domingo, 15 de junho de 2025

Perante o mistério de Deus, a melhor atitude é o silêncio

 

A liturgia da Solenidade da Santíssima Trindade leva-nos a mergulhar no mistério de Deus uno e trino, mistério profundo, face ao qual a nossa melhor atitude é o silêncio, no dizer do grande místico e teólogo carmelita São João da Cruz. Porém, como somos dados à loquela, convém ilustrá-la com a doutrina, para não se ficar na banalidade da conversação meramente humana. Assim, o grande conteúdo da fé é que Deus, sendo unidade, é família de três Pessoas em perfeita comunhão de amor, pelo que se Lhe chama Santíssima Trindade. Por amor, criou os homens e as mulheres e, por amor, convida-os a vincularem-se à família trinitária, comunidade de amor.

***

Na primeira leitura (Pr 8,22-31), a Sabedoria de Deus, falando-nos do Deus criador, garante, com a autoridade de quem viu nascer a criação, que Deus fez tudo com bondade, com solicitude e com amor e nos convida a descobrir, na beleza e na harmonia das obras criadas, a marca de Deus, de modo que a catequese neotestamentária fala de Jesus como a incriada Sabedoria de Deus.
O trecho em apreço é um hino à sabedoria em duas estrofes. A primeira (vv. 22-26) trata da origem da sabedoria; a segunda (vv. 27-31) aborda a intervenção da sabedoria na criação. É um poema belo e de grande densidade teológica, na reflexão sobre a origem da sabedoria e sobre o que ela diz da sua origem e de si mesma.
O hagiógrafo põe na boca da sabedoria o termo hebraico “qânâny” (“gerou-me”) para expressar a responsabilidade de Deus na origem da sabedoria. Ela foi gerada por Deus e é a primeira das suas obras, isto é, apareceu antes de qualquer outra coisa: antes da terra, dos abismos, das fontes das águas, das montanhas, dos outeiros, da terra, dos campos.
Depois, em torno da conjunção “quando”, vem a enumeração anafórica das circunstâncias da presença da sabedoria: quando Deus “consolidava os céus”; quando Deus traçava a linha do horizonte no abismo, ela admirava o desenho de Deus; quando Deus pendurava as nuvens nos céus e fortalecia as fontes dos abismos, apreciava o trabalho de Deus; quando Deus “impunha ao mar os seus limites” e “lançava os fundamentos da terra”, ela estava ao seu lado.
Porém, a sabedoria não se limitou a assistir à criação de Deus: colaborou na obra criadora de Deus. Estava ao lado de Deus criador como arquiteto ou artesão (“amon” – vers). Teve, pois, ativa colaboração na criação (versões antigas preferem a leitura “amun”, “criança”, o que dá a ideia da sabedoria como criança feliz que brinca e se deleita na obra criada pelo seu tutor).
Contudo, o agrado da “sabedoria” é estar “junto dos filhos dos homens”. A obra criadora de Deus chega ao auge pela criação do homem e da mulher; e a sabedoria, enquanto colaboradora na criação, sente que o seu papel é ajudar os homens a chegarem à plena realização.
Este hino está delimitado por três palavras: “Javé”, “sabedoria” (“eu”) e “homens”. A sabedoria ocupa o espaço entre Deus e os homens, visto que tem origem em Javé, está em íntima relação com Deus, mas destina-se aos homens e gosta de estar com eles. Intermedeia entre Deus e os homens. A partir da realidade criada que viu nascer, mostra aos homens como chegar a Deus. Ao apontar aos homens a criação, obriga-os a olhar para o criador e a descobrirem-no; espevita a inteligência dos homens, leva-os a Deus, atrai-os a Ele, põe-nos em contacto com Deus. Enfim, a sabedoria, presente, desde sempre, na criação, revela-nos a grandeza e o amor do Deus criador.
A tradição judaica identifica a sabedoria com a Torah, mas os autores neotestamentários vão mais além. Paulo chama a Jesus sabedoria de Deus e sabedoria que vem de Deus; considera que Jesus, como a sabedoria de Pr 8, existe antes de tudo e desempenhou papel privilegiado na criação do Mundo. Também João, no prólogo ao seu Evangelho, atribui ao “Lógos”/Palavra (Jesus) os traços da sabedoria criadora: Ele existia antes de todas as coisas criadas e estava com Deus; e Ele teve papel preponderante na criação, pois sem Ele “nada veio a existir”. E, mais tarde, na linha da catequese cristã primitiva, os Padres da Igreja verão na “sabedoria” pré-criada e anterior à restante obra de Deus, traços de Jesus Cristo e do Espírito Santo.

***

Evangelho (Jo 16,12-15) mostra Jesus a despedir-se dos discípulos e a garantir-lhes que não ficarão sós, pois receberão o “Espírito da verdade”, que os conduzirá para a verdade, lembrando-lhes, constantemente, os ensinamentos de Jesus e ajudando-os a encontrar as respostas para os desafios que a vida lhes trará. Pelo Espírito, continuarão ligados a Jesus e, por Jesus, ao Pai.
Por cinco vezes, no discurso de despedida, na véspera da sua morte, Jesus se refere à vinda do Espírito Santo. Antes do trecho em referência, Jesus já lhes tinha falado do “Paráclito”, o “Espírito da verdade” que o Pai enviará, que lhes recordará e ensinará tudo o que tinham escutado, que dará testemunho em favor de Jesus e que apresentará “ao Mundo provas irrefutáveis de uma culpa, de uma inocência e de um julgamento”. Desta feita, retomando o mesmo tema, reafirma o que já tinha dito sobre o Espírito nas referências anteriores. A repetição, que visa tranquilizar os discípulos, funciona como garantia absoluta: aconteça o que acontecer, não devem ter medo, pois caminharão pela vida e enfrentarão a História amparados pelo Espírito.
Nesta alusão à vinda do Espírito, Jesus afirma que ainda tem muitas coisas para lhes dizer, mas que ainda não eram capazes de as entender. Porém, o “Espírito da verdade” guiá-los-á para a verdade plena, comunicar-lhes-á tudo o que diz respeito a Jesus e ajudá-los-á a interpretar tudo o que está para vir.
O “Espírito da verdade” não dirá aos discípulos coisas diferentes das que Jesus disse. O que lhes comunicará é o que ouviu de Jesus (Ele “não falará de Si mesmo, mas dirá tudo o que tiver ouvido”). Porém, houve coisas que Jesus propôs e que os discípulos se recusaram a entender, porque ainda não tinham assimilado a lógica de Deus: não entendiam que a melhor forma de triunfar era gastar a vida a servir os irmãos, simples e humildemente; não aceitavam que o desígnio de salvação tinha de passar pelo fracasso da cruz, pela entrega de Jesus a morte infame; não percebiam que era necessário dar a vida até ao extremo, para chegar à vida verdadeira. Ora, o Espírito ajudá-los-á, gradualmente, a entender essas verdades aparentemente tão ilógicas que Jesus lhes tinha dito sobre a rota que leva à vida nova.
Além disso, o Espírito Santo anunciará aos discípulos “o que está para vir”, isto é, o caminho que percorrerão na História, até ao final dos tempos. Ao longo do caminho, enfrentarão desafios exigentes, outras realidades, tempos que exigirão novas respostas. Segundo Jesus, o Espírito da verdade levará a proposta de Jesus a ecoar, todos os dias, na vida da comunidade e no coração do crente; ensinará os discípulos a entenderem a nova ordem que se segue à cruz e à ressurreição; ajudará a perceberem o que fazer para continuarem fiéis a Jesus e ao Reino de Deus. O Espírito, sempre presente na vida e na rota dos discípulos, não dará nova doutrina, mas fará com que a Palavra de Jesus seja a referência da comunidade em caminhada pelo Mundo.
O Espírito irá buscar ao próprio Jesus a verdade que transmitirá, continuamente, aos discípulos (“receberá do que é meu e vo-lo anunciará”. Assim, Jesus continuará em comunhão, em sintonia com os discípulos, comunicando-lhes avida e o amor. A função do Espírito é fazer a comunhão entre Jesus e os discípulos em marcha pela História.
O trecho evangélico enfatiza a comunhão entre o Pai e o Filho, a qual atesta a unidade entre o desígnio salvador do Pai, visível nas palavras de Jesus e concretizado, na Igreja, pelo Espírito.

***

Na segunda leitura (Rm 5,1-5), Paulo proclama aos cristãos de Roma, o “Evangelho de Deus”, ou seja, que Deus, no seu amor gratuito e incondicional, justifica todos os seus filhos, pois o seu amor falará sempre mais alto do que o nosso pecado. E lembra que é por Jesus que os dons de Deus se derramam em nós e nos oferecem a vida em plenitude.
As tensões dos cristãos de Roma afetavam a unidade e a comunhão. Os cristãos de origem judaica, julgando-se os “filhos da Lei” e herdeiros das promessas de Deus, olhavam com sobranceria os cristãos de outras origens étnicas; os Gregos, cônscios da excelência da sua cultura e sabedoria, supunham-se em vantagem sobre os outros, na ciência de Deus e da via da salvação; os Romanos, cidadãos de pleno direito do império, sentiam-se superiores aos outros. Paulo, ciente disto, diz aos cristãos que são descabidas quaisquer pretensões de superioridade, pois, diante de Deus, não há grupo que possa reivindicar, na salvação, estatuto mais favorável. Todos são pecadores e marcados pela fragilidade. O que vale a Judeus, a Gregos e a Romanos é a justiça de Deus, derramada de forma igual sobre todos.
Na Bíblia, a “justiça” é, mais do que um conceito jurídico ou relacional. Define a fidelidade de alguém a si próprio, ao seu modo de ser e aos compromissos assumidos no âmbito de uma relação. Ora, se Deus Se manifestou, na História do seu Povo como bondade, misericórdia e amor, dizer que Deus é justo não quer dizer que aplica os mecanismos legais, quando o homem infringe as regras, mas que a bondade, a misericórdia, o amor de Deus, se manifestam em todas as circunstâncias, mesmo quando o homem não é correto no seu proceder. O apóstolo, ao falar do homem justificado, fala do pecador que, por exclusiva iniciativa do amor e da misericórdia de Deus, recebe o veredito da graça que o salva do pecado e lhe dá, gratuitamente, acesso à salvação. Ao homem é pedido que acolha, humilde e confiantemente, a graça que não depende dos seus méritos, e que se entregue nas mãos de Deus (a “fé”). Este homem, objeto da graça de Deus, é nova criatura: o homem ressuscitado para a vida nova, que vive do Espírito, que é filho de Deus e co-herdeiro com Cristo. O homem “justificado” por Deus e que acolheu o dom de Deus vive em paz, na paz que veio por Jesus Cristo, que nos revelou o amor do Pai e nos reconciliou com o Pai. Assim, apesar das falhas do homem, Deus não o condena.
Reconciliados com Deus, vivemos na esperança e encaramos as tribulações e as crises na certeza de que vamos ao encontro da vida gloriosa e plena. A esperança leva-nos encarar a vida na certeza de que a morte não terá a última palavra e que as forças da vida triunfarão.
A esperança fortalece-se sempre mais, enquanto caminhamos na Terra, porque o Espírito nos faz experimentar, em cada passo do caminho, o amor infalível de Deus. O que nos marca a vida, com selo decisivo, é o amor de Deus, que não é invenção de teólogos ou de catequistas: Jesus Cristo deu a vida “quando ainda éramos pecadores” para nos mostrar e comprovar o amor de Deus por nós. A certeza desse amor enche a vida, muda a perspetiva das coisas e faz-nos caminhar pela vida com os olhos postos na eternidade.

***

O Papa Leão XIV, na homilia da Missa da Santíssima Trindade, que assinalou o Jubileu do Desporto, começou por falar da Sabedoria de Deus, “como primícias da sua atividade, antes das suas obras mais antigas”, com a sua presença demiurga alegre e cujo prazer é “estar com os filhos dos homens”. E considerou que, para Santo Agostinho, Trindade e sabedoria estão intimamente ligadas. A sabedoria “é revelada na Santíssima Trindade” e “leva-nos sempre à verdade”.
Verificando que o binómio Trindade-desporto raramente é usado, sustentou que “a associação não é descabida”, porque “toda a boa atividade humana traz em si um reflexo da beleza de Deus” e “Deus não é estático, nem está fechado em si mesmo”. Ao invés, “é comunhão, relação viva entre o Pai, o Filho e o Espírito Santo, que se abre à Humanidade e ao Mundo”, o que a Teologia denomina de pericoresis, isto é, “dança”: “dança de amor recíproco”.
Diz o Pontífice que “a vida brota deste dinamismo divino”. Com efeito, “fomos criados por um Deus que se compraz e se alegra” em dar a existência às suas criaturas e que “brinca”. Alguns Padres da Igreja falam de um Deus ludens (que se diverte). Assim, o desporto pode ajudar-nos a encontrar o Deus Trino, visto que “exige um movimento do eu para o outro”, que é exterior e interior. Sem isso, reduz-se a “uma estéril competição de egoísmos”.
Considera Leão XIV que a expressão “Dá-lhe!”, usada pelos espectadores para encorajar os atletas nas competições, “é um incentivo muito bonito: é o imperativo do verbo dar”. “Não se trata apenas de oferecer uma performance física”, mas “de dar-se, de jogar-se”. “Trata-se de dar-se aos outros” – diz o Papa – “para o próprio crescimento, para os apoiantes, para os entes queridos, para os treinadores, para os colaboradores, para o público, até mesmo para os adversários”, e, sendo verdadeiramente um desportista, isso vale além do resultado. 
Depois, citou São João Paulo II, que falou do desporto, nestes termos: “O desporto é alegria de viver, jogo, festa, e deve ser valorizado como tal […], mediante a recuperação da sua gratuitidade, da sua capacidade de estreitar vínculos de amizade, de favorecer o diálogo e a abertura de uns aos outros […], bem acima, não só das duras leis da produção e do consumo, mas também de qualquer outra consideração puramente utilitarista e hedonista da vida.”
A seguir, destacou aspetos do desporto que o tornam precioso meio de formação humana e cristã.
Numa sociedade marcada pela solidão, em que o individualismo deslocou o centro de gravidade do “nós” para o “eu”, levando o outro a ser ignorado, o desporto, sobretudo, se praticado em conjunto, ensina o valor da colaboração, do caminhar juntos, da partilha que está no coração da vida de Deus. Assim, pode ser importante instrumento de recomposição e de encontro: “entre os povos, nas comunidades, nos ambientes escolares e profissionais, nas famílias”.
Numa sociedade cada vez mais digital, em que a tecnologia, que aproxima pessoas distantes, mas afasta os que estão próximos, o desporto valoriza “a concretude do estar juntos, o sentido do corpo, do espaço, do esforço, do tempo real”. E, “contra a tentação de fugir para mundos virtuais, o desporto ajuda a manter um contacto saudável com a Natureza e com a vida concreta, único lugar onde é possível exercer o amor”.
E, numa sociedade competitiva, onde parece que só os fortes e os vencedores merecem viver, o desporto “ensina a perder, colocando o homem frente a frente, na arte da derrota, com uma das verdades mais profundas da sua condição: a fragilidade, o limite, a imperfeição”. Assim, é “a partir da experiência dessa fragilidade que nos abrimos à esperança”. De facto, não existe “o atleta que nunca erra, que nunca perde”. Depois, é preciso ter consciência de que “os campeões não são máquinas infalíveis, mas homens e mulheres que, mesmo derrotados, encontram a coragem para se reerguerem”. Por isso, São João Paulo II dizia que Jesus é “o verdadeiro atleta de Deus”, porque venceu o Mundo, não com a força, mas com a fidelidade do amor.
Lembra o Papa que o desporto teve papel significativo na vida de muitos santos do nosso tempo, como prática pessoal e como meio de evangelização. Um exemplo é o Beato Pier Giorgio Frassati, padroeiro dos desportistas, que será proclamado santo a 7 de setembro. A sua vida, simples e luminosa, recorda-nos que, “assim como ninguém nasce campeão, ninguém nasce santo”. “É o treinamento diário do amor que nos aproxima da vitória definitiva e nos torna capazes de trabalhar pela construção de um mundo novo”. Também o afirmou São Paulo VI, que recordava, 20 após o fim da Segunda Guerra Mundial, aos membros de uma associação desportiva católica quanto “o desporto tinha contribuído para trazer de volta a paz e a esperança a uma sociedade devastada pelas consequências da guerra”. Dizia ele: “Os vossos esforços visam a formação de uma nova sociedade: […] conscientes de que o desporto, nos sãos elementos formativos que valoriza, pode ser um instrumento muito útil para a elevação espiritual da pessoa humana, condição primeira e indispensável para uma sociedade ordenada, serena e construtiva.”
Por fim, dirigindo-se aos desportistas, Leão XIV disse que a Igreja lhes confia a missão maravilhosa de serem “reflexo do amor de Deus Trino”, nas suas atividades, pelo seu próprio bem e pelo bem dos irmãos. E exorta-os a que se deixem envolver, com entusiasmo, por esta missão: “como atletas, como formadores, como sociedade, como grupos, como famílias”. E, como o Papa Francisco vincava que, “no Evangelho, Maria aparece ativa, em movimento, até mesmo a correr”, pronta a partir para socorrer os seus filhos – como sabem fazer as mães – ao menor sinal de Deus”, exorta a que Lhe peçamos que “acompanhe as nossas iniciativas e os nossos esforços, orientando-os sempre para o melhor, até à vitória definitiva: a da eternidade, o ‘campo infinito’ onde o jogo não terá fim e a alegria será plena”.

***

Só nos resta enaltecer a grandeza de Deus e a dignidade da pessoa humana:

“Como sois grande,   em toda a terra, Senhor, nosso Deus!”

“Quando contemplo os céus, obra das vossas mãos, / a lua e as estrelas que lá colocastes, / que é o homem para que Vos lembreis dele, / o filho do homem para dele Vos ocupardes?

“Fizestes dele quase um ser divino, / de honra e glória o coroastes; / destes-lhes poder sobre a obra das vossas mãos, / tudo submetestes a seus pés:

“Ovelhas e bois, todos os rebanhos, / e até os animais selvagens, /as aves do céu e os peixes do mar, / tudo o que se move nos oceanos."

***

"Aleluia. Glória ao Pai e ao Filho e ao Espírito Santo, ao Deus que é, que era e que há de vir."

2024.06.15 – Louro de Carvalho

Sem comentários:

Enviar um comentário