A Palavra de Deus proclamada e meditada neste 22.º domingo do Tempo Comum no Ano C questiona os crentes sobre que valores querem assumir para alicerçar a vida. A soberba, a ganância, a arrogância, a obsessão pelas honrarias, as apostas interesseiras não são boas companheiras de peregrinação. Por isso, a Palavra de Deus insta a que optemos por valores que nos humanizem, que deem profundidade à vida e que nos abram à fraternidade, para nos tornarmos testemunhas e arautos do Mundo novo sonhado por Deus.
O sábio, dirigindo-se aos seus discípulos, assume o papel do pai que instrui os filhos nos valores que devem privilegiar na construção das suas vidas. Na presente instrução, exalta-se a humildade.
O homem sábio mantém-se sempre humilde. Mesmo que seja altamente apreciado e desempenhe relevantes papéis na sociedade, deverá assumir sempre uma atitude de humildade. O homem cuja vida segue os ditames da sabedoria, não se sobrepõe aos outros, não pisa ninguém, não trata os outros com arrogância, coloca-se no lugar que lhe corresponde, o que lhe granjeará a consideração, o apreço e o afeto dos que o rodeiam. O homem humilde será tão querido como o homem generoso.
O homem humilde “encontrará graça diante do Senhor”, pois Deus aprecia os humildes e cumula-os de bênçãos. Só eles são capazes de contemplar o poder e a grandeza de Deus, sem sentirem Deus como um rival; só eles reconhecem a verdade de que tudo o que são e têm é dom de Deus; só eles se entregam nas mãos de Deus com total confiança; só eles são capazes de cantar a glória de Deus. Por isso, Deus ama-os de forma especial.
Nos antípodas do humilde está o homem de coração soberbo. Da soberba Ben Sirah diz apenas que é uma “doença” que “apanha” o homem, que se enraíza nele e que não tem cura. Nessa árvore, crescem diversos ramos que produzem maldade: a arrogância, o orgulho, a autossuficiência, a vaidade. Por isso, a soberba, que é um pecado capital, destrói a vida do soberbo e a daqueles que o rodeiam. É provável que, ao referir a soberba como fonte de males, Jesus Ben Sirah tenha em mente os arrogantes helenistas – convictos da superioridade da sua cultura e da sua forma de vida – que procuravam impor os seus valores ao humilde Povo de Deus.
A humildade não é o valor dos fracos, dos vencidos, dos que não têm a coragem de lutar para conquistar o Mundo; é o valor, a virtude dos que, seguindo a lógica de Deus, se dispõem a servir e a amar os irmãos. De acordo com o pensamento do sábio Ben Sirah, é aí que reside o segredo da vida e da felicidade.
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O Evangelho
(Lc 14,1.7-14) introduz-nos na casa de um
fariseu que tinha convidado Jesus para a refeição de sábado. Aos convivas que
lutavam pelos “primeiros lugares”, Jesus fala de humildade e de simplicidade.
Ao dono da casa, rodeado de amigos unidos por idêntica rede de interesses, Jesus
convida a sair fora do círculo exclusivo e privilegiado, para abraçar o amor
gratuito e desinteressado a todos. Segundo Jesus, é possível contruir o Reino
de Deus, a partir dos valores da humildade, da simplicidade, do amor universal,
do acolhimento misericordioso de todos.Antes de a refeição começar, em casa do “chefe de fariseus”, Jesus curou um homem hidrópico. O gesto de Jesus – grave infração contra o sábado – não caiu bem nos fariseus ali presentes, mas nenhum comentou a ação de Jesus. Terminado o espetáculo da cura do doente, os convidados correram para a mesa, decididos a tomar de assalto os lugares a que se julgavam com direito.
Na sociedade israelita, a hierarquia dos lugares era importante, pois o lugar que cada um ocupava definia a sua importância dentro de um grupo social. Por exemplo, os convidados considerados mais dignos deviam ficar o mais perto possível do dono da casa, até porque os lugares mais centrais (próximos do dono da casa) eram aqueles onde se comia melhor, aonde chegavam, rapidamente, os melhores bocados de comida. Depois, a importância social e a idade da pessoa eram critérios importantes na ocupação dos lugares à mesa.
Em geral, não havia o uso de colocar, na sala do banquete, a indicação do lugar onde cada convidado devia instalar-se. Cada um escolhia o lugar que julgava corresponder à sua dignidade e importância. Ora isto provocava, muitas vezes, discrepâncias e conflitos. Por outro lado, com frequência, havia convidados especiais – que o dono da casa tratava com mais consideração – os quais só se dirigiam para a mesa no último instante, a fim de não ficarem muito tempo à espera do banquete. Se os lugares de honra estivessem ocupados, o dono da casa pediria a algum dos convidados que cedessem o seu lugar à pessoa ou pessoas de categoria que pretendia honrar. O que tinha de ceder o lugar seria relegado para um dos lugares ainda vazios, ao fundo da sala, o que era um rebaixamento.
É neste contexto (talvez após um momento de luta pelos lugares mais dignos) que Jesus Se dirige aos presentes e lhes recomenda: “Quando fores convidado para um banquete nupcial, não tomes o primeiro lugar […]. Vai sentar-te no último lugar; e, quando vier aquele que te convidou, dirá: ‘Amigo, sobe mais para cima’; ficarás então honrado aos olhos dos outros convidados”. O “dito” de Jesus não é original. Os sábios de Israel diziam algo similar: “Não te ponhas no lugar dos grandes. É melhor que te digam: ‘sobe para aqui’, do que seres humilhado diante de um superior” (Pr 25,6-7). A intenção de Jesus não é ensinar aos presentes naquele banquete um truque para obterem êxito social, mas propor-lhes a lógica do Reino de Deus. No Reino de Deus os mais importantes não são os que procuram os lugares de honra e que salvaguardam a sua posição na hierarquia social, mas os humildes, que não se têm por superiores aos outros. A indicação de Jesus fazia muito sentido naquela reunião de fariseus, que se tinham por dignos de toda a consideração, por parte dos outros, e que desprezavam as outras pessoas.
Algum tempo depois, já em Jerusalém, Jesus recomendará aos discípulos que tomem cuidado com os doutores da Lei, que “gostam de serem cumprimentados nas praças públicas, dos primeiros lugares nas sinagogas e dos primeiros assentos nos banquetes.
Aqui, Jesus conclui a sua lição com uma frase desafiante: “Quem se exalta será humilhado e quem se humilha será exaltado.” De facto, quem vive só para concretizar os seus sonhos de grandeza e de glória, falhará na sua vida, Ao invés, quem se apresentar diante dos irmãos, com humildade e com simplicidade, será grande aos olhos de Deus e dará sentido pleno à sua vida. Definitivamente, a lógica de Deus é completamente diferente da lógica dos homens.
Quase no final da refeição, Jesus dirigiu-se ao dono da casa e deixou-lhe algumas sugestões sobre as pessoas a quem devia dirigir convite para um banquete. Os fariseus escolhiam os seus convidados para a mesa. Em geral, evitavam convidar pessoas de nível menos elevado, pois a “comunidade de mesa” vinculava os convivas. Ora, eles não estavam dispostos a estabelecer laços com qualquer um, nomeadamente, com gente desclassificada e pecadora. A tradição social que vigorava impunha que se convidassem para a mesa quatro categorias de pessoas: os amigos, os irmãos, os parentes, os vizinhos ricos. O conselho de Jesus rejeita esta lista e propõe uma lista de convidados diametralmente oposta à sugerida pelas convenções sociais: “Quando ofereceres um banquete, convida os pobres, os aleijados, os coxos e os cegos.”.
A proposta de Jesus parece descabida: seria social e religiosamente incorreto convidar a gente da terra (o “am ha-aretz”) que não cumpria todos os mandamentos da Lei para se sentar à mesa com um fariseu importante; seria inadmissível convidar “os aleijados, os cegos e os coxos” (gente pecadora e maldita, que não era admitida no espaço sagrado do Templo) para um ambiente elevado e santo, onde se discutia a Lei.
Jesus não pretendia provocar o anfitrião, nem escandalizar aquela sociedade seleta de gente “santa”. Jesus ter-se-á apercebido, no decorrer da refeição, que o círculo de relações daquele fariseu era restrito e selecionado: girava à volta de um grupo de interesses, de mútuas vantagens e de intercâmbio de favores. O pequeno mundo onde o dono da casa se movia era de grande estreiteza de horizontes. Aquele homem necessitava de alargar os horizontes, de ver para lá da lógica interesseira, de se libertar do convencionalismo em que se tinha instalado, de descobrir o sentido da partilha e do amor desinteressado, de experimentar um modo mais humano de viver. É este o desafio que Jesus quer deixar-lhe. Não sabemos o impacto da proposta de Jesus na vida daquele homem, mas o dardo foi lançado.
Como pano de fundo destas lições de Jesus está a realidade do Reino de Deus. Jesus nunca desistia de o propor, a propósito e a despropósito. Este Reino é como um banquete onde os convivas estão unidos por laços de familiaridade, de irmandade e de comunhão. Para este banquete, todos são convidados, inclusive os que as convenções – sociais, religiosas, baseadas em interesses pessoais ou corporativos – excluem e marginalizam. As relações entre os que aderem ao banquete do Reino serão pautadas pela gratuitidade e pelo amor desinteressado; e os participantes devem despir-se de qualquer atitude de superioridade, de orgulho, de ambição, para se colocarem numa atitude de humildade, de simplicidade, de serviço.
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Na segunda
leitura (Heb 12,18-19.22-24a),
um pregador cristão da segunda metade do século I convida os crentes a
reavivarem a opção por Cristo, pois a experiência cristã leva-nos até Deus,
insere-nos na família de Deus, faz-nos entrar na Jerusalém celeste, irmana-nos aos
“santos” cujos nomes estão inscritos no céu.Dirigindo-se aos crentes, o pregador procura mostrar que o caminho cristão é experiência feliz e libertadora, que devem acolher com entusiasmo e compromisso. Nesse sentido, convida-os a compararem a religião antiga (revelada a Moisés, no monte Sinai) e a religião de Jesus.
Na perspetiva da Carta, a experiência de Israel no Sinai não foi experiência motivadora, capaz de entusiasmar e de arrebatar. No Sinai, Deus estava distante, inacessível, escondido; não houve proximidade, nem o estabelecimento de relação pessoal entre Deus e o seu povo. A proposta de Deus chegou ao povo, através de mandamentos escritos na dureza e na frialdade da pedra. O cenário do Sinai era inquietante, de medo e de opressão: “o fogo ardente, a nuvem escura, as trevas densas ou a tempestade, o som da trombeta e aquela voz tão retumbante que os ouvintes suplicaram que não lhes falasse mais”. O quadro da revelação sinaítica é terrífico e não serviu para aproximar os homens de Deus, para os levar a um encontro com Deus, alicerçado no amor e na confiança. Compreende-se, pois, que esta experiência religiosa não tenha entusiasmado aqueles que a fizeram.
Ao invés, os que se encontraram com Cristo fizeram uma experiência de Deus completamente diferente, que não teve nada de assustador, de terrível, de opressivo. Pelo Batismo, os cristãos acercaram-se de Deus, sentiram a sua proximidade, entraram em comunhão com Ele, descobriram o Seu amor. Aproximaram-se do monte Sião, do lugar da salvação, da cidade do Deus vivo; acederam ao espaço onde reside Deus, o juiz do universo; tocaram o Mundo novo de milhares de anjos em reunião festiva; irmanaram-se com muitos outros santos e santas, homens e mulheres que escolheram Deus, que atingiram a perfeição e que são co-herdeiros da vida eterna; encontraram-se com Jesus, o mediador da nova aliança, Aquele que lhes deu a possibilidade de descobrirem o verdadeiro rosto de Deus e de integrarem a família de Deus. Os que se encontram com Cristo e aderem ao plano de salvação de que Ele é portador chegaram a uma vida luminosa e gratificante de festa, de louvor, de ação de graças, de adoração, de contemplação.
O pregador que elaborou esta reflexão não nos interroga, mas uma putativa pergunta fica a pairar no ar, destinada a todos os crentes: “Não valerá a pena apostar tudo nesta experiência e vivê-la com entusiasmo?”
A resposta cabe a cada um, mas é conveniente que seja procurada e encontrada na comunidade eclesial.
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O simples e humilde sabe rezar como o Salmista:“Na vossa bondade, Senhor, / preparastes uma casa para o pobre.”
“Pai dos órfãos e defensor das viúvas, / é Deus na sua morada santa. / Aos abandonados Deus prepara uma casa, / conduz os cativos à liberdade.
“Derramastes, ó Deus, uma chuva de bênçãos, / restaurastes a vossa herança enfraquecida. / A vossa grei estabeleceu-se numa terra / que a vossa bondade, ó Deus, preparara para o oprimido.”
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“Aleluia. Aleluia. Tomai o meu jugo sobre vós, diz o
Senhor, e aprendei de Mim, que sou manso e humilde de coração.”
2025.08.31 – Louro de Carvalho
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