quarta-feira, 16 de julho de 2025

A capacidade ou a necessidade de improvisar

 
Ficaram conhecidos, de 1958 a 1974, os formosos improvisos do Presidente da República, almirante Américo Deus Rodriguez Thomaz, nas suas visitas pelo país, mormente, em cerimónias de inaugurações, que requeriam, normalmente, o corte de fita.
Dizia-se que era uma forma de se furtar à obrigatoriedade de ler discursos redigidos pelo Presidente do Conselho de Ministros (António Oliveira Salazar, primeiro, e Marcello José Alves das Neves Caetano, depois), o que era usual, em termos protocolares, por exemplo, nas mensagens de Ano Novo, na receção a chefes de Estado estrangeiros ou nas visitas de Estado a outros países.
Claro, os improvisos para consumo interno valiam o que valiam, mas eram, segundo alguns, uma das formas de Américo Thomaz se autoafirmar no seu exercício do poder político. Aliás, o vulgarmente dito “corta-fitas” tinha várias formas de impor a sua opinião, uma das quais era dizer que teriam de arranjar outro chefe de Estado.  
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“Improviso” (do adjetivo latino “improvisus, a, um”: imprevisto, repentino, inesperado, não premeditado – antónimo de “provisus, a, um”, do verbo “providere”: ver antecipadamente, prever, preparar, cuidar, providenciar) refere-se à ação de fazer ou dizer algo, de repente, sem preparação prévia. Pode ser um discurso, uma peça musical ou qualquer outra ação realizada de forma espontânea. 
O termo “improviso” pode ser usado como nome, para descrever o ato de “improvisar” (verbo). 
A locução adverbial “de improviso” significa “de repente”, “sem preparação” e refere-se a algo feito de repente, sem cuidado, sem ensaio ou planeamento. 
Como expressão musical, “de improviso” é criar de melodias (improvisar), ritmos, vocalizações e até letras, durante a execução, dentro ou fora de parâmetros pré-definidos.
Como adjetivo, “improviso” alterna com “improvisado” e qualifica algo repentino ou inesperado. 
Eis alguns exemplos do uso do termo “improviso” e afins: “Ele fez um discurso de improviso” (locução adverbial); “a chuva começou de improviso” (locução adverbial); “o músico fez um solo improviso ou improvisado” (adjetivo); “foi uma reação improvisa (ou improvisada”) (adjetivo); “eu não sou capaz de “improvisar” (verbo).
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Ouvi dizer que o melhor improviso é o que decorre da grande bagagem cultural que se acumula ao longo da vida. Neste âmbito, era notória a capacidade de improvisação de Monsenhor Cândido Azevedo, que foi pároco e arcipreste de Sernancelhe, sempre disponível para usar da palavra, desde que lho solicitassem. Era tão capaz de improvisar como de preparar substanciosas alocuções, de ordem política e cultural ou de ordem religiosa. Excelente orador (embora algo gongórico), ótimo conferencista, também escrevia bem, o que fica patente nos vários artigos que escreveu para o jornal diocesano “Voz de Lamego”, em vários opúsculos e, sobretudo, no livro “Igreja Românica de Sernancelhe”, publicada pela Câmara Municipal de Sernancelhe, em 2012, uma pérola de escrita de Arte Sacra, envolta em largos conhecimentos de História. 
No entanto, parece-me que, em muitas ocasiões, ia preparado para intervir, se lhe lançassem esse repto. Era contundente, claro e, em alguns aspetos, ingénuo, mas não deixava ninguém indiferente, de costume, rodeado de fortes aplausos. Porém, às vezes, problematizava em excesso.         
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Nem sempre alguns improvisos o eram. Um dia, estava a conduzir um programa na Rádio Riba-Távora, em Moimenta da Beira, quando me pedem ligação ao exterior, em concreto, para o Salão Nobre dos Paços do Município, onde decorria uma sessão de homenagem ao Dr. Lima Gomes, um dos fundadores (diziam o principal) do Externato Infante D. Henrique. E, numa determinada altura, o condutor da sessão deu a palavra a um orador, que iniciou a sua intervenção, declarando: “Vou ler um improviso que estive a escrever ontem à noite.”
Também eu procedi a alguns improvisos preparados, embora sem o tempo de que precisava.
Lembro-me de dois, quando ainda era jovem, sem contar os de estudante, se não tinha estudado a lição e o professor mandava, sem especificar: “Diga lá a sua lição.” Aí, só pedia meio minuto, para decidir como havia de começar.
Numa bela manhã de verão, em 1975, estava no meu telónio de estagiário, quando me telefonam a dizer que, pelas 21 horas, na Casa de Retiros, havia uma reunião da Liga Agrária Católica (LAC) diocesana e que o conferencista adoecera e não podia comparecer, pelo que seria eu a desenvolver o tema “Comparação entre os princípios da Doutrina Social da Igreja e os programas dos partidos políticos” da praça, na altura. Como não podia dizer “não”, comecei a bosquejar materiais na redação da “Voz de Lamego”, a que tinha acesso direto, e preparei a conferência, bem como o espírito para responder a eventuais questões que me levantassem, pois o tema revestia-se de especial melindre. A longa conferência correu bem e seguiu-lhe um bate-papo de cerca de uma hora e meia.                 
Numa tarde de sábado de maio de 1979, iniciava-se, em Lamego, um encontro de jovens. E eu, num ato de solidariedade com os jovens que para lá encaminhei, desloquei-me à cidade, com a óbvia intenção de regressar, porque, no dia seguinte, me esperava um serviço religioso longe de Lamego. Porém, o então secretário diocesano da Juventude, o padre José Augusto Matias Pereira, quando me viu, bradou: “Ainda bem que vieste!” Surpreendido, perguntei porquê. Na manhã de domingo, estava prevista uma palestra sob o título “O celibato e a consagração no Mundo”, mas o padre que viria de longe comunicara que não podia comparecer. Não me lembro se indicou o motivo. Por isso, pedia que fosse eu a fazer dita intervenção.
Aleguei o compromisso do dia seguinte e que não tinha transporte. Respondeu não haver problema e alguém se prontificou para, depois da palestra, me levar a Freixinho e à Sarzeda. Creio que a pessoa em causa (que deve estar de boa saúde), se ler esta nota, se lembrará. Ao invés, o referido secretário diocesano da Juventude já não se recordará, certamente. Gostaria que a saúde dele lhe permitisse essa lembrança, mas a vida é o que é.
Perdi a noite quase toda a preparar a intervenção, que decorreu como eu esperava. E, no fim, dispensei-me do debate subsequente, embora tenha deixado duas ou três questões para reflexão, mas que outrem conduziu, pois o tempo urgia.
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Ao invés destes, que não foram verdadeiros improvisos, tive ocasiões em que tive de usar da palavra, totalmente de improviso. Vou recordar três.
Corria o ano de 1976 e estava eu em Vila Nova de Foz-Coa, como professor de Religião e Moral Católicas (era a designação da disciplina, ao tempo, segundo a crismação do ministro da Educação Vitorino Magalhães Godinho) e ao serviço da paróquia. Surgiu o convite da parte do pároco da freguesia de Beira Grande, do concelho de Carrazeda de Ansiães, para pregar o sermão da festa de Santo António. Com o aval do pároco de Vila Nova de Foz-Coa, lá fui, preguei o sermão na missa da festa, convicto de que tinha cumprido o acordado.
Todavia, à tarde, houve procissão pelas ruas da freguesia e, depois de a procissão ter entrado na igreja, o pároco avisou-me de que havia outo sermão a Santo António. Ora, ainda pouco traquejado nestas andanças, tive a ideia de solicitar que mandasse repetir o cântico que estava em execução, pois não queria repetir o sermão da manhã. E esse foi o tempo suficiente para decidir como iniciar, tal como no tempo de estudante.  
Mais tarde, já pároco rodado fui convidado para pregar, na freguesia de Arnas, do concelho de Sernancelhe, o sermão na Solenidade da Imaculada Conceição e o pároco recomendou que, no sermão, fizesse uma referência a Santa Bárbara, por quem o povo tinha especial devoção. Ora, como Bárbara era virgem e mártir, tal referência encaixou com facilidade. Porém, a seguir à missa, houve procissão pelas ruas da freguesia, após o que subiu ao monte de santa Bárbara terminando na sua capelinha.
Ao chegarmos à capela, o pároco avisou-me de que havia sermão a Santa Bárbara. Aí, só perguntei se havia altifalantes ou não. A questão era saber por onde começar. O povo aglomerou-se à porta da capela e eu falei desde a soleira, tendo sido escutado com religioso respeito.                  
Contudo, o improviso deveras marcante foi o que sucedeu em Fornos, da freguesia e do concelho de Moimenta da Beira, a 29 de junho, numa festa de São Pedro, o padroeiro da localidade. Já não recordo o ano, mas lembro-me de que era o um dia de semana, que os seus habitantes guardavam como dia santo. O pároco era o Dr. Hélder de Jesus Tavares, que terá feito saber aos mordomos que o pregador seria o padre Filipe Goncalves da Fonseca (eram ambos professores na Escola Secundária de Moimenta da Beira e a hora da missa foi acertada de acordo com a suposta disponibilidade dos dois).
Entretanto, a Dra Odete Duarte, natural de Fornos, que era professora em Freixinho, uma das minhas paróquias, convidou-me para ir à festa e eu fui. Cheguei cedo. Lembraram-se de pôr a mesa para o pároco e para o pregador e eu até dei a minha sugestão sobre a escolha dos talheres. Porém, como disponibilizaram o almoço para os miúdos (os sobrinhos da Dra Odete) e atendendo a que eu teria comido há muito tempo, sugeriram que eu almoçasse, o que aceitei, não sem alguma resistência.
À hora aprazada, chegou o pároco, o Dr. Hélder Tavares, mas o padre Filipe não veio. E o Dr. Hélder Tavares, quando o cumprimentei, atirou: “Já temos quem pregue e cante a missa.”
Reagi, dizendo que estava ali a título particular e que não estava preparado, mas acabei por me encarregar do serviço em honra de São Pedro. Obviamente, a celebração da missa segue o Missal e, escutando as leituras, houve tempo para decidir a forma de iniciar o sermão e de escolher alguns tópicos. Portanto, este improviso não foi tão penoso como os anteriores. Praticamente, foi só colocar a voz em consonância com o espaço e com o auditório. Lá presidi à Eucaristia, preguei, tal como presidi à procissão.
No fim, a Dra Odete veio cumprimentar-me como se eu fosse o padre Filipe. E tive dificuldade em convencê-la de que nada estava combinado com o pároco, no que fui ajudado por este.
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Pedindo vénia para a dose de imodéstia que transpira nesta reflexão, devo afirmar a necessidade e a conveniência de prepararmos todas as nossas intervenções, quanto aos conteúdos e quanto à forma, ajustando-nos ao espaço, ao tempo e ao auditório. Contudo, temos de ser capazes de usar da palavra, sempre as que as circunstâncias o imponham ou o aconselhem. Lembro-me de que um célebre maestro dizia que aquele que não consiga reger, à primeira vista, uma orquestra, com base numa partitura que nunca tenha visto, não merece ser diretor de orquestra.
Por mim, devo relevar como tais situações de improviso ou de quase improviso contribuíram para a agilidade e a desinibição com que desempenhei funções eclesiásticas e outras, obviamente, sem me dispensar do usual trabalho de preparação.

2025.07.16 – Louro de Carvalho


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