domingo, 10 de agosto de 2025

Alterações à Lei de Estrangeiros foram declaradas inconstitucionais

 

De acordo com a respetiva nota da Presidência da República, “na sequência do Acórdão do Tribunal Constitucional [TC]” de 8 de agosto, “que considerou inconstitucionais cinco disposições do diploma que submetera a fiscalização preventiva da constitucionalidade, o Presidente da República [PR] vai devolver à Assembleia da República [AR], sem promulgação, nos termos do n.º 1 do artigo 279.º da Constituição, o Decreto da Assembleia da República que altera a Lei n.º 23/2007, de 4 de julho, que aprova o regime jurídico de entrada, permanência, saída e afastamento de estrangeiros do território nacional”.
Não se trata do veto político presidencial, nos termos do artigo 136.º, n.º 2, in fine, da Constituição da República Portuguesa (CRP), mas de veto imperativo do PR (também conhecido por veto constitucional), nos termos do artigo 279.º, n.º 1 e n.º 2 (1.ª parte), da CRP.
Obviamente, o governo acatou a decisão do TC e prometeu propor à AR, após as férias parlamentares, os respetivos ajustamentos, mas por forma a conseguir o seu objetivo, embora sem especificar de que modo.
A AR, em vez de reformular o decreto, pode confirmá-lo “por maioria de dois terços dos deputados presentes, desde que superior à maioria absoluta dos deputados em efetividade de funções” (cf. artigo 279.º, n.º 1, da CRP), mas, sendo reformulado, pode o PR “requerer a apreciação preventiva da constitucionalidade de qualquer das suas normas” (cf. artigo 279.º, n.º 3, da CRP).
Submetendo um decreto da AR ou do governo à fiscalização da sua constitucionalidade e se o TC não se pronunciar pela inconstitucionalidade de qualquer das suas normas, o PR poderá usar do veto político, nos termos do artigo 136.º, n.º 1, da CRP. No caso de decreto da AR, se esta o confirmar, “por maioria absoluta dos deputados em efetividade de funções, o Presidente da República deverá promulgar o diploma no prazo de oito dias a contar da sua receção” (cf. artigo 136.º, n.º 2, da CRP). “Será, porém, exigida a maioria de dois terços dos deputados presentes, desde que superior à maioria absoluta dos deputados em efetividade de funções, para a confirmação dos decretos que revistam a forma de lei orgânica, bem como dos que respeitem às seguintes matérias: a) relações externas; b) limites entre o setor público, o setor privado e o setor cooperativo e social de propriedade dos meios de produção; c) regulamentação dos atos eleitorais previstos na Constituição, que não revista a forma de lei orgânica” (artigo 136.º, n.º 3, da CRP).

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Um comunicado, de 8 de agosto, que sintetiza o Acórdão n.º 785/2025 e remete para ele, informa que o plenário do TC se pronunciou “sobre o pedido de fiscalização preventiva do Presidente da República, relativo ao Decreto n.º 6/XVII da Assembleia da República, que introduz diversas alterações ao regime jurídico de entrada, permanência, saída e afastamento de estrangeiros do território nacional, relativas ao regime do reagrupamento familiar” (Lei n.º 23/2007, de 4 de julho, na atual redação).

No atinente aos pressupostos do reagrupamento familiar, o TC considerou: “i) o novo n.º 1 do artigo 98.º, ao não incluir o cônjuge ou equiparado, pode impor a desagregação da família nuclear do cidadão estrangeiro titular de autorização de residência válida e é, por isso, suscetível de conduzir à separação dos membros da família constituída desse cidadão estrangeiro, que resida validamente em Portugal, há menos de dois anos, o que se traduz numa violação dos direitos consagrados nos n. os 1 e 6 do artigo 36.º da Constituição”; ii) quanto ao n.º 3 do artigo 98.º, “a imposição de um prazo absoluto de dois anos até à apresentação do pedido de reagrupamento familiar com todos os membros da família maiores de idade que se encontrem fora do território nacional é incompatível com a proteção constitucionalmente devida à família, em particular, à convivência dos cônjuges ou equiparados entre si e à de qualquer deles com os respetivos filhos menores de idade” (artigos 36.º, n.os 1 e 6, 67.º, n.º 1, 68.º, n.º 1, 69.º, n.º 1, todos da CRP); iii) “a diferenciação positiva dos titulares de autorizações de residência concedidas ao abrigo dos artigos 90.º, 90.º-A e 121.º-A não se afigura desproporcionada, nem discriminatória” (n.º 2 do artigo 13.º da CRP).

No respeitante às “condições de exercício do direito ao reagrupamento familiar”, “os pressupostos previstos nas alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 101.º não são inconstitucionais, mas a previsão de medidas de integração constante do n.º 3 do artigo 101.º viola o princípio da reserva de lei (alínea b) do n.º 1 do artigo 165.º da Constituição).”

Quanto às normas relativas ao prazo de decisão do pedido de reagrupamento familiar, o Tribunal considera que o n.º 1 do artigo 105.º, ao somar um prazo de decisão de nove meses, prorrogável até dezoito meses, ao período de dois anos de espera previsto no n.º 3 do artigo 98.º, não é compatível com os deveres de proteção da família a que o Estado se encontra vinculado (artigos 36.º, n.os 1 e 6, 67.º, n.º 1, 68.º, n.º 1, 69.º, n.º 1, da Constituição).”

“Em matéria de tutela jurisdicional – recurso à ação especial de intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias – o Tribunal entende que a norma do n.º 2 do artigo 87.º-B é inconstitucional, por violação dos artigos 20.º, n.º 1, 18.º, n.º 2, e 268.º, n.º 4, da Constituição, ao passo que o n.º 3 do artigo 87.º-B não enferma de inconstitucionalidade.”

“O acórdão foi aprovado por maioria e encontra-se disponível em:

https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20250785.html”

O TC aponta que o n.º 1 do artigo 98.º “pode impor a desagregação da família nuclear”; o seu n.º 3 “é incompatível com a proteção constitucionalmente devida à família; “a previsão de medidas de integração constantes do n.º 3 do artigo 101.º viola o princípio da reserva de lei”, ao remeter para simples portaria a regulamentação das “medidas de integração”; o prazo de decisão do pedido de reagrupamento familiar, previsto no n.º 1 do artigo 105.º “não é compatível com os deveres de proteção da família a que o Estado se encontra vinculado”; no quadro da tutela jurisdicional, é inconstitucional a norma do n.º 2 do novo artigo 87.º-B, ou seja, “as ações judiciais relativas às decisões ou omissões da AIMA, IP” não podem revestir “a forma de ação administrativa”.

O TC não considerou inconstitucionais “os pressupostos previstos nas alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 101.º, ao exigir com condições o “alojamento” e “meios de subsistência suficientes” e ao remeter para portaria a sua regulamentação, assim como não viu inconstitucionalidade ena diferenciação positiva para a aquisição de residência para detentores de vistos gold ou por motivo de emprego qualificado, de investigação ou de docência. Por outro lado, não valorizou, como o PR, a não audição das entidades que deveriam ter sido ouvidas, por não lhe competir ajuizar da mera ilegalidade, podendo o decreto só não ver devidamente reforçado no seu valor jurídico.

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O TC avaliou que as normas da Lei de Estrangeiros que restringem o acesso ao reagrupamento familiar e a limitação em recorrer aos tribunais contra a Agência para Integração, Migrações e Asilo (AIMA) e entendeu, por maioria, que não estão de acordo com a CRP, pelo que declarou a sua inconstitucionalidade. Das sete normas em que o PR solicitou a análise, nos termos do artigo 278.º, n.os 1 e 3, da CRP, cinco foram declaradas inconstitucionais. O acórdão é assinado pela juíza conselheira Joana Fernandes Costa, relatora do caso e que está em fim de mandato.

O resultado do pedido de análise preventiva de constitucionalidade foi apresentado pela relatora, em leitura a jornalistas, no último dia do prazo de 15 dias, solicitado pelo PR, por motivos de urgência, ao abrigo do artigo 278.º, n.º 8, da CRP.

O presidente do TC, José João Abrantes, detalhou alguns pontos. “O Tribunal Constitucional considerou que o novo n.º 1 do artigo 98, ao não incluir o cônjuge ou o equiparado, pode impor a desagregação da família nuclear do cidadão estrangeiro titular da autorização da residência válida e é, por isso, subjetivo de conduzir à separação dos membros da família constituída desse cidadão estrangeiro crescida validamente em Portugal, há menos de dois anos, o que se traduz numa violação dos direitos consagrados […] da Constituição”, disse.

Quanto ao prazo de dois anos, salientou que a imposição de um prazo absoluto, até a apresentação do pedido de reagrupamento familiar com todos os membros da família maiores de idade, se encontrem fora do território nacional, “é incompatível com a proteção constitucionalmente devida à família”. Quanto ao prazo proposto na lei de que o pedido de reagrupamento familiar poderá ser analisado em nove meses – atualmente, são 90 dias –, foi declarado que “não é compatível com os deveres de proteção da família a que o Estado se encontra vinculado”. E, em relação ao facto de que os recursos ao Tribunal Administrativo ficaram limitados, “ficou o entendimento que se trata de uma medida inconstitucional”.

Sobre os detentores de vistos gold e altamente qualificados terem privilégio no reagrupamento, a maioria dos juízes não viu nenhuma inconstitucionalidade.

As alterações à Lei de Estrangeiros foram aprovadas em apenas 16 dias úteis, na AR, com os votos dos partidos do governo e com os 60 do partido Chega, que foram cruciais na aprovação e na aceleração do trâmite. Tal rapidez, dita “atropelo” por vários deputados da oposição e da Iniciativa Liberal (IL), que se absteve, também foi uma das razões para o PR ter decidido enviar o decreto ao TC.

Instantes depois do resultado do TC, o chefe de Estado vetou a o decreto, que retornará à AR.

O governo confirmou, publicamente, que vai corrigir as inconstitucionalidades apresentadas pelo TC e enviar, de novo, a lei para votação. Assim como em julho, os partidos do governo continuam com apoio do Chega, que garante os votos necessários para a aprovação.

Em declarações, na noite de 7 de agosto, o chefe do governo garantiu que, “se por um acaso, o TC entender que há alguma norma ou alguma solução de alguma norma que não está completamente de acordo com a interpretação dos princípios constitucionais”, a maioria que representa acatará o veredicto e encontrará uma solução jurídica que possa respeitar a pronúncia do Tribunal Constitucional, “mas que possa também cumprir o objetivo”, pois “nós não vamos desistir do nosso objetivo, mesmo que haja alguma correção da redação da lei, em virtude da pronúncia do TC”, frisou. A AR, que está em recesso, voltará ao trabalho em setembro.

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A decisão foi fraturante no plenário do TC, mas a maioria dos juízes conselheiros declarou inconstitucionais normas relativas à nova redação sobre o reagrupamento familiar, bem como à restrição aos recursos na Justiça. Por outro lado, os juízes conselheiros entenderam que a “diferenciação positiva” para reagrupamento familiar de cidadãos com visto gold ou detentores de autorizações de residência obtidas ao abrigo de atividade de docência, altamente qualificada ou cultural, ou beneficiários do cartão azul UE [União Europeia], “não se afigura desproporcionada, nem discriminatória”. No caso dos vistos para procura de trabalho qualificado, o Presidente, apesar de ter referido que o artigo recorria a “conceitos indeterminados”, não suscitou aos juízes a avaliação dessa norma, pelo que não foi tida em conta.
Com esta decisão do TC, Marcelo Rebelo de Sousa sai vencedor desta batalha jurídica contra o governo, numa altura em que Belém acentua os reparos à ação do executivo. Durante o processo legislativo, com alguns partidos e juristas a questionarem a constitucionalidade de algumas normas, o PR sinalizou que o destino do diploma poderia ser este. Os seus alertas, que podiam ter dado azo a algumas revisões em sede parlamentar, não o deram, pois, ao chefe de Estado até se aponta indevida intromissão em alguns processos legislativos.
Na fundamentação do seu pedido ao TC, o PR alegou que poderia estar em causa a “violação dos princípios da igualdade, da proporcionalidade, da segurança jurídica, da proporcionalidade na restrição de direitos e do acesso à justiça”, da “igualdade” e da “tutela jurisdicional efetiva”, da “união familiar, da vinculação da atividade administrativa à Constituição”. Além disso, evidenciou a falta de clareza do diploma, falando em “conceitos de natureza indeterminada ou, pelo menos, de difícil (ou, mesmo, impossível) determinação concreta”, e frisou o que alguns partidos classificaram de “atropelo” de procedimentos nas “audições constitucionais, legais e/ou regimentais, obrigatórias ou não”, sublinhando a falta de respeito pelos prazos.
O acórdão do TC dá razão, em parte, ao PR que, recentemente, dizia ter optado pela fiscalização preventiva, pois julgou “mais útil saber se há razão para haver dúvidas de constitucionalidade” (“mais vale prevenir do que remediar” – sublinhou). E vincou, sub-repticiamente, a discordância política, relativamente ao espírito das alterações que o executivo pretendia fazer à Lei de Estrangeiros, ao afirmar que “fica para a História” que houve uma maioria que “quis essas soluções e oportunamente será julgada por isso”.
É claro que o ministro da Presidência respondeu que toda a gente sabe que os governos são sempre julgados pelo eleitorado, pelo que não lhe fez mossa a ameaça de julgamento histórico. Porém, esquece que o julgamento do eleitorado é um julgamento político e não jurídico, um julgamento circunstancial e não estribado na memória. São eloquentes, nesta matéria, casos de autarcas que, a braços com a Justiça, são eleitos ou reeleitos, ou casos de governantes que venceram eleições em circunstâncias similares.       

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Agora, é o tempo de o governo analisar os reparos do TC e os reparos políticos do PR, não acolhidos pelo TC (neste sentido, a vitória de Marcelo Rebelo de Sousa não foi total, se é que há vitórias totais).

Cabe a António Leitão Amaro, ministro da Presidência e governante da tutela redesenhar as coordenadas para que a nova Lei de Estrangeiros tenha sucesso.

Veremos se o Presidente da República, mantendo-se alguma dúvida de constitucionalidade e/ou alguns aspetos político-humanitários de discordância, persistirá na lógica do veto, como o fez, até agora, com toda a justeza e dignidade.

2025.07.09 – Louro de Carvalho

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