O
jornal Público de 4 de outubro publicou interessante reportagem de
Andreia Sanches, intitulada “Há 50 anos, a escola abriu-se a todos e estes
professores construíram-na. ‘Ainda sonho que dou aulas’.” Contudo, mostra
algumas imprecisões cuja responsabilidade não sei se é da repórter, dos
declarantes ou dos investigadores a quem dá voz. Efetivamente, uma equipa
coordenada por Amélia Lopes, catedrática da Faculdade de Psicologia e Ciências
da Educação da Universidade do Porto, procedeu a notável trabalho de investigação
baseado no testemunho de docentes que lecionaram nestes 50 anos de democracia e
que testemunham a evolução do ensino.
A
imprecisão que me atraiu foi a afirmação de que houve “também boas medidas que
foram caindo por terra”, como “o Estudo acompanhado criado em 1998 e extinto em
2011”.
Até
à reforma educativa de Roberto Carneiro, no segundo governo de Cavaco Silva, na
sequência da publicação da Lei de bases do Sistema Educativo (LBSE) – cuja
primeira versão é a da Lei n.º 46/86, de 14 de outubro, e que desencadeou amplo
debate nacional – o currículo nacional era constituído pelas diversas áreas / disciplinas,
no ensino primário (hoje, 1.º Ciclo do Ensino Básico, no regime de monodocência,
ou seja, o mesmo professor lecionava todas as áreas / disciplinas). É óbvio que
já havia apoios a alunos que deles necessitassem e atividades
extracurriculares.
A
LBSE determinava que o ensino básico era obrigatório (os alunos eram obrigados
a frequentar a escola até o completarem ou até à idade de 15 anos), tinha a
duração de nove anos e era distribuído por três ciclos: o primeiro de quatro
anos (correspondente ao antigo ensino primário); o segundo, de dois anos
(correspondente ao antigo ciclo preparatório do ensino secundário); e o
terceiro, de três anos (correspondendo ao ensino unificado, que deixou de ser
secundário). E estabeleceu um ensino secundário de três anos (o antigo ensino
complementar), tornando-o sequencial e não com o 12.º ano como desligado dos
dois anos anteriores. A LBSE, na versão atualmente em vigor, tornou obrigatório
o ensino de 12 anos, de modo que os alunos são obrigados a frequentar a escola
até o completarem ou até à idade de 15 anos.
Entretanto,
o Decreto-Lei n.º 286/89, de 29 de agosto, que executa a reforma educativa, não
se contenta com o currículo assente num elenco de áreas / disciplinas. O seu
artigo 6.º estabelece que “os planos curriculares dos ensinos básico e
secundário compreendem uma área curricular não disciplinar [ACND] com a duração
anual de 95 a 110 horas, competindo à escola ou à área escolar decidir a
respetiva distribuição, conteúdo e coordenação” (n.º 1); que são objetivos dessa
área “a concretização dos saberes, através de atividades e projetos
multidisciplinares, a articulação entre a escola e o meio e a formação pessoal
e social dos alunos (n.º 2); que, numa primeira fase, essa área “será
organizada de acordo com a redução correspondente de horas letivas das
disciplinas envolvidas em cada projeto” (n.º 3); e que, “numa segunda fase e na
medida do possível”, essa área “passará a dispor de créditos horários próprios,
para além das horas letivas das várias disciplinas” (n.º 4). Era a Área-Escola.
O
diploma elegeu, como formações transdisciplinares, a formação pessoal e social,
a valorização da dimensão humana do trabalho e o domínio da língua materna (ver
artigo 9.º, n.º 1).
É
claro, as escolas foram enriquecendo a oferta de apoio e muitas criaram a
chamada “sala de estudo”, que os alunos podiam ou não frequentar e que
funcionava como apoio à aprendizagem, podendo o professor acompanhante tirar
algumas dúvidas, o que, por vezes, descambava para o apoio acrescentado na
disciplina do referido professor.
É
o Decreto-Lei n.º 6/2001, de 18 de janeiro, que estabelece, para o ensino
básico, três áreas curriculares não disciplinares (ACND), para o ensino básico:
a Área de Projeto, o Estudo Acompanhado e a Formação Cívica (ver artigo 5.º).
Por outro lado, estabelece, como formações transdisciplinares, a educação para
a cidadania, a valorização da língua portuguesa, a dimensão humana do trabalho e,
de caráter instrumental, a utilização das tecnologias de informação e
comunicação [TIC] (ver artigo 6.º).
A
estrutura curricular constante dos respetivos anexos tem como pano de fundo a “educação
para a cidadania”; nos 2.º e 3.º ciclos, é estipulado que “a Área de Projeto e
o Estudo Acompanhado são
assegurados por equipas de dois professores de turma, preferencialmente, de
áreas científicas diferentes”; a carga horária semanal é, no 2.º ciclo, de três
tempos semanais de 90 minutos, no 5.º ano, e de 2,5, no 6.º (no total: 5,5
tempos); e, no 3.º ciclo é de 2,5 em cada um dos três anos (no total: 7,5
tempos). E, ao invés do diploma
anterior, que previa uma disciplina de Desenvolvimento Pessoal e Social,
obrigatória para todos os alunos, que poderia ser substituída pela disciplina
opcional de Educação Moral e Religiosa Católica (EMRC), o presente decreto
pretende cumprir os objetivos do desenvolvimento pessoal e social, através das
ACND, acrescentando, em regime opcional, a EMRC.
Também
ficaram estabelecidas, nos três ciclos, as atividades de enriquecimento
curricular (AEC), “de caráter facultativo e de natureza eminentemente lúdica e
cultural, incidindo, nomeadamente, nos domínios desportivo, artístico,
científico e tecnológico, de ligação da escola com o meio, de solidariedade e
voluntariado e da dimensão europeia na educação” (ver artigo 9.º).
Por
sua vez, o Decreto-Lei n.º 7/2001, de 18 de janeiro, estabelece, como ACND, “a Área
de Projeto, nos cursos gerais, e a área de projeto tecnológico, nos cursos
tecnológicos”, visando “desenvolver uma visão integradora dos saberes e da
relação teórico-prática, assim como promover a orientação escolar e
profissional e facilitar a aproximação ao mundo do trabalho” (ver artigo 5.º,
alínea c)).
São
estabelecidos dois tipos de cursos, no ensino secundário: os cursos gerais e os
cursos tecnológicos. É uma nomenclatura diferente da adotada pelo Decreto-lei
n.º 286/89, de 29 de agosto, à luz do qual foram estabelecidos os cursos do
[ensino] secundário predominantemente orientados para o prosseguimento de
estudos superiores (CSPOPES) e cursos do [ensino] secundário predominantemente
orientados para a vida ativa (CSPOPVA). As outras ACND não são comtempladas no
presente diploma, o qual, no entanto, contém disposições análogas às do ensino
básico, relativamente formações transdisciplinares (ver artigo 6.º) e a atividades de
enriquecimento do currículo (ver artigo 7.º)
De
acordo com os respetivos anexos, a Área de Projeto tem a carga horária semanal,
nos cursos gerais, de três tempos de 90 minutos, em cada ano, e é assegurada
por uma equipa de dois professores da turma, preferencialmente, de entre os que
lecionam disciplinas da componente de formação específica; já nos cursos
tecnológicos, onde tem a mesma carga horaria semanal, integra a carga horária
semanal da disciplina tecnológica bienal, nos dois primeiros anos, mas, no 12.º ano, é assegurada por uma
equipa de dois professores da turma, de entre os que lecionem disciplinas de
natureza técnica e ou tecnológica.
Tanto
o Decreto-Lei n.º 6/2001, como o Decreto-Lei n.º 7/2001, ambos de 18 de janeiro,
estabeleciam, para o desenvolvimento do currículo, a elaboração do projeto
curricular de escola e os projetos curriculares de turma.
Assim,
conclui-se que o Estudo Acompanhado, apesar de poder ter havido tentativas
anteriores, só ficou estabelecido em 2001.
***
O
Decreto-Lei n.º 74/2004, de 26 de março, que não dispõe sobre o ensino básico,
estabelece que “a matriz curricular dos cursos científico-humanísticos, com
exceção dos de ensino recorrente, inclui a Área de Projeto, que pretende
mobilizar e integrar competências e saberes adquiridos nas diferentes
disciplinas” (ver artigo 6.º, n.º 4). Porém, esta ACND passou a ser assegurada
por um só professor, a dispor de apenas dois tempos letivos semanais de 90
minutos e a ser desenvolvida só no 12.º ano, o que se manteve com o Decreto-Lei
n.º 24/2006, de 6 de fevereiro, e com o Decreto-Lei n.º 272/2007, de 26 de julho.
É
de referir que a nomenclatura dos cursos mudou: os antigos cursos gerais
passaram cursos científico-humanísticos (curso de Ciências e Tecnologias, curso
de Ciências Socioeconómicas, curso de Ciências Sociais e Humanas e curso de
Línguas e Literaturas); e, a par dos cursos tecnológicos, são contemplados os
cursos especializados e os cursos do ensino profissional.
Entretanto,
o Decreto-Lei n.º 272/2007, de 26 de julho, além de outras alterações,
substituiu o curso de Línguas e Literaturas pelo curso de Línguas e Humanidades
e introduziu o curso científico-humanístico de Artes Visuais.
O Decreto-lei
n.º 50/2011, de 8 de abril, que dispõe, unicamente para o ensino secundário, elimina
a Área de Projeto da matriz dos cursos científico-humanísticos (que só existia
no 12.º ano) e cria a Formação Cívica na matriz dos cursos
científico-humanísticos (ver artigos 1.º e 2.º: este altera o artigo 6.º do
Decreto-Lei n.º 74/2004, de 26 de março), com a carga horária semanal de meio
tempo, “orientada para o desenvolvimento da educação para a cidadania, para a
saúde e sexualidade”.
O
Decreto-Lei n.º 94/2011, de 3 de agosto, retira da matriz curricular do 2.º e
do 3.º ciclo do ensino básico a Área de Projeto; mantém o Estudo Acompanhado e a
Formação Cívica, no 2.º ciclo, mas com a carga horária semanal de três tempos
de 45 minutos em cada um dos anos do 2.º ciclo, a distribuir pelas duas ACND,
sendo o Estudo Acompanhado assegurado por uma equipa de dois professores da
turma, preferencialmente, de áreas científicas diferentes; e elimina da matriz
curricular do 3.º ciclo o Estudo Acompanhado e mantém a Formação Cívica, mas
com um tempo semanal de 45 minutos, em cada um dos três anos.
Todavia,
no 1.º ciclo, mantém as três ACND: Área de projeto, Estudo
acompanhado e Formação cívica, criadas pelo Decreto-Lei n.º 6/2001, de 18 de
janeiro –, estabelecendo que “estas áreas devem ser desenvolvidas em
articulação entre si e com as áreas disciplinares, incluindo uma componente de
trabalho dos alunos com as tecnologias da informação e da comunicação, e
constar, explicitamente, do projeto curricular de turma”.
Portanto,
o Estudo Acompanhado só foi eliminado do 3.º ciclo em 2011, mantendo-se no 1.º
ciclo e no 2.º ciclo.
O
Decreto-Lei n.º 139/2012, de 5 de julho, mantém as três ACND no 1.º ciclo, mas
retirou o Estudo Acompanhado do 2.º ciclo e criou Apoio ao Estudo, como “oferta
obrigatória da escola e facultativa para os alunos, sendo
obrigatória por indicação do conselho de turma e obtido o acordo dos
encarregados de educação”.
O
Decreto-Lei n.º 58/2018, de 6 de julho, estabelece para os três ciclos do
ensino básico a disciplina de Cidadania e Desenvolvimento, no âmbito da
Estratégia de Educação para a Cidadania, transversal a todo o currículo, e o
Apoio ao Estudo, no 1.º ciclo e no 2.º. No 1.º ciclo, o Apoio ao Estudo é
entendido “como suporte às aprendizagens, assente numa metodologia de
integração de várias componentes de currículo, privilegiando a pesquisa, o
tratamento e a seleção de informação”; no 2.º ciclo, como componente de apoio
às aprendizagens, cuja oferta é objeto de decisão da escola, bem como a sua
organização, o tempo que lhe é destinado e as regras de frequência”. Estipula que as escolas disponham de oferta
complementar, para enriquecimento curricular, facultativa, mas de frequência
obrigatória, quando exista. E prevê a reorientação do percurso escolar do aluno
e estabelece que a escola, além do projeto educativo, tenha como documento
orientador o projeto de autonomia e flexibilização curricular.
Em
suma, o Estudo Acompanhado foi criado em 2001 e foi eliminado, em definitivo,
em 2018.
***
Adicionalmente,
é de frisar que a reportagem apresenta outras vulnerabilidades. O congelamento
das carreiras na função pública e, obviamente, a carreira docente, não
aconteceu com a troika, mas a 29 de agosto de 2005 (Lei n.º 43/2005, de
29 de agosto). O descongelamento ocorreu a 1 de janeiro de 2008, por força da Lei n.º 67-A/2007, de 31 de dezembro (Lei do Orçamento do Estado – OE – para 2008).
Porém, em relação aos professores, na prática,
só teve efeito com o Decreto-Lei n.º 75/2010, de 23 de junho. Contudo, a 1 de
janeiro de 2011, foram congeladas novamente, as carreiras na função pública,
por força da Lei n.º 55-A/2010, de 31 de dezembro (Lei do OE para 2011), até
dezembro de 2017. Nos anos não iniciais de congelamento-descongelamento, esta
norma era estabelecida pela respetiva Lei do OE.
Foi
a 1 de janeiro de 2018 que as carreiras ficaram descongeladas, por força da Lei
n.º 114/2017, de 29 de dezembro (Lei do OE para 2018) – executada, nesta
matéria, pelo Despacho n.º 5327/2018, de 29 de maio, mas o tempo de serviço,
para efeitos de progressão, não foi contado na íntegra, mas parcialmente. E, no
caso, dos professores, a questão só foi resolvida pelo XXIV governo
constitucional, pelo Decreto-Lei n.º 48-B/2024, de 25 de julho.
***
Por
fim, é de referir que a profissionalização em exercício (Decreto-Lei n.º
519-T1/79, de 29 de dezembro) – mais tarde, formação em serviço (Decreto-Lei
n.º 150-A/85, de 8 de maio) e, posteriormente, profissionalização em serviço (Decreto-Lei
n.º 287/88, de 19 de agosto) –não resultou de haver pessoas a dar aulas com o 7.º
ano do Liceu ou com algumas disciplinas da universidade. Resultou, como sucedânea
do estágio clássico, para facultar a formação em mais escolas, envolvendo o formando
na escola e esta na formação. Acediam a ela apenas indivíduos diplomados por
universidades ou instituições similares, cujos cursos conferissem habilitação própria
para a docência e fossem portadores de alguma experiência docente.
Já
antes, as universidades ministravam cursos em que havia a opção pelo ramo
educacional, vindo os diplomados para as escolas já com a profissionalização. Paralelamente,
muitas das novas universidades e as escolas superiores de educação (ESE) (e,
mais tarde, as universidades clássicas) ministravam cursos em que a formação pedagógico-didática
académica era concomitante com a formação científica e integrava o estágio feito
numa escola. Era o estágio integrado.
Só
com o Decreto-Lei n.º 43/2007, de 22 de fevereiro, que aprova o regime jurídico
da habilitação profissional para a docência na educação pré-escolar e nos
ensinos básico e secundário, é que o regime normal da formação dos docentes era
curso (de mestrado) especificamente orientado para a docência na educação básica
e nas diversas áreas do ensino secundário, ministrado por instituições do
ensino superior (ESE, para os 1.º, 2.º e 3.º ciclos; e universidades, para o ensino
secundário e para o 3.º ciclo), ficando, como residual a profissionalização em
serviço, a que o governo pensa recorrer para obviar à atual falta de docentes com
formação pedagógica.
***
Quanto
ao mais, a reportagem espelha a epopeia docente protagonizada por muitos docentes,
entre vários escolhos, nestes 50 anos, nem sempre reconhecida pelos poderes e
pela sociedade.
2025.10.06
– Louro de Carvalho
Sem comentários:
Enviar um comentário