sábado, 28 de junho de 2025

Justiça norte-americana autolimita-se nos seus poderes constitucionais

 
O Supremo Tribunal dos Estados Unidos da América (EUA) decidiu, a 27 de junho, que os juízes locais não têm autoridade para conceder injunções a nível nacional, ou seja, limitou o poder dos juízes de bloquearem ordens e políticas do presidente Donald Trump.
O resultado da votação do Supremo Tribunal dos EUA – com seis votos de juízes conservadores a favor (três deles foram nomeados por Donald Trump) e três votos de progressistas contra – foi uma vitória para o presidente republicano, que se queixou de juízes estarem, individualmente, a criar obstáculos à sua agenda política.
Uma grande e espantosa decisão, uma vitória monumental para a Constituição, [para] a separação dos poderes e [para] o estado de Direito”, reagiu Donald Trump, numa conferência de imprensa, dizendo que, nos últimos meses, “juízes de esquerda radical” tentaram anular os seus poderes como presidente. Com efeito, na ótica presidencial, as injunções eram “uma grave ameaça à democracia”.
Pouco depois da decisão, o presidente disse aos jornalistas que iria “apresentar prontamente” políticas bloqueadas pelos juízes, incluindo restrições à cidadania por nascimento.
Os juízes do Supremo Tribunal dos EUA concordaram com a administração de Donald Trump, bem como com a administração democrata do presidente Joe Biden, antes daquela, em que os juízes estão a exagerar, ao emitirem ordens que se aplicam a todos, em vez de apenas às partes perante o tribunal.
Os casos de injunção, decretada a nível nacional, regressarão, agora, aos tribunais inferiores, onde os juízes terão de decidir como adaptar as suas ordens para cumprirem a decisão do Supremo Tribunal Federal.
Contudo, a decisão não deixou claro o destino das restrições impostas pelo presidente Donald Trump à cidadania por nascimento. Ou seja, apesar da decisão complacente com o inquilino da Casa Branca, os juízes, de maioria conservadora, deixaram em aberto a possibilidade de as limitações à cidadania por nascimento poderem continuar bloqueadas, a nível nacional, podendo tais decisões competir, não às instâncias inferiores, mas ao Supremo Tribunal.
A ordem de Donald Trump negaria a cidadania aos filhos nascidos nos EUA de pessoas que estão no país, ilegalmente.
Ora, o direito de cidadania por nascimento torna automaticamente cidadão americano qualquer pessoa nascida nos EUA, incluindo as crianças nascidas de mães que se encontram ilegalmente no país. Tal direito foi consagrado, logo após a Guerra Civil, na 14.ª Emenda da Constituição. Assim, os EUA estão entre os cerca de 30 países onde a cidadania por nascimento – o princípio do jus soli (direito do solo) – é aplicada. A maioria situa-se no continente americano, e o Canadá e o México estão entre eles. Porém, Donald Trump e os seus apoiantes têm argumentado que deveriam existir normas mais rigorosas, para uma pessoa se tornar uma cidadã americana, a que chamou “uma dádiva inestimável e profunda”, no decreto executivo que assinou, logo no seu primeiro dia de mandato.
Por conseguinte a nova administração norte-americana tem afirmado que os filhos de não cidadãos não estão “sujeitos à jurisdição” dos EUA, uma frase usada na emenda constitucional, e, portanto, não têm direito à cidadania.
Numa decisão do Supremo Tribunal de 1898 – EUA versus Wong Kim Ark –, foi decidido que as únicas crianças que não recebiam automaticamente a cidadania norte-americana, quando nascem em solo norte-americano, são os filhos de diplomatas que devem lealdade a outro governo, inimigos presentes, nos EUA, durante uma ocupação hostil, os nascidos em navios estrangeiros e os nascidos de membros de tribos nativas norte-americanas soberanas.
Contudo, os governos estaduais, imigrantes e grupos de defesa dos direitos humanos que apresentaram ações judiciais para bloquear a ordem executiva acusam a Administração da Casa Branca de tentar desestabilizar o entendimento mais amplo de cidadania por direito de nascença, que foi aceite, desde a adoção da emenda constitucional.
Em sentido contrário, o Departamento de Justiça argumenta que os juízes, individualmente, não possuem o poder de dar um caráter de efeito nacional às suas decisões. Por conseguinte, pretende-se que os juízes permitam que o seu plano nesta matéria entre em vigor para todos os estados e situações, exceto para os casos de pessoas e de grupos que contestam esta decisão e cujo processo judicial ainda está em curso.
Para estas situações – e há recursos judiciais em 22 dos 50 estados – a Administração admite que o plano pode permanecer temporariamente suspenso.
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Em janeiro, um juiz federal bloqueou, temporariamente, a ordem executiva do presidente dos EUA que redefinia a cidadania por direito de nascimento, considerando-a “flagrantemente inconstitucional”, durante a primeira audiência, depois de vários Estados terem tentado desafiar a decisão de Donald Trump na Justiça.
A ordem de restrição temporária solicitada pelo Arizona, pelo Illinois, por Oregon e por Washington foi a primeira a obter uma audiência perante um juiz, em Seattle, e aplica-se a nível nacional. Trata-se de uma das cinco ações judiciais movidas por 22 estados e por vários grupos que lutam pelos direitos dos imigrantes, em todo o país. As ações incluem testemunhos pessoais de procuradores-gerais que são cidadãos americanos, por direito de nascimento, e nomes de mulheres grávidas que temem que seus filhos não se tornem cidadãos americanos.
O juiz John Coughenour interrompeu, repetidamente, um advogado do Departamento de Justiça, durante a argumentação, para lhe perguntar como poderia considerar a ordem constitucional.
Em defesa dos Estados, o procurador-geral adjunto de Washington, Lane Polozola, classificou de “absurdo” o argumento do governo de que os filhos de pais que vivem ilegalmente no país não estão “sujeitos à jurisdição” dos EUA. “De acordo com esta ordem, os bebés que nascem hoje não contam como cidadãos dos EUA”, salientou Polozola, no início da audiência em Seattle.
A administração Trump afirmou que a ordem, assinada pelo presidente no dia da tomada de posse, só afetaria os nascidos depois de 19 de fevereiro, data prevista para a entrada em vigor. A partir desta data, todas as crianças que nasçam nos EUA e cujas mães ou pais não sejam cidadãos ou residentes legais e permanentes no país, estarão sujeitas a ser deportadas e serão impedidas de obter um número da Segurança Social ou qualquer benefício atribuído pelo governo.
Os Estados democratas que decidiram desafiar o presidente argumentam que a ação de Donald Trump viola o direito previsto na cláusula de cidadania da 14.ª Emenda da Constituição, que estabelece que qualquer pessoa nascida nos EUA é um cidadão norte-americano.
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Também em fevereiro, juízes federais travavam algumas medidas polémicas do presidente dos EUA, por exemplo, a decisão de extinguir a Agência dos EUA para o Desenvolvimento Internacional (USAID) e a autorização de acesso aos registos do Tesouro pelo Departamento de Eficiência Governamental, liderado por Elon Musk, que ficaram suspensas pela Justiça.
Um juiz federal bloqueou, temporariamente, as ordens de Donald Trump que teriam colocado milhares de trabalhadores da USAID em licença. Carl Nichols, um juiz nomeado pelo presidente, concordou com os argumentos de duas associações de funcionários públicos, de que as ordens expunham os trabalhadores da agência no estrangeiro a dificuldades e riscos injustificados. A associação de serviços estrangeiros AFSA e a federação de funcionários públicos AFGE argumentam que o presidente não tem autoridade para encerrar a agência de apoio externo, com uma história de seis décadas, sem a aprovação do Congresso. Os deputados democratas apresentaram o mesmo argumento. Contudo, o juiz recusou o pedido das associações de bloquear, temporariamente, o congelamento do financiamento pelo governo dos EUA.
A administração liderada por Donald Trump alega que a USAID é ineficiente, que subsidia, desnecessariamente, programas de igualdade e de sustentabilidade em todo o Mundo e que os seus trabalhadores foram insubordinados perante a ordem de suspensão da ajuda humanitária. De acordo com a ordem, os funcionários que trabalham no estrangeiro e as famílias teriam 30 dias para regressarem aos EUA.
Segundo o jornal The New York Times, quase todos os 10 mil postos de trabalho serão eliminados e apenas um grupo de 290 trabalhadores permanecerá. A sede da agência, no edifício Ronald Reagan, a poucos quarteirões da Casa Branca, está encerrada desde 3 de fevereiro, após os trabalhadores da USAID terem recebido um e-mail a pedir-lhes que ficassem em casa.
Outro revés nos planos de Donald Trump é a possibilidade de acesso a dados pessoais da população. O departamento de Elon Musk teria acesso aos registos do Tesouro, com dados sensíveis, como da Segurança Social ou de números de contas bancárias de milhões de norte-americanos. O juiz Paul A. Engelmayer emitiu a ordem preliminar, depois de 19 procuradores-gerais democratas terem processado Trump, segundo a agência norte-americana AP. No processo, no tribunal federal de Nova Iorque, os procuradores alegaram que a administração Trump permitiu que a equipa de Musk tivesse acesso ao sistema de pagamento central do Departamento do Tesouro, violando a lei federal. O sistema de pagamento lida com reembolsos de impostos, com benefícios da Segurança Social, com benefícios de veteranos e com outras questões, distribuindo triliões de dólares, todos os anos.
Engelmayer, nomeado pelo presidente Barack Obama (2009-2017), disse que qualquer pessoa proibida de ter acesso a informações sensíveis desde a posse de Donald Trump, a 20 de janeiro, deve destruir as cópias de material descarregado dos sistemas do Departamento do Tesouro.
O Departamento de Eficiência Governamental de Musk, conhecido por DOGE, foi criado para descobrir e para eliminar o que a administração Trump considera ser um desperdício de gastos governamentais. O acesso do DOGE aos registos do Tesouro, bem como a inspeção a várias agências governamentais, suscitou preocupação generalizada entre os críticos do poder crescente de Musk, que já deixou o governo e o aconselhamento ao presidente.
A procuradora-geral de Nova Iorque, Letitia James, cujo gabinete interpôs a ação judicial, afirmou que o acesso do DOGE aos dados do Tesouro levantava problemas de segurança e a possibilidade de um congelamento ilegal dos fundos federais. “Este grupo não eleito, liderado pelo homem mais rico do mundo, não está autorizado a ter esta informação”, disse James numa mensagem de vídeo divulgada pelo seu gabinete.
Segundo James, democrata e uma das principais antagonistas de Donald Trump, o DOGE procurara, explicitamente, o acesso não autorizado aos dados do Tesouro “para bloquear ilegalmente pagamentos de que milhões de norte-americanos dependem, pagamentos para cuidados de saúde, cuidados infantis e outros programas essenciais”, quando o presidente não tem o poder de dar informações privadas a qualquer pessoa que escolher e não pode cortar pagamentos federais aprovados pelo Congresso.
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Esperava-se, até agora, que os tribunais norte-americanos pudessem escrutinar as medidas institucionais e as medidas ilegais do presidente e que os juízes nomeados pelo líder da Casa Branca soubessem preservar a sua independência e imparcialidade. É óbvio que Donald Trump gosta de exercer o poder, em termos pessoais e absolutos, mas ainda havia uma réstia de esperança nos tribunais independentes para fazer de contrapeso aos excessos do poder executivo.
Aliás, por exemplo, no Reino Unido, os juízes, mesmo nomeados pelo governo, mantêm-se imparciais. O mesmo acontece com os juízes do Tribunal Constitucional português, que, apesar de eleitos, na sua maioria, pelos partidos políticos, decidem, muitas vezes, em sentido contrário às opções políticas de quem os elegeu.     
Donald Trump deveria saber que a separação dos poderes é parente da interdependência e da cooperação. E, se o Congresso tem poderes próprios (como a aprovação das leis e a fiscalização do executivo) e se ao executivo compete executar as leis e conduzir a política geral do país (carecendo de autorização do Congresso para determinados atos), também cabe ao poder judicial, além de dirimir as questões entre partes, fiscalizar, em termos de constitucionalidade e de legalidade, os atos do poder legislativo e os do poder executivo.
No caso de os juízes de tribunais inferiores tomarem decisões de dúbia legitimidade, caberia recurso para os tribunais superiores. Porém, o Supremo Tribunal dos EUA preferiu obedecer ao presidente e limitar a ação dos tribunais, enfim optou pela capitis diminutio do poder judicial.
Se a moda pega, as democracias que se cuidem!

2025.06.28 – Louro de Carvalho

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