segunda-feira, 27 de outubro de 2025

Tem compaixão e perdoa, Senhor, que sou um pecador

 

Ser implica verdade e transparência que não permitem a tentação de esconder a fragilidade. Frágil é a condição humana. Tal fragilidade, que se manifesta, diariamente ou, pelo menos, em alguns momentos, domina todas as dimensões da existência. Contudo, é uma verdade difícil de reconhecer, pois o Mundo não a aceita. Por isso, esconde-se a fragilidade do corpo, da alma, da mente, porque o Mundo não acolhe os frágeis, que incomodam, são um peso.
A liturgia do 30.º domingo do Tempo Comum, no Ano C, suscita a reflexão sobre o modo como Deus exerce a Sua justiça, a qual não ignora o sofrimento dos pobres, dos mais fracos, dos que nem sempre obtêm justiça nos tribunais dos homens. A justiça de Deus concretiza-se como amor e misericórdia. Todos os que estiverem disponíveis para acolher o amor misericordioso de Deus, encontrarão graça e salvação.

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Na 1.ª leitura (Sir 35,15b-17.20-22a), um sábio judeu do século II a.C. lembra aos concidadãos – impressionados pela arrogância dos conquistadores gregos e pelo brilho da cultura helénica – que Deus não faz aceção de pessoas, nem olha às aparências, antes escuta as súplicas dos desprezados e faz justiça às vítimas dos poderosos. As vozes dos humildes nada significam para os grandes, mas atravessam as nuvens e vão diretas ao coração de Deus.
Jesus Ben-Sirah compilou, em Jerusalém, o livro que tem o seu nome, também conhecido como Eclesiástico, e que reúne vasto conjunto de ensinamentos práticos para quem deseja ter vida reta e temente a Deus, com fundamento na Lei judaica, a verdadeira via da sabedoria. Escrito em período de forte influência helenística, reforça a identidade e as tradições judaicas, face à cultura e à filosofia gregas. Neste contexto, o capítulo 35 é significativo, pois estabelece a ligação entre o culto a Deus e a justiça social. Os rituais e sacrifícios religiosos não têm valor, se não forem acompanhados de conduta justa. Mais do que a materialidade das ofertas, o que agrada a Deus é a prática da justiça, a esmola e o afastamento do mal. Observar a Lei e ser misericordioso são os verdadeiros sacrifícios, pois Deus não aceita oferendas que vêm da injustiça. Um sacrifício fruto do roubo ou da opressão é um insulto a Deus.
O trecho em apreço integra um conjunto de sentenças do sábio Ben-Sirah sobre a justiça de Deus.
Há quem pense em comprar Deus, oferecendo-Lhe presentes esplêndidos; em ganhar os favores de Deus, ofertando-Lhe abundantes sacrifícios de animais; em pôr Deus do seu lado e acalmar a sua indignação, partilhando com Ele os frutos dos seus negócios injustos. Ora, quem assim pensa engana-se: “Deus é um juiz justo e incorruptível, que não faz aceção de pessoas; não favorece ninguém em prejuízo do pobre e atende a prece do oprimido”. Os grandes, os poderosos, os influentes, os que pensam que tudo dominam, os que oprimem e exploram os pobres, os que cometem injustiças, nunca poderão fazer de Deus seu cúmplice.
Ao invés, Deus tem especial predileção pelos pobres, pelos humildes, pelos pequenos, pelos desprezados. Os que não têm quem os defenda, os que não têm voz, os que não contam para nada – por exemplo, os órfãos e as viúvas – têm um lugar especial no coração de Deus. A oração dos humildes não se perde: Deus escuta-a; os lamentos doridos das vítimas da injustiça e da maldade dos poderosos ultrapassam as nuvens e chegam aos ouvidos de Deus. Tocado pelos gritos que saem do coração dos desprezados, Deus vem ao encontro deles, olha-os com bondade e pronuncia sobre eles o veredito de salvação. É assim que Deus exerce a justiça.
Deus não faz aceção de pessoas. Também não permite que o pobre seja prejudicado. Os oprimidos, os pobres, os órfãos e as viúvas são atendidos por Deus, a sua oração sobe aos céus.
A atenção de Deus para com os mais frágeis é a garantia de que a sua oração humilde “atravessa as nuvens” e chega até Ele.
No mesmo sentido, o Salmo 34, afirma que o Deus de Israel não é indiferente. O salmista louva o Senhor e convida todos os humildes a juntarem-se a ele, porque sabe que Deus está presente e próximo do seu povo. O Senhor está perto, salva e defende os justos, os humildes, os atribulados e os abatidos. Isto não significa que os que confiam em Deus não sofram, mas que Ele está ao seu lado e os defende.

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No Evangelho (Lc 18,9-14), Jesus, conta uma parábola “para alguns que se consideravam justos e desprezavam os outros”. Pondo frente a frente um fariseu de vida exemplar e um publicano de vida muito duvidosa, Jesus tira conclusão desconcertante: de nada valem as boas obras do justo que se apresenta diante de Deus e dos irmãos, convicto dos seus méritos, com orgulho e arrogância. Deus prefere o pecador que, humildemente, reconhece a sua indignidade e se dispõe a abraçar a salvação que lhe é oferecida.
Jesus e os discípulos estão a caminho de Jerusalém. Aproxima-se a hora em que Ele, rejeitado e condenado pelas autoridades, será crucificado. Depois, os discípulos ficarão sós e terão a missão testemunhar o Reino de Deus. A certa altura, Jesus quis ministrar-lhes uma lição sobre orgulho e arrogância, para o que lhes contou a parábola (que só aparece no Evangelho de Lucas) onde entram um fariseu e um publicano. No dizer de Lucas, a parábola tem como alvo os “que se consideravam justos e desprezavam os outros”.
Os fariseus eram um grupo leigo (em oposição aos saduceus, o partido sacerdotal), com influência no povo. O historiador Flávio Josefo diz que, no tempo de Herodes, os fariseus eram cerca de seis mil. Descendentes dos “piedosos” (“hassidim”) que apoiaram o heroico Matatias na luta contra Antíoco IV Epífanes e contra a helenização forçada, os fariseus eram os defensores intransigentes da Lei, quer escrita, quer oral (a Lei oral constava da coleção de leis não escritas que os mestres da escola farisaica tinham deduzido a partir da Torah escrita). Mantinham estreita ligação com os escribas, os mestres e intérpretes da Lei. Esforçavam-se por cumprir escrupulosamente a Lei e procuravam ensiná-la ao Povo. Criam que, quando todos cumprissem a Lei, o Messias chegaria para trazer a libertação a Israel. Convictos da sua superioridade religiosa e moral, tratavam com desprezo o povo da terra (“am ha-aretz”), os ignorantes que não conheciam a Lei, nem se importavam com o cumprimento dos seus preceitos. A sua insistência no cumprimento integral da Lei contribuía para criar no povo a sensação latente de pecado e de indignidade que oprimia as consciências e fazia o crente sentir-se longe de Deus. Estavam interessados na santificação do Povo de Deus, mas, absolutizando a Lei, punham em segundo plano o amor e a misericórdia.
Os publicanos (“publicani”) eram agentes comerciais privados que procediam à recolha dos impostos. Considerados servidores do império romano, eram desprezados pelos seus concidadãos. O publicano recebia do governo, por uma soma fixa anual (determinada a partir da estimativa das rendas), o direito de recolher os impostos. A soma fixada e que o publicano devia entregar era inferior à entrada prevista. O publicano retinha para si o excedente. O sistema favorecia os abusos destes funcionários, que procuravam faturar o mais possível para garantirem ganhos convenientes para si próprios. Por isso, eram vistos como ladrões e exploradores dos concidadãos. De acordo com a Mishna, estavam afetados permanentemente de impureza e não podiam fazer penitência, pois eram incapazes de conhecer todos aqueles a quem tinham defraudado e a quem deviam uma reparação. Se um publicano, antes de aceitar o cargo, integrava uma comunidade farisaica, era expulso dela e não podia ser reabilitado, a não ser depois de abandonar esse cargo. Quem exercia tal ofício, estava privado de certos direitos cívicos, políticos e religiosos. Por exemplo, não podia ser juiz, nem testemunhar em tribunal e era equiparado ao escravo.
A parábola em referência situa-nos no cenário do Templo de Jerusalém. Dois homens vão rezar ali: um fariseu e um publicano – figuras bem distantes na estrutura social e religiosa da Palestina da época de Jesus.
O fariseu está no átrio dos israelitas a fazer oração. Está de pé, que é a posição habitual dos crentes israelitas quando se dirigem a Deus. Não pronuncia as palavras da sua oração em voz alta, mas ora interiormente, como é de bom tom entre os israelitas. Na oração, o fariseu louva e agradece a Deus, por ser quem é e por viver como vive. Como bom fariseu, jejua duas vezes por semana, paga o dízimo de tudo quanto possui. Sente que o seu compromisso com Deus o põe acima dos outros homens, pecadores notórios, como, por exemplo, o publicano que, a certa distância, também está a rezar, e que é um ladrão e explorador do povo. Tem consciência de que leva uma vida íntegra e que cumpre integralmente os preceitos da Lei ou até mais. Jesus não diz, ao contar a parábola, que este fariseu estivesse a mentir.
O publicano entra envergonhado no espaço do Templo para fazer oração. Não chega ao “átrio dos israelitas”, onde está o fariseu a rezar, mas fica-se por um dos átrios exteriores, para não dar nas vistas e porque não se considera digno de se aproximar de Deus. Sabe que não pode pôr-se em regra com Deus, pois não conseguirá devolver todo o dinheiro que subtraiu aos pobres, aquando da recolha dos impostos. Mantém a cabeça baixa, sem ousar levantar os olhos, e bate no peito a mostrar o seu arrependimento. Tem consciência da sua indignidade. Não se compara com outros homens; apenas reconhece o seu pecado e invoca a misericórdia de Deus. Não se agarra às suas boas obras para se salvar, porque não as tem; só pode confiar na compaixão de Deus (“meu Deus, tem compaixão de mim, que sou pecador”.
Jesus faz a apreciação sobre a oração e a atitude destes dois homens. Considera que o publicano “desceu justificado para sua casa”, ao contrário do fariseu. O termo “justificado” é sinónimo de “perdoado”, ou “salvo”. Leva-nos à teologia paulina da justificação: Deus, na sua infinita justiça, lança sobre o pecador o veredicto de graça e salva-o, mesmo que o homem não o mereça.
O fariseu apresenta-se na atitude de orgulho e de arrogância. Ao cumprir a Lei, considera-se em regra com Deus. Acha que não precisa da misericórdia de Deus, pois as obras que faz obrigam Deus a oferecer-lhe a salvação, que é, na sua ótica, conquista do homem, resultado do esforço do homem. O Deus que ele conhece é só o contabilista que anota as ações do homem e que lhe pagará conforme os méritos. O fariseu, cheio de autossuficiência e de arrogância, não necessita da misericórdia de Deus, pois, segundo ele, os seus créditos são suficientes para se salvar. E essa autossuficiência leva-o ao desprezo pelos que não são como ele. Considera-se superior e separado, como se entre ele e o pecador houvesse uma barreira. É meio caminho andado para, em nome de Deus, criar segregação e exclusão. É a isso que leva a religião dos méritos.
O publicano, ao contrário, não conta com os seus méritos (que não existem). Apresenta-se diante de Deus de mãos vazias e sem pretensões; reconhece as suas falhas e a sua incapacidade de, por si só, as ultrapassar; entrega-se nas mãos de Deus e pede-Lhe compaixão. Sabe que só Deus o pode salvar. E Deus justifica-o – isto é, derrama sobre ele a sua graça e salva-o – porque ele não tem o coração cheio de autossuficiência e está disposto a aceitar a salvação que Deus quer oferecer a todos os homens.
A última frase do texto (“aquele que se exalta será humilhado e aquele que se humilha será exaltado”) é a conclusão adequada da parábola. Avisa-nos que não vale nada confiar nos nossos méritos e nas nossas boas ações, exigindo a Deus que nos pague a fidelidade e o bom comportamento; se queremos aceder à vida verdadeira, temos de nos apresentar humildemente ante Deus, reconhecer a nossa fragilidade, confiar no amor de Deus e acolher a salvação de Deus.
Na parábola, o pobre é o publicano. Embora pudesse ser rico através dos impostos, é pobre de espírito por causa do seu pecado, e o seu coração é humilde ao ponto de reconhecer a sua condição. Com esta personagem, Jesus recorda a importância da pobreza de coração: “Bem-aventurados os pobres em espírito, porque deles é o Reino dos Céus.”
São, pois, os humildes e pobres que alcançam o Reino: Lázaro vai para o seio de Abraão e a viúva persistente é atendida. Agora, o publicano regressa a casa justificado. Pelo contrário, o rico, o juiz e o fariseu, na sua autossuficiência, nada receberam.

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A segunda leitura (2Tm 4,6-8.16-18) expõe-nos o testemunho do apóstolo Paulo, na fase final da sua vida: apesar das contrariedades e vicissitudes que teve de enfrentar, por causa da fidelidade a Jesus e ao Evangelho, manteve-se fiel e coerente: combateu o bom combate e guardou a fé. Resta-lhe, agora, confiar em Deus e entregar-se nas suas mãos. O exemplo de Paulo aponta o caminho aos crentes de todas as épocas.
O epistológrafo apresenta-se na pele de Paulo, prisioneiro em Roma. Sentindo que a sua vida está a acabar, avalia a forma como viveu. O objetivo é levar os crentes a fazerem, como Paulo, o dom total das suas vidas a Deus.
A vida de Paulo sofreu radical transformação, ao encontrar-se com Cristo na estrada de Damasco. A partir daí, deixou para trás as certezas e seguranças em que tinha apostado e começou a viver para Cristo: enfrentou todas as oposições, contornou todos os obstáculos, suportou todos os cansaços, deu tudo para levar a Boa nova da salvação a todas as nações.
Para definir a vida de total compromisso com o desígnio de Deus, recorre a três imagens. A primeira vem do culto judaico: a sua vida foi oferta sacrificial a Deus, derramada sobre o altar de Deus, à imagem dos ritos de libação que se faziam no santuário e que consistiam no derramamento de algum vinho sobre o altar, onde se iria queimar a oferenda à divindade. A segunda é tirada do mundo militar. A sua vida foi combate em que se empenhou totalmente, até ao dom de si. Paulo combateu bravamente e deu tudo pela vitória de Deus. A terceira é a do atleta que corre em direção à meta para alcançar a vitória. Paulo, qual atleta de eleição, correu sempre, com empenho total, com dedicação absoluta, pondo todas as suas forças ao serviço do desígnio de Deus. Agora, depois de uma vida gasta ao serviço de Deus, pressente que terminou o seu caminho. Está satisfeito com a prestação, pois manteve-se focado, foi fiel, fez tudo o que estava ao seu alcance para corresponder ao chamamento de Jesus. Resta-lhe receber a “coroa da justiça” reservada aos vencedores. E aproveita para avisar que o mesmo prémio está reservado a todos os que lutam com o mesmo denodo e o mesmo entusiasmo pelo Reino. Os discípulos de Jesus de todas as épocas devem ter isso em conta.
No final, a carta refere a desilusão de Paulo, por não ter sentido o apoio dos “irmãos, na sua “primeira defesa” diante das autoridades. Porém, não se sente sozinho, pois tem experimentado, nestes dias de cativeiro, o apoio e o conforto de Deus. Está convicto de que Deus o livrará de todo o mal e lhe dará, no final da caminhada, a vida definitiva. Por isso, termina a sua partilha com um grito de louvor: “Glória a Ele pelos séculos dos séculos. Ámen.”

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Podem e devem os crentes cantar com o salmista:

“O pobre clamou e o Senhor ouviu a sua voz.”

“A toda a hora bendirei o Senhor, / o seu louvor estará sempre na minha boca. /A minha alma gloria-se no Senhor: / escutem e alegrem-se os humildes.

“A face do Senhor volta-se contra os que fazem o mal, / para apagar da terra a sua memória. / Os justos clamaram e o Senhor os ouviu, / livrou-os de todas as angústias.

“O Senhor está perto dos que têm o coração atribulado / e salva os de ânimo abatido. / O Senhor defende a vida dos seus servos, / não serão castigados os que n’Ele confiam.

 

“Aleluia. Deus estava em Cristo reconciliando o Mundo consigo e confiou-nos a reconciliação.

2025.10.26 – Louro de Carvalho

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