidade”.
Voltando-se
para o OE2026 e para os números, começou por fazer um retrato da atividade. Nos
primeiros seis meses de 2025, o SNS fez 10,7 milhões de consultas hospitalares,
40 mil, por dia, um aumento de 3,8%, face a igual período de 2024; 258 mil
consultas psicologia, mais 11,6%, face ao mesmo período de 2024; mais cirurgias,
com o incremento de 4,6%, face ao mesmo período do ano anterior, duas mil
cirurgias, por dia; e 52 mil cirurgias oncológicas, em 2025, tendo sido
nesta área que se observou o impacto mais significativo.
Quanto
às listas de espera, referidas no relatório da Entidade Reguladora da Saúde
(ERS), nomeadamente, na área oncológica, a ministra esclareceu que, entre 18 de
maio de 2024 e 21 de junho de 2024, aguardavam cirurgia 7465 doentes
oncológicos. Destes, 2143 estavam acima do tempo máximo de resposta
garantido e foram operados até ao final de agosto, no âmbito do OncoStop. Nos
meses seguintes, “a produção de cirurgias em doentes oncológicos
aumentou e houve sempre maior aumento proporcional da resposta do que o
aumento proporcional de entrada em lista de espera”. E, no final de setembro de
2025, havia 9794 doentes em lista de espera, estando 2400 doentes acima do
tempo máximo de resposta garantido.
Relevou
que os doentes oncológicos estão, “essencialmente, concentrados nos três IPO [institutos
portugueses de Oncologia]”, as unidades que “têm os casos mais complexos” e
onde “a lista de espera é muito dinâmica”, porque, todos os dias, surgem casos
de maior gravidade.
A
governante abordou a questão das grávidas e dos partos extra-hospitalares”,
dizendo que, entre 2022 e 2025, nasceram fora do hospital, em ambulância, na via
pública, em cuidados primários e no domicílio, respetivamente, 169 crianças em
2022, e 154, em 2025. Dizendo que já se sabe “quem são estas grávidas e o que
aconteceu”, assegurou que, maioritariamente, são grávidas que nunca foram
seguidas na gravidez, que não têm médico de família, grávidas
recém-chegadas a Portugal, com gravidezes adiantadas, que não têm dinheiro
para ir ao setor privado, grávidas que, algumas vezes, nem falam Português, que
não foram preparadas para chamar o socorro e que, por vezes. nem telemóvel
têm”.
Sobre
a atividade da Linha SNS 24, referiu que, neste ano, foram atendidas mais de
104 mil chamadas, com o tempo médio de espera de cerca de três minutos, tendo
sido 73% das chamadas atendidas em dois minutos.
A
governante reforçou que o OE2026 tem a marca da transição do ciclo de expansão,
entre 2021 e 2025, para a fase de recalibração da despesa, focado na eficiência
e na sustentabilidade, na revisão e na qualificação da despesa, para obter
ganhos de eficiência.
Os
deputados do PS julgaram insuficientes as explicações para resolver os
problemas do SNS e questionaram-na sobre o Instituto Nacional de Emergência Médica
(INEM). E o deputado do Livre quis saber como o OE2026 garantirá que os
profissionais do SNS não o abandonarão.
A
ministra negou terem sido dadas indicações para cortes na atividade
assistencial, o que acontece é que este orçamento “é diferente na leitura dos
números”; e à pergunta sobre a aplicação do Plano de Emergência e Transformação
de Saúde, referiu que 63% das medidas foram concluídas e que o objetivo de dar
um médico ao maior número de utentes será possível através, nomeadamente, de
convenções com médicos de família de fora do sistema.
A
deputada do Partido Comunista Português (PCP) questionou a previsão de
contratação de profissionais para 2026, realçando a criação das urgências
regionais e criticou o processo de negociação, que tem sido mais de “imposição”.
A deputada do Bloco de Esquerda (BE), disse que o OE para a Saúde não explica
onde se pode reduzir a despesa. Inês Sousa Real perguntou se ministra estaria
disposta a acompanhar a preocupação quanto à crise da especialidade de Medicina
Interna. E a governante declarou esperar fazer uma poupança de cerca de 100
milhões de euros com a regulação do trabalho tarefeiro e que não têm faltado
medicamentos para doentes crónicos, desde que chegou ao governo, e disse que há,
no Porto, a urgência metropolitana, que funciona.
Depois,
deu a palavra à secretária de Estado da Saúde, para explicar que o orçamento
tem uma rubrica para a área da prevenção da doença e da promoção da saúde: 1%
do bolo total do orçamento, 176 milhões de euros. Falou de medidas neste
sentido, como o protocolo para tratar a obesidade, e disse que este governo alargou
o rastreio do cancro da mama às mulheres com 45 anos, que era uma diretriz da
UE, aplicada com dois anos de atraso.
O
secretário de Estado da Gestão da Saúde disse que o projeto do hospital do
Seixal continua em análise, que a Linha SNS24 Grávida tem enfermeiros
especialistas não só em Ginecologia-Obstetrícia, mas também em Pediatria, que o
contingente de enfermeiros a trabalhar nesta linha será reforçado, até ao final
do ano, e que, em relação aos recursos humanos, está previsto o aumento de 10%
em pessoal que deverá ser integrado nos quadros das unidades. Já sobre o
Hospital de Todos-os-Santos, na zona Oriental de Lisboa, o governante explicou
que 40% do custo da obra está a cargo do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR).
***
Enfim,
podemos estar diante uma governante competente em gabinete, não no terreno!
2025.10.31
– Louro de Carvalho